quarta-feira, 31 de março de 2010

Alguns anúncios, antes de voltar a fazer gênero

Há alguns pontos que gostaria de acrescentar à postagem da semana passada, em que volto a discutir a questão do GENDER, especialmente após as intervenções muito boas e inteligentes de Érico Nogueira e Dirceu Villa, dois poetas com quem me é sempre muito estimulante debater. Não se trata, por fim, apenas da questão de gênero, como em GENDER. Eu acho que seria muito interessante trazer a própria questão de gênero como GENRE a esta discussão, assim como uma conversa mais ampla sobre os papéis e funções possíveis para o poeta em nosso contexto histórico, meditando sobre os vários papéis e funções que os poetas já exerceram em suas respectivas comunidades, ao longo dos tempos, como os poetas-xamãs, que eram (e ainda são em muitas regiões) os médicos e sacerdotes da comunidade; os aedos na Grécia antiga, fundadores dos mitos "nacionais" (uso o conceito anacrônico com parcimônia) em seus épicos, unificadores da comunidade; os bardos medievais, que acompanhavam os senhores em batalhas, para registrar-lhes a História; o sofisticadíssimo serviço de entretenimento dos trovadores provençais/occitanos, etc.

Penso nos cataclismos e transformações na relação entre o poeta e sua comunidade após a Revolução Francesa, algo que pode claramente ser sentido em Baudelaire e Rimbaud, ou mesmo nos jacobinos Wordsworth e Coleridge. E, não nos enganemos, ainda estamos sob os efeitos, como poetas, dos novos cataclismos e transformações catalisados pela Revolução Russa na relação entre o poeta e sua comunidade. Se Maiakóvski e Mandelshtam os sentiram nos ossos, ainda os sentimos na pele, pelas ondas de choque que nos chegam. Tenho me esforçado para esclarecer os meandros de minha defesa por um trabalho crítico que englobe forma, função e contexto.

Mas voltarei a isso na próxima postagem, tentando dialogar com a postagem de Érico Nogueira e a de Dirceu Villa.


Hoje, gostaria apenas de fazer alguns anúncios rápidos.

§ - HILDA magazine, que edito aqui no Berlimbo com um amigo, o designer britânico Oliver Roberts, está novamente no ar. Após alguns problemas com nosso servidor, mudamos o endereço da revista eletrônica, que agora é

http://www.hildamagazine.com

Lá você encontrará trabalhos que cruzam as fronteiras dos gêneros e das nacionalidades, em fotografia, vídeo, música e textualidade, de artistas contemporâneos e primordialmente jovens, que iniciaram seus trabalhos neste século, neste contexto histórico, com algumas exceções sempre necessárias, já que deixamos o dogma para os cinquentões.

Esta é a mission statement da revista:

HILDA magazine recognizes no borders between genres or national identities, and wishes to gather artists who are residents of various metropoles around the globe such as Berlin, London, São Paulo, New York, Moscow, Buenos Aires or Tokyo, where they settled in the interest of word and image exchange. We are in the business of cross pollination between lands, languages and artistic practices.

HILDA magazine is interested in cultural interventionists, political activists and any creature who has chosen to follow the code of freaks. The magazine likes to chant "one of us, one of us" at each new update. For those who do not quite fit in the puzzle.


§ - Iniciamos esta semana, na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., um ciclo crítico sobre o poeta florentino Guido Cavalcanti (1250 -1300).



Assim como fizemos com o poeta Caio Valério Catulo (84 a.C. - 54 a.C.), uma das fontes da est-É-tica que seguimos, convidamos cinco poetas brasileiros contemporâneos brasileiros para o ciclo, discutindo a obra de Cavalcanti, um dos melhores exemplos do que venho chamando de poesia tesa, mais que densa, concreta ou concisa. Inicia o ciclo crítico o poeta paulistano Dirceu Villa. O ciclo contará ainda com artigos e traduções de Eduardo Sterzi (RS), Érico Nogueira (SP), Bruno Brum (MG) e Rodrigo Damasceno (BA).


§ - Na semana que vem, o coletivo de que faço parte funda nosso novo projeto, que substituirá o evento semanal Berlin Hilton (2005 - 2010), que organizamos por cinco anos no clube Neue Berliner Initiative. O novo projeto chama-se SHADE inc. A estreia será no dia 07 de abril, com uma performance de Wolfgang Müller, do lendário coletivo berlinense Die Tödliche Doris (1980 - 1987), apresentando seu trabalho sonoro Seance Vocibus Avium (2008); uma pequena apresentação do cantautor berlinense Petula; uma intervenção do duo de videoartistas AlexandLiane; e DJ sets das lendas berlinenses Peaches e T.Raumschmiere.


(T.Raumschmiere - "Monster Truck Driver")

O projeto traz-nos ainda mais próximos do sonho de ter our own private Cabaret Voltaire. Primeira filipeta e programa abaixo.








§ - Ocorre hoje, no Rio de Janeiro, o evento Estrondo, organizado pela editora 7 Letras para marcar o lançamento do projeto Lado7, no qual a editora vem reunindo, há vários meses, a oralização de textos, feita pelos próprios poetas no estúdio montado por Jorge Viveiros de Castro na editora.



Chacal e Carlito Azevedo participam do evento, além dos jovens poetas cariocas Alice Sant´Anna e Gregorio Duvivier. O programa do evento o apresenta nestas palavras:

"Uma nova forma de veicular a poesia brasileira será lançada com Estrondo pelo selo Lado7, da editora 7Letras. O espetáculo traz os consagrados poetas Chacal e Carlito Azevedo e os jovens Alice Sant’Anna e Gregorio Duvivier interpretando ao vivo seus poemas com o acompanhamento musical do grupo Lado7. A versão de estúdio de Estrondo, com produção musical de Newton Cardoso e Nelson Duriez, será lançada no formato de audiolivro durante o evento, que comemora os vinte anos do CEP 20.000."

Espaço Cultural Sérgio Porto – Rua Humaitá 163 – tel. (21)2266-08696
quarta-feira, dia 31 de março de 2010
a partir das 20h30.


§ - O poeta carioca/gaúcho Marcelo Sahea lançou este mês o livro Nada a dizer (São Paulo: E, 2010).




O autor o apresenta com as seguintes palavras:


"Do meu livro anterior (Leve), lançado há quatro anos até hoje, progressos significativos ocorreram nas minhas buscas dentro do que aos poucos reconheço como arte da palavra.

É que embora ainda não as tenha abandonado, poesia, bem como poeta, são estanques denominações que vêm se mostrando insuficientes para definir o esforço que tenho feito no sentido de ampliar o alcance e a potência (que só é possível pela contaminação por outras formas de expressão – música, arte sonora, artes visuais, eletrônica, arte digital, etc – ) da minha produção poética.

Este Nada a Dizer, oficialmente meu terceiro livro, apresenta impressões desses avanços e abre picadas para o que ainda há de vir.

Nele, os poemas inéditos (a maior parte) despontaram a partir das minhas pesquisas e experiências no terreno da performance e da poesia sonora. A outra parte é composta por poemas e textos que andavam dispersos em revistas, antologias e sites literários desde 2005 e que decidi aglutinar em um suporte único.

São poemas em verso, poemas visuais, textos para página e palco, poemas objeto, textos-colagens, códigos, poema QR-Code, contágios, perquirições e tal.

A célebre e uma das definitivas definições de poesia (“I have nothing to say/ and I am saying it/ and that is poetry/ as I needed it”) que o compositor, músico, pintor e poeta norte-americano John Cage deu em seu livro Silence (1961) foi, desde a concepção deste Nada a Dizer, decisiva para a escolha do seu nome de batismo.

Coisa natural para poetas (ou artistas da palavra) como eu, sabedor de que quanto mais se diz, mais da poesia se dista.
--- Marcelo Sahea, março de 2010.

§

Eis os anúncios.

RD.

sexta-feira, 26 de março de 2010

"Contexto uterino" ou "Sambando com stiletto onde até o Anjo de Benjamin pisa de leve" ou "Eis o X do vosso do X"

Este mês ocorreu o centésimo-primeiro "Dia Internacional da Mulher". No Brasil, costuma-se há algum tempo fazer certo furdunço hipócrita a respeito. Trata-se do dia em que um dos países mais sexistas do planeta lava um pouco de sua consciência, antes de retornar para o rebolar de bundas na televisão. Debater no Brasil a questão de gênero, especialmente a relação GENDER/GENRE, é imensamente difícil. O debate esbarra em muita ignorância e preconceito, poderíamos dizer até em certo pavor, invariavelmente vindo de escritores muito ciosos de sua sonhada e idolatrada universalidade, temendo que este debate signifique pura e simplesmente a defesa de poetas sem talento, mas que se encaixam em alguma minoria. Não se trata disso. Insisto: não se trata de colocar a política acima da poética. Não se trata de alegar que TODOS deveriam lidar com estas questões. Não se trata de abandonar o trabalho lírico, ou deixar de escrever bons e belos poemas de amor. Não se trata de deixar de ler poetas porque foram fascistas ou racistas, ainda que eu acredite sim que isto pode influir e determinar a escrita, mesmo de bons autores. 

(Creia-me, estes disclaimers todos são necessários, pois há sempre os que insistem em não entender do que estamos falando, especialmente os zeladores e porteiros do cânone.)

Nunca deixarei de ler Ezra Pound, mas sei que suas tendências políticas estão implícitas até nos gigantescos e imprescindíveis Cantos. Sempre amarei o trabalho poético brilhante de Gregório de Matos, como no soneto "Triste Bahia", um dos meus poemas favoritos em língua portuguesa, mas não quero nem posso me esquecer do contexto esclavagista em que seu trabalho foi escrito. Se alguém, algum dia defender que os filmes de Leni Riefenstahl deveriam ser queimados, eu seria o primeiro a correr em defesa da preservação dos filmes... mas eu não deixo nem me canso de insistir em afirmar que os filmes de Leni Riefenstahl são fascistas e provas cabais de sua adesão à ideologia nazista, assim como acredito ser de grande leviandade est-É-tica defendê-los simplesmente por sua "Beleza", ignorando suas implicações, dizendo que "sua mensagem não importa". 

Os defensores da "Beleza" acima de qualquer coisa me parecem de uma ingenuidade perigosa. O que queremos é DEBATE, não uma Inquisição. Portanto, trata-se de investigar como alguns artistas textuais e visuais têm lidado com estas questões, sem abrir mão da qualidade poética e da inteligência crítica. Na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., tentamos participar do debate de forma a colaborar com uma discussão mais adulta e responsável sobre isso, apresentando o trabalho de poetas e artistas como Susana Thénon, Harryette Mullen, Mona Hatoum, Adília Lopes, Lyn Hejinian, Rosmarie Waldrop, Pipilotti Rist, Nathalie Quintane, Lenka Clayton, Diane di Prima, entre outras.

Trata-se, por fim, de buscar um trabalho crítico ainda mais complexo, um trabalho crítico que comece e prime pela FORMA, mas que não seja preguiçoso a ponto de ignorar a FUNÇÃO e o CONTEXTO. Sim, é mais trabalho ainda. Não se trata de facilitar o trabalho crítico, mas de torná-lo ainda mais complexo. Não se trata de sociologia, como muitos praticam, tornando a política mais importante que a poética. Trata-se de est-É-tica.

Nesta postagem, gostaria de apresentar um trabalho da norte-americana Dara Birnbaum, que revi há pouco tempo, estimulando-me a retornar a este espinhoso e desagradável debate e questionamento.

Dara Birnbaum - "Technology Transformation: Wonder Woman" (1978), 5 minutos.

Trata-se da peça "Technology Transformation: Wonder Woman", de 1978, um trabalho não literário, mas visual, um "clássico" da videoarte, talvez o mais conhecido da nova-iorquina Dara Birnbaum, nascida em 1946. A escolha é apropriada, eu creio, para compreendermos algumas das estratégias mais interessantes de algumas artistas e autoras.

No trabalho de Dara Birnbaum, esta se apropria de imagens da cultura televisiva e pop, para reeditá-las, recontextualizando-as e usando estas imagens para expor e explicitar o que antes estava imposto e implícito. Podemos ligar a prática, por exemplo, às colagens da dadaísta alemã Hannah Höch (1889 - 1978).


colagem de Hannah Höch


Pensar que os poetas e artistas ligados ao Cabaret Voltaire e às revistas DADA e Merz estavam apenas interessados em "novidades estilísticas" é distorcer aspectos determinantes do trabalho de homens e mulheres como Hugo Ball, Tristan Tzara, Hans Arp, Hannah Höch, Raoul Hausmann, Kurt Schwitters, Sophie Taeuber, Richard Huelsenbeck, Emmy Hennings, John Heartfield ou Hans Richter. Além disso, sua poética era muito menos "pró-utópica" que "contra-distópica", operando em plena Grande Guerra.

No pós-guerra, muito desta est-É-tica é retomada pelos poetas do Lettrisme parisiense (Isidore Isou, François Dufrêne, Gil J. Wolman, etc) e do Grupo de Viena (H.C. Artmann, Gerhard Rühm, entre outros), e essa prática de "apropriação", que podemos ver nas colagens de Hannah Höch e no vídeo de Dara Birnbaum, pode também ser conectada à técnica do détournement, da Internacional Situacionista.

Guy Debord, excerto de "Réfutation de tous les jugements, tant élogieux qu'hostiles, qui ont été jusqu'ici portés sur le film 'La société du spectacle" (1975)


Encontramos paralelos poéticos, ainda que de forma distinta, em certas reescrituras de Ana Cristina Cesar (1952 - 1983) para poemas de Jorge de Lima (1893 - 1953), ou de Adélia Prado (n. 1936) para poemas de Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987); trabalhos textuais e de colagem de Jac Leirner (n. 1961); assim como, recentemente, em certos poemas como "Corpos simultâneos de cisne", de Lu Menezes (n. 1948) ou "Sereia a sério" e o dos versos iniciais "só / me consolaria: / o ejetor de teias / do homem-aranha", de Angélica Freitas.

Quanto ao uso de novas técnicas e tecnologias para este questionamento artístico, penso nas palavras de Marjorie Perloff:

"One may, as do the bulk of 'creative writing' teachers and students in workshops across the country, turn one's back on contemporary technology and write 'personal' poems in which an individual 'I' responds to sunsets and spiders and moths flickering on windowpanes or remembers a magical incident that occurred on a fishing trip with Father. Or one can take on the very public discourses that seem so threatening and explore their poetic potential."

:

Pode-se, como faz a maioria dos professores e estudantes de "criação literária" em oficinas do país todo, dar as costas à tecnologia contemporânea e escrever poemas "pessoais" em que um "eu" individual responde ao pôr-do-sol e aranhas e mariposas brilhando em janelas ou lembra de um incidente mágico numa pescaria com Papai. Ou podemos enfrentar os próprios discursos públicos que parecem tão ameaçadores, explorando seu potencial poético." Marjorie Perloff, tradução minha.



Este debate é inevitavelmente desagradável, pois trata-se da tentativa, por parte destes artistas, de desmascarar o que lhes parecem certas ilusões, das quais não queremos abrir mão. Pois, talvez não se trate tanto da pergunta se há realmente, como exemplos mais citados, uma escrita feminina, negra ou homossexual, mas de demonstrar como algo ou muito do que se chama de universal é, em verdade, literatura masculina, branca e heterossexual. Tudo? Não. Mas basta percorrer os botecos da Vila Madalena, em São Paulo, para conhecer alguns expoentes desta última, muitos surgidos na década de 90. Como disse a escritora Andréa del Fuego, de forma apta e concisa ao ser questionada se havia uma "literatura feminina", em entrevista ao Programa Entrelinhas, da TV Cultura: "Mas existe literatura de hominho também, vai", ironizando os temas recorrentes, como "o cara que não come ninguém", etc. Pense em algo como os "universais" Jack Kerouac, John Fante, Charles Bukowski, Rubem Fonseca e outros exemplos tão famosos de expoentes da "Literatura Universal". Mas também pretendo seguir lendo estes bons autores.

Quando passei a me interessar pelo pensamento crítico sobre o trabalho do poeta ou de qualquer escritor, a partir da tríade forma, função e contexto poéticos, seguia, por exemplo, a filosofia da linguagem de Wittgenstein, com proposições como a de que "o significado de uma palavra é seu uso na língua", negando essencialismos genéricos, imutáveis e idealizados. Perguntei-me à época se podia ser coincidência que os poetas e críticos em que encontramos com frequência esta maior consciência contextual, uma fidelidade à historicidade do fazer poético e a negação de cartesianismos abstratizantes, são em grande parte mulheres, como, por exemplo, Gertrude Stein, Clarice Lispector, Rosmarie Waldrop, Lyn Hejinian, Hilda Hilst, Susan Howe, Marjorie Perloff, Ana Cristina Cesar, Nathalie Quintane, Lygia Clark, Mona Hatoum, etc; homossexuais, como Frank O´Hara, Pier Paolo Pasolini, John Ashbery, John Cage, Roberto Piva, Ludwig Wittgenstein, Roland Barthes, Pedro Almódovar, José Leonilson, entre outros; assim como o questionamento de certos parâmetros literários eurocêntricos que vinha de homens como Jerome Rothenberg, George Quasha, Ricardo Aleixo e dos estudos de Antônio Risério, sobre a poesia de ascendência africana, e de Sérgio Medeiros sobre a poesia indígena. Trata-se de uma pergunta, não de uma asserção. Quem estiver (de maneira legítima) interessado apenas no trabalho formal do poeta, sinta-se livre para abster-se de qualquer resposta.

Em 2008, preparei uma postagem sobre a britânica Lenka Clayton para a Modo de Usar & Co., a partir de sua peça "Qaeda, quality, question, quickly, quickly, quiet", de 2004.

Lenka Clayton, excerto de "Qaeda, quality, question, quickly, quickly, quiet" (2004)

Na época, lembro-me de ter tido um debate muito interessante e estimulante com Dirceu Villa a respeito, um poeta de minha geração que possui um trabalho formal preciso, sem abandonar a preocupação com o contexto em que insere este trabalho formal, ainda que recorramos a práticas distintas. Villa alertava-me para o fato de que, em 1000 anos, quando George W. Bush for uma nota-de-rodapé constrangedora para a nossa época, o trabalho de Lenka Clayton deixaria de fazer sentido. É realmente possível. O que eu afirmaria é o seguinte: que, no momento em que George W. Bush for esquecido, a técnica de Clayton, o que ela FEZ nesse vídeo, poderá sugerir procedimentos interessantes e úteis para que algum poeta, em 1000 anos, possa lidar também com o bufão político perigoso de sua própria época. Por que ainda lemos o "Epigrama" em que Ósip Mandelshtam (1891-1938) satiriza Stálin? O poeta russo tem textos muito melhores, muito mais interessantes. Mas eu diria que, quando Stálin for mais um nome da longuíssima lista de ditadores genocidas do século XX, algum poeta do futuro possa ainda encontrar, neste poema, estratégias para satirizar o ditador genocida governando seu país do futuro. Acabando, provavelmente, também em um campo de trabalhos forçados, como Mandelshtam.

O poeta Érico Nogueira também nos alerta com frequência para os perigos deste debate. Ele mesmo defende por vezes a desimportância do contexto para o trabalho formal, ainda que sua prática poética demonstre que possui, na verdade, muita consciência contextual. E digo isso discordando de seu posicionamento crítico e político, mas respeitando (e muito) seu trabalho poético. O debate é possível.

Há realmente perigos inúmeros que cercam o trabalho poético e crítico ao enveredar por estas sendas pedregosas. Muitos se aproveitam deste debate para defender poéticas frouxas, auto-complacentes e tão perigosas quanto os problemas que combatem. Além disso, eu jamais exigiria "posicionamento político" de um bom poeta que já esteja nos ajudando tanto com seus lindos poemas de amor ou outras pesquisas necessárias, sobre outras questões espinhosas. Mas é possível também lidar com estas questões políticas, poetas sempre o fizeram, pois eu penso na inteligência com que Catulo e Marcial ou, em nossa época, Bertolt Brecht, Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Glauber Rocha, Pier Paolo Pasolini e Harryette Mullen, entre tantos outros, lidaram com elas, sem abandonar a qualidade artística. Minha tendência é acreditar que trabalhos como Santa Joana dos Matadouros (1929), Poesia Liberdade (1947), O cão sem plumas (1950), Terra em transe (1968), Salò ou 120 Dias de Sodoma (1975) e Muse & Drudge (1995) serão sempre atuais, não apenas por suas excelências formais, mas também porque enfrentam problemas que têm se mostrado recorrentes e repetitivos, infelizmente.

Se eu tivesse que resumir a questão, com uma conscientemente perigosa proposição-tentativa, eu diria o seguinte:

É como se a estes poetas importasse menos o que chega aos ouvidos do Anjo de Rilke, do que o que passa pelos olhos do Anjo de Benjamin.

Ou, como escrevi no ensaio "Ideologia da percepção", iniciando minha carreira de acumular desafetos:

"Assim, todo poeta carrega em si os condicionamentos de sua estrutura individual, movendo-se num contexto coletivo, com problemas pessoais interligados a questões coletivas, e o que cada um pode fazer é, consciente de suas condições e de como elas influem ideologicamente em seu discurso, tentar sua contribuição pessoal, "what he alone must make", novamente nas palavras de Cage. Mas, sintonizado em sua gregariedade, pois ninguém está à frente de seu tempo, já dissera Gertrude Stein, outra context sensitive poet, ainda que alguns pareçam tentar a proeza de estar aquém dele. E cabe-nos, despertos para este condicionamento ideológico de nossa construção coletiva / individual / coletiva / individual da tal de realidade, em fluxo e refluxo, mantê-la aberta aos olhos de todos, sabendo que só podemos contemplar o mundo com nossos próprios olhos, conscientes, porém, desta "ideologia da percepção". Expor o imposto, sem contribuir com os jogos de poder e dominação presentes também em formas literárias.

Ou, na formulação de Susan Howe, "whose order is shut inside the structure of a sentence?"

O debate é desagradável, eu sei, mas necessário, eu creio.

§

DEDICADO à memória de Emmeline Pankhurst (1858 – 1928), Emma Goldman (1869 – 1940), Patrícia Galvão (1910 - 1962) e também a todo poeta que "no centro da própria engrenagem / inventa a contra-mola que resiste".

.
.
.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Paráfrase para um poema de Takis Sinopoulos (1917 - 1981)

Encontrei este poema de Takis Sinopoulos, poeta grego nascido em 1917, em uma antologia organizada por Jerome Rothenberg. Não conheço grego, mas decidi preparar algo como uma paráfrase ou re-escritura a partir da tradução para o inglês, por ter gostado do texto. Qualquer beleza ou eficiência deve ser atribuída a Takis Sinopoulos, todos os erros de julgamento a mim.



IOANNA EM DELÍRIO


Constantino é uma porta.
Ele é uma cara atrás da porta.
Ele é uma porta que bate e esmaga teus dedos.
Constantino é uma sala vazia.
Grito de alerta em sala vazia.
Constantino é uma casa, uma casa lúgubre.
Dentro dele religiões de sangue inexploradas fumegam.
Constantino é amanhã amanhã amanhã (amanhã repetido
à exaustão).
Ele tem dois corpos, um rubro, outro negro.
Às vezes eu o deprivo de um deles, às vezes do outro. Juntos eles
me reduzem a cinzas.
Constantino desaparece se o contemplamos quadrado.
Constantino surge se sonhas com ele.
Ele combate a noite, cai sobre ela cegado pela raiva
e cobre-se de pústulas que ulceram.
Ele tortura-se com as caras, o vago o tiraniza, fuçando meu corpo,
a luz da minha cara e lágrimas persistentes o despedaçam.
Constantino é o sol que determina a sombra da grama
com seu movimento contínuo.
Constantino é a estampa no tapete de flores sufocadas.
Constantino é a luta com salas e pássaros.
Ele sempre fala de um rio que há de limpar suas costas
do solo e impurezas da terra.
Ele salva do escuro temas que excitam seu sangue
então dorme.
Constantino tem muita sujeira em sua vida imaginária.
Constantino é um fato questionável.
Constantino é uma máscara meio carcomida.
Ele veste seu casaco de inverno e presume estar
em constante metamorfose.
Constantino é um dia escuro opressivo quando o vento
carrega pó às janelas.
Atrás da cara de Constantino move-se o Constantino escuro.
Constantino inflama-se à noite com uma paixão mais terrível
que suas palavras.
Eu repito Constantino é uma casa.
Ele é uma casa cheia de mecanismos cujas garras
rasgam tuas costas.
Constantino arrepende-se de actos não perpetrados.
Ele confunde o que fez com o que planejava fazer.
Ele construiu prédios horrendos e os segurou
de forma desesperada até que tombaram
e nos esmagaram.
Constantino é responsável pelo que quer que ocorra
em nosso interior.
Constantino é um espelho que se parte em paranóia
sem fim e reflexos de surpresas fabulosas.
Ele sempre chama minha cara de ravina escura da lua.
(Minha cara é no entanto luminar)
Constantino é assustador quando ele escama camadas
de sua pele uma por uma.
Não sei como acalmar Constantino.
Hora pós hora a loucura está em seu colo e brilha
de dentro de seu estômago como lamparina.

Eis Constantino.

poema de Takis Sinopoulos (1917 - 1981)
em paráfrase-reescritura de Ricardo Domeneck.

.
.
.

quarta-feira, 24 de março de 2010

O fim de uma era em minha vida, o início de outra




Hoje à noite, aqui no Berlimbo, o evento que venho organizando todas as quartas-feiras há cinco anos, com o coletivo de que faço parte (que inclui videastas, DJs, autores e artistas gráficos), celebra seu quinto aniversário e também seu grand finale. No melhor espírito dadaísta/berlinense, por cinco anos ignoramos as fronteiras entre criação e curadoria, buscando ser um local de produção artística e de intervenção est-É-tica. Nestes cinco anos, alguns de nossos heróis e várias das criaturas mais interessantes do subterrâneo berlinense passaram pelo nosso palco, com performances, intervenções e DJ sets de criaturas como Stereo Total, Apparat, Modeselektor, Kevin Blechdom, Planningtorock, Lo-Fi-Fnk, as riot-girrrls do Le Tigre: JD Samson and Johanna Fateman, The Presets, Electrocute, Bianca Casady do duo CocoRosie, No Bra, Joe And Will Ask?, Tetine, T.Raumschmiere, Hanayo, Phon.o, Jeans Team, Schneider TM, Herpes, Akia, Stabil Elite, Rich & Kool, Bruce LaBruce, Angie Reed, Sex In Dallas, Barbara Panther e DJs como Lemercier, Shir Khan, Eric D. Clark, Jake The Rapper ou os residentes do Panoramabar/Berghain nd_baumecker and Boris, entre outros.

Hoje é a última vez da festa intitulada, em espírito dada-pop, de Berlin Hilton, como comentário-piada sobre certa herdeira loira. Durante a festa, lançaremos o novo projeto que, a partir de abril, nos trará ainda mais próximos do sonho de ter our own private Cabaret Voltaire.

Como convidado especial hoje à noite, o artista sonoro londrino David E. Sugar, além de sets de outros amigos DJs.


DAVID E. SUGAR








.
.
.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Uma das poéticas contemporâneas brasileiras, via Mullen, em sincronia sincrética




"Das fatrasies medievais a DADA, do Sapateiro ao Rilke shake"


por Ricardo Domeneck



Há no Brasil, hoje, várias poéticas em atividade, algumas complementares, outras adversativas. Não há novidade nisso, houve outros momentos históricos em que poetas de faturas muito distintas produziram poesia e literatura de qualidade. Basta citar um exemplo, ao qual tenho tentado chamar a atenção: nas duas últimas décadas do século XIX, ou, para ser mais preciso, entre 1881 e 1902, estavam em atividade, produzindo, publicando e participando do debate poético no Brasil, os seguintes autores: Machado de Assis, Joaquim de Sousândrade, Raul Pompeia, Cruz e Sousa e Euclides da Cunha, sem mencionarmos o caso de Qorpo-Santo, que faleceria em 1883. No entanto, a engessada e engessante historiografia literária brasileira separa cada um destes autores em movimentos estanques e sucessivos, gerando esta mentalidade porca de "rei morto, rei posto", transformando o importante trabalho da crítica em mera genealogia de hegemonias. Ou, nas palavras de Dirceu Villa, trata-se também da necessidade falsa de "reforçar o lado folclórico e típico para estabelecer o `nacional´". Assim, um momento rico em pluralidades frutíferas acaba nivelado em suas diferenças ou, muitas vezes, reduzido a uma batalha entre apenas duas "tendências", no frequente debate dualista que presenciamos no Brasil, praticado ainda hoje em São Paulo, por exemplo. Perdemos assim a riqueza em debate da poesia do fim do século XIX, perdemos as lições críticas da poesia de nossa modernidade em favor do estudo unívoco da poesia de nosso modernismo, ou, num caso mais recente, perdemos a pluralidade da poesia brasileira da década de 50, por seguirmos dando atenção às trincheiras que aqueles poetas inventaram para si, mesmo depois da morte de alguns deles. Toda nova geração de poetas deveria ignorar as trincheiras de seus predecessores e buscar em suas obras aquilo que mantém sua função em nosso contexto, com um estudo crítico de seu trabalho formal, sem necessariamente ignorar as implicações deste.

Nada há de sincrônico em criar apenas uma oposição fictícia entre dois lados, forçada por meio de dicotomias. As poéticas comunicam-se através dos séculos, das geografias e das línguas, porque herdamos estruturas com as quais aprendemos, assim como herdamos estruturas que desejamos combater. Gostaria de pensar em algumas poéticas brasileiras contemporâneas, buscando esta comunicação com poéticas de outros lugares e tempos, entendendo, no entanto, como estas funcionam hoje e em cada um de seus momentos históricos.

Publiquei aqui traduções minhas para poemas da norte-americana Harryette Mullen, nascida em 1953 no estado do Alabama. A poeta é frequentemente associada aos que gosto de chamar de "poetas-linguistas", reunidos em torno da revista L=A=N=G=U=A=G=E (1978 - 1981), entre outras. Harryette Mullen tem produzido uma poesia de grande qualidade poética, questionando aspectos da vida e cultura norte-americanas, como o racismo e machismo daquela sociedade, sem recorrer a discursos de palanque. Como sabemos, o poema opera na fronteira entre transparência e não-transparência do signo, e nos grandes poetas há a conjunção entre as funções da linguagem, já que Jakobson nos alertou que a poeticidade não oblitera necessariamente a referencialidade, a não ser em trabalhos em que se busca isso de forma específica, como na poesia fonética de Hugo Ball, no zaum de Velimir Khlébnikov e outras pesquisas da poesia sonora e visual, como a de Henri Chopin, suprimindo conscientemente o que chamaríamos de verbal, se recorremos ao conceito de verbivocovisual. Gosto muito, no entanto, de lembrar-me da passagem em que Ezra Pound discute um poema de Arnaut Daniel, descrevendo a sofisticação formal do texto, com sua incrível estrutura sonora, para então dizer "E tudo isso sem deixar de fazer sentido!".

Publiquei três traduções para poemas de Harryette Mullen na Modo de Usar & Co., mas gostaria de conversar sobre um texto específico, para então chegar a alguns poemas contemporâneos brasileiros. Trata-se de um texto do livro Muse & Drudge (1995), livro pelo qual tenho especial apreço.

[go on sister sing your song]
Harryette Mullen


go on sister sing your song
lady redbone señora rubia
took all day long
shampooing her nubia


she gets to the getting place
without or with him
must I holler when
you’re giving me rhythm



members don’t get weary
add some practice to your theory
she wants to know is it a men thing
or a him thing



wishing him luck
she gave him lemons to suck
told him please dear
improve your embouchure



O texto parece-nos muito próximo, como brasileiros, por certas pesquisas do nosso modernismo e de poetas do pós-guerra. Ele opera através de uma encenação da naturalidade do enunciado oral, recorrendo, no entanto, a artifícios poéticos e literários, como nas rimas incomuns. Verti o poema da seguinte maneira:

vamos lá mana cante a canção
(tradução de Ricardo Domeneck)


vamos lá mana cante a canção
blond miss dona rubrosa
passou a manhã toda
ensaboando seu sudão


ela chega à linha de chegada
sozinha ou consigo
hei de esgoelar enquanto
você me dá o ritmo



não se canse diretoria
dê prática à sua teoria
ela pergunta se é coisa de homem
ou coisa de pronome



desejando a ele sorte
deu-lhe os limões que chupa
disse-lhe benzinho ao cangote
melhore sua embocadura



No contexto norte-americano, por sua linguagem muitas vezes gnômica, conjugando escrita e oralidade, concisão do que jorra como enunciado lírico comprimido, mas articulado, penso em ligações possíveis a certos aspectos da poesia de Emily Dickinson e, principalmente, de Lorine Niedecker. No entanto, esta prática poética remete também, nas tradições múltiplas, aos autores medievais das fatras e fatrasies, como Watriquet Brassennel de Couvin e Jean Molinet.

Fatras
Watriquet Brassennel de Couvin


Doucement me réconforte

Celle qui mon cœur a pris.
Doucement me réconforte
Une chatte à moitié morte
Qui chante tous les jeudis
Une alléluia si forte
Que les clençhes de nos portes
Dirent que leur est lundi,
S’en fut un loup si hardi
Qu’il alla, malgré sa sorte,
Tuer Dieu en paradis,
Et dit : « Copain, je t’apporte
Celle qui mon cœur a pris. »


No contexto brasileiro, podemos pensar na poesia satírica de Gregório de Matos (1636 - 1696), mas também no trabalho fenomenal do poeta brasileiro conhecido como Sapateiro Silva, ativo no início do século XIX, que nos deixou textos brilhantes, ainda hoje negligenciados pela maior parte da historiografia literária brasileira.

Excerto de uma das glosas do Sapateiro Silva (fim do XVIII - início do XIX)

MOTE


Sábado fez quinta-feira,

Domingo fez três semanas,
Que pariu a porca um burro,
Mas com vinte e cinco mamas.


GLOSA

I


Sebo de grilo em cardume

Dizem de ser de boa medra;
Sabão mole feito em pedra
é um galante perfume.
Não é má para betume
A raiz da escorcioneira;
A galinha na popeira
Põe os ovos na malhada;
Lá na semana passada
Sábado fez quinta-feira.


II


Arroz de nabo e cominhos

Serve de emplastro à espinhela,
Pimenta, cravo, e canela,
De lambedor de carinhos.
Cantochão de Barbadinhos
Faz árias italianas;
Criam misérias humanas
Um, e dous, e argolinha;
Inda há pouco na folhinha
Domingo fez três semanas.



Podemos remeter esta poética ainda a autores alemães como Heinrich Heine em suas Lieder e o Christian Morgenstern do volume Galgenlieder (1905), assim como, principalmente, a um poeta dadaísta como Hans Arp. Vejamos um poema de Arp:

Opus Zero


Eu sou o Grão-Istoaquilo
O rigoroso regimento
O oxigenoma Sine Qua Non
O anônimo 1%


O P.P.Tit. e dito cu
Culatra sem boca e buraco
O honorável talhercúleo
Capa nova em velho cardápio



Eu sou o pífio vitalício
O Sr. Dezembro em dúzia
O colecionável Filatelo
Em verniz vinil e fúcsia



O desabrochável semigual
O honoris causa Dr. Ômega
O brancomo berço d´ouro
O paparazzível Domine



:::: Tradução minha, publicada originalmente na Modo de Usar & Co. impressa, número 1, para o poema "Opus Null": Ich bin der grosse Derdiedas / Das rigorose Regiment / Der Ozonstengel prima Qua / Der anonyme Einprozent. // Das P. P. Tit und auch die Po / Posaune ohne Mund und Loch / Das große Herkulesgeschirr / Der linke Fuß vom rechten Koch. // Ich bin der lange Lebenslang / Der zwölfte Sinn im Eierstock / Der insgesamte Augustin / Im lichten Zelluloserock. // Der aufgekappte Ohnegleich / Der garantierte Herr Herrje / Die edelweisse Wohlgeburt / Der vielgennante Domine. :::::::::

Buscando paralelos na poesia brasileira, não creio que os encontremos em modernistas como Oswald de Andrade, a não ser em "Cântico dos cânticos para flauta e violão" (1945), muito menos entre os poetas do Grupo do Mimeógrafo ou outros da década de 70, com algumas exceções, como Chacal, Isabel Câmara e os estranhos-no-ninho Zuca Sardan e Sebastião Nunes. Este trabalho fronteiriço entre a naturalidade do enunciado oral e o artifício poético surge, por exemplo, no trabalho de Gregório de Matos, mas também em Joaquim de Sousândrade, especialmente no famoso "O Inferno de Wall Street", um dos poemas importantes de nossa modernidade:

Excerto de "O Inferno de Wall Street"
Joaquim de Sousândrade


(Desconsolados agiotas e comendadores:)


- De uns arrotos do demo,
No revira se haver...
- Venha a nós papelório
Do empório,
E de Congo o saber.



(Damas da nobreza:)



- Não precisa prendê
quem tem pretos p´herdá
e escrivão p´escrevê;
Basta tê
Burra d´ouro e casá.



(Escravos açoitando de milagrosas imagens:)



Só já são senhozinhos
Netos d´imperadô:
Tudo preto tá forro;
Cachorro
Tudo branco ficou!



(GEORGE e PEDRO, liberdade-libertinagem:)



- Tendo nós cofres públicos,
Livre-se a escravidão!
Comam ratos aos gatos!
Pilatus
Disse, lavando a mão.



Entre poetas portugueses, penso em alguém como nosso contemporâneo Alberto Pimenta, ou no excelente Fernando Assis Pacheco, infelizmente já morto, mas que nos deixou bela obra em que o riso, com um comovente humor auto-depreciativo, faz-nos sorrir mas nervosos, como insinuando que o espelho é o maior sátiro:

Segundo balcão dos bombeiros
Fernando Assis Pacheco


Nesse tempo eu já lera as Brontë mas
como era um adolescente retardado
passava a noite em atrozes dilemas
que mais vale: amar, ser doutrem amado?


ainda não descobrira o simples disto
nem o essencial disto que é tão claro
se tudo no amor vem do imprevisto
deitar regras ao jogo pode sair caro



por isso eu amo e sou ou não benquisto
depende do instante bem ou mal azado
amor tem alegria, tem enfaro
o happy end é coisa dos cinemas



No pós-guerra brasileiro, encontraríamos algo desta poética em textos de Duda Machado (penso, p. ex., em "Urubu-abaixo") e também em Antônio Risério, como podemos ler neste excerto de Aviso à praça: "Bobagem. Nenhum capitalismo é selvagem. / Puta não é cadela. Nem a vida, feroz. / O homem é o homem do homem. / Todos juntos e a uma só voz. // Humana é a sala de tortura / a napalm, a navalha, a metralha no gueto / - a pele esfolada no porão. / Humana, humaníssima, a escravidão. // Humano é o arame farpado / O estripador branco, o estuprador preto / Carandiru, Somália, Khmer, Bopal / O massacre na Praça da Paz Celestial." Outro poeta que recorre fortemente a algumas destas técnicas é Paulo Leminski. Como em Harryette Mullen, há neles uma confluência entre as técnicas do literário e as práticas do improviso vocal dos poetas do jazz ou, no caso de Risério e Leminski, os poetas vocais do samba e de outras vias da música popular brasileira.


[um homem com uma dor]
Paulo Leminski


um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante


carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha



ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer vai ser minha última obra



Na poesia contemporânea deste novo século, tais técnicas comparecem em poemas de vários autores. Em Dirceu Villa podemos encontrar um belo exemplo, poeta que tem recorrido a certas técnicas que o ligam a algumas práticas de Sousândrade, entre outros, usando sua funcionalidade para o contexto contemporâneo brasileiro, em poemas como "Angst Brazileira I" ou neste texto:

Pontos-de-fuga do século XX
Dirceu Villa


Era Yeltsin
Em 1995, parecendo uma caricatura
De Russo frente às câmeras do Western
Americano, que pensava: "É nisso
Que dá o Comunismo".


O que Hobsbawn chamou
"Capitalismo de Estado": onde
Deus & Mammon dão lugar
Aos Canalhas do Partido: tudo
Em maiúsculas, ou uniforme militar.


:::: poema do livro Icterofagia (São Paulo: Hedra, 2008) ::::


Também encontramos isso nos melhores poemas do paraense Gabriel Beckman, ainda inédito em livro, como neste "Outro rosto", que publicamos no segundo número impresso da Modo de Usar & Co. (Rio de Janeiro: Berinjela, 2009):

Outro rosto
Gabriel Beckman


o de chet baker by avedon:


máscara daimônica
superfície saturada de traços
subsentidos do tipo
abyssus abyssum invocat



resumo do estrago:
trama de textos
numa fórmula-nosferatu:
palimpsesto



e se você lê o longe no perto:
rastros de céu e inferno



como se dissesse
ok mon semblabe
escolhe o rasgo
que eu solo a fábula



Poderíamos mencionar muitos exemplos, em poetas de idades e residências estaduais distintas. Pádua Fernandes, em seu livro Cinco lugares da fúria (São Paulo: Hedra, 2008), recorre a algo disso em poemas como "o mesmo lado": "lavemos a louca / não porque ela é suja / e vive sem roupa, / se mostra na rua // e ninguém percebe / no curto vestido / onde finda a pele / e começa o fio; / a louca lavemos, / joguemos na água, / que ela tome os remos / porém não a barca". O gaúcho Marcus Fabiano Gonçalves usa-o em "Oração do favelado":

Oração do favelado
Marcus Fabiano Gonçalves


pai nosso
que nos deixa ao léu
santificada seja a nossa fome
venha a nós o vosso treino
e seja feita a vossa vontade
aqui na guerra
como entre os réus


o pão nosso de cada dia
roubai hoje
e perdoai a nossa imprensa
assim como perdoamos
as migalhas que nos têm oferecido,
não nos deixeis cair na transação
mas livrai-nos do sistema penal,
amém.


:::: do livro O resmundo das calavras (Porto Alegre: WS Editor, 2005) ::::


Isso tem comparecido também em poemas de autores muito jovens, como o carioca Gregorio Duvivier:

Safo de Lesbos
Gregorio Duvivier


seu contorno noturno me transtorna

a pele morna sob a carne mansa
mais macia do que o manto-pêlo
do que o mar na coxa sua língua roxa
inverna mil calores seu biquíni
mini me maltrata mil me estorva
e turva feito burca no calor do rio
mazurca na sanfona odes negras
no baião és foda e fazes falta
nessa terra pouco firme em que você
se vivesse cantaria mpb



::::: publicado no segundo número impresso da Modo de Usar & Co. (Rio de Janeiro: Berinjela, 2009) ::::::


No entanto, poucos poetas têm feito desta prática, de forma tão clara e insistente quanto Angélica Freitas, uma de suas especialidades. Se alguns poemas de Rilke shake têm permitido aos desleitores uma aproximação questionável entre o trabalho desta e o de poetas dos mimeógrafos da década de 70, em minha opinião Angélica Freitas supera muitos deles em qualidade de escrita, em vários aspectos, como em "às vezes nos reveses", "rito de passagem" ou em seu conhecido "Rilke shake", que dá título a sua primeira coletânea. Angélica Freitas e alguns dos poetas aqui mencionados recorrem a práticas que os ligam a uma possível família poética, a sincrônica e sincrética em que poderíamos incluir Marco Valério Marcial, Watriquet Brassennel de Couvin, Heinrich Heine, Tristan Corbière, Hans Arp, Paulo Leminski e Harryette Mullen. Não são poetas interessados em "fundar escola". Exercem uma das muitas funções que poetas vêm exercendo ao longo dos milênios, entre as tantas.

rilke shake
Angélica Freitas


salta um rilke shake
com amor & ovomaltine
quando passo a noite insone
e não há nada que ilumine
eu peço um rilke shake
e como um toasted blake
sunny side para cima
quanto estou triste
& sozinha enquanto
o amor não cega
bebo um rilke shake
e roço um toasted blake
na epiderme da manteiga


nada bate um rilke shake
no quesito anti-heartache
nada supera a batida
de um rilke com sorvete
por mais que você se deite
se deleite ou se divirta
tem noites que a lua é fraca
as estrelas somem no piche
e aí quando não há cigarro
não há cerveja que preste
eu peço um rilke shake
engulo um toasted blake
e danço que nem dervixe


:::: do livro Rilke shake (São Paulo: Cosac Naify, 2007) :::::::



Isso não significa que esta poética seja a única no Brasil. Já silenciamos, por séculos, a poesia satírica de Gregório de Matos, do excelente Sapateiro Silva e o trabalho inclassificável de Qorpo-Santo. Precisamos nos livrar desta necessidade provinciana de eleger um "Poeta nacional", quando na verdade precisamos de "poetas no Brasil". Também teríamos mais prazer com a poesia e mais leitores, se percebêssemos que o trabalho poético tem muitas funções distintas e não precisa ser tão-somente órfico. Especialmente quando se trata das veleidades órficas de alguns poetas brasileiros contemporâneos, poetas que, do Hades, tudo o que conhecem parece ser um cartão postal.


--- Ricardo Domeneck.


§
§
§

Recomendo este vídeo com entrevista e leitura da poeta norte-americana Harryette Mullen.

sábado, 13 de março de 2010

A pseudo-intifada de Claudio Daniel

“he buzzes like a fridge,
he´s like a detuned radio”

Thom Yorke


Nos últimos dias, o autor paulistano Claudio Daniel voltou à sua obsessiva pseudo-intifada, contra poetas dos quais discorda e a quem insiste em tentar transformar em um “grupo” ou “panelinha”, tratando-os, já há algum tempo em sua usual verve maniqueísta, como se fossem o “eixo do Mal” da poesia brasileira, entre os quais ele tem me incluido. Sua obsessão por Carlito Azevedo e Angélica Freitas já assume contornos patológicos e ridículos. Este último episódio não passaria de mais um exemplo de suas ações constrangedoras se não houvesse sido perpetrado, desta vez publicamente e com a leviandade que já lhe é famosa, mesmo fora da belicosa São Paulo e além de suas trincheiras.

Já afirmei e assinei há anos, em ensaios abertos e públicos, editados em revistas de escolhas est-É-ticas diversas, minha crítica à poética que este autor defende, assim como à sua atitude crítica tendenciosa, em que conceitos tão distintos entre si quanto “sincronia histórica” e “trans-historicidade” tornam-se sinônimos, para mascarar um discurso demagogicamente evolutivo, fazendo com que todo artigo deste autor termine por apontar sua poética como o único caminho, a verdade e a vida.

No discurso dualista e altamente ideológico deste senhor, baseado em distorções dos conceitos de homens como Jakobson assim como em dicotomias engessadas e puristas, “sincronia histórica” torna-se apenas a desculpa usada para saquear a aura de autoridade de escritores já mortos e consagrados, incluindo-os em suas antologias e artigos, para logo em seguida incluir o próprio trabalho e o daqueles que aprecia, elegendo-se como o único e verdadeiro herdeiro da única e verdadeira poesia. Sincronia, em seu caso, funciona apenas como desculpa para defender o que eu chamaria de uma "diacronia privada". Trata-se de estratégia já "clássica" no pós-guerra brasileiro.

Sua leitura falsamente sincrônica acaba apenas por obliterar as diferenças enriquecedoras entre os  trabalhos dos autores, mesmo os de ótimos poetas como José Lezama Lima, Haroldo de Campos ou o Néstor Perlongher de Austria-Hungria. Já argumentei também, entre outras, contra sua leitura equivocada do conceito de “função poética”, na qual insiste em opor esta às outras funções da linguagem, em especial à função referencial, como se uma obliterasse por completo a outra, para tentar sustentar sua mentalidade poética pessoal, que está baseada em uma ojeriza de caráter ideológico a qualquer forma de realismo ou comunicação mimética, quando o próprio Jakobson, ou críticos como Paul de Man, Fredric Jameson, Marjorie Perloff ou Alfonso Berardinelli, entre tantos outros, apontam de forma inteligente como a poeticidade não oblitera necessariamente a referencialidade, já que o poema funciona na fronteira entre transparência e não-transparência do signo; sem mencionar a incapacidade de Claudio Daniel para um debate sobre o papel do contexto histórico em que se movimenta cada poeta, o que jamais significou, ainda que ele tente este argumento, abandonar a crítica primordial do trabalho formal de cada autor. No entanto, para este senhor paulistano, as pesquisas e estudos sérios da historicidade do fazer poético devem ser todos embalados, como é seu costume fazer, no rótulo de “crítica sociológica uspiana”, aparentemente, em sua opinião, mesmo os de críticos como Walter Benjamin, Theodor Adorno, Hugh Kenner, Marjorie Perloff ou Alfonso Berardinelli; ou a consciência histórica em autores como os dadaístas (em plena Primeira Guerra); Brecht, Pasolini ou a Internacional Situacionista; a própria compreensão dos poetas de Noigandres, na década de 50, do contexto em que inseriam sua poética, assim como a do Grupo de Viena, dos Objectivists americanos ou, ainda e finalmente, na defesa  empreendida por Ernst Bloch, contra seu companheiro Lukács, dos expressionistas germânicos em seu debate na imprensa alemã em 1934, etc.

Use palavras como “contexto”, “historicidade poética” ou “conjunção entre estética e ética” e Claudio Daniel imediatamente tranca amedrontado as portas de sua casa e passa a acusá-lo de querer enviá-lo a um gulag. Qualquer um que discorde dele, em sua opinião, só pode ser um estalinista, sociólogo uspiano inimigo da Literatura ou defensor-amante dos marginais cariocas. Sua tentativa de insinuar uma "hegemonia do cotidiano" na América Latina, a partir de poetas como Nicanor Parra ou o brasileiro Carlos Drummond de Andrade, criando uma oposição fictícia entre a poética destes autores e a de poetas como César Vallejo e Oliverio Girondo, é apenas uma das facetas de sua distorção histórica sobre a poesia do continente. Sua tática é simples: ressuscitar certas batalhas dualistas, para as quais ele precisa de um "grupo-vilão".

Pois a mentalidade deste senhor opera apenas por dualismos, dicotomias. Claudio Daniel não está interessado em um debate verdadeiramente est-É-tico, ainda que matreiramente tente afirmá-lo, já que estas críticas a sua miopia têm sido feitas há anos, e por vários autores. Ele, no entanto, prefere a tática de mensagens de bastidores, exigindo "lealdade" dos que ele insiste em ver como "aliados" e pedindo o boicote ao trabalho daqueles que despreza, apresentando-se como “vítima” de um complô de “poetas medíocres”. Este senhor jamais demonstrou verdadeiro interesse em um debate de ideias e nos aspectos est-É-ticos da poesia contemporânea, já que a crê “trans-histórica”, preferindo sua pseudo-intifada adolescente e maniqueísta, que nada mais prova que sua necessidade por atenção na imprensa, com sua briga pequena e mesquinha por resenhas e bolsas do Governo. Como é possível notar nos últimos textos dele, é tudo o que parece lhe importar.

O que surpreende é perceber que o mesmo Claudio Daniel está, neste exato momento, ministrando cursos sobre a “poesia contemporânea” (leia “poesia contemporânea” como sinônimo de “neobarroco”) na Casa das Rosas, uma instituição pública, onde com certeza não deve abrir muito espaço para uma discussão desinteressada de poéticas divergentes da sua. Ele é convidado frequente da instituição, da mesma maneira como estou cansado de receber convites para eventos dos quais este senhor toma parte, em instituições públicas e privadas, como a já mencionada Casa das Rosas, o Itaú Cultural ou a Academia Internacional de Cinema. Ora, onde está este “boicote”, do qual ele se sente “vítima”? Cadê o monopólio da "Inimigo Rumor e seus associados"? Ele também não parece ter a menor dificuldade em editar seus livros, como dirige coleções de poesia contemporânea para outras editoras, publicando, naturalmente, aqueles que aprecia. Será que tudo resume-se ao desejo irrefreado de ser capa da Ilustrada? Meu último livro mereceu, na Folha de S. Paulo, uma resenha de um parágrafo, e negativa. Um parágrafo minúsculo para três livros de poesia. Quer pra você? Pode ficar. Ou não basta, ao senhor Claudio Daniel, a FUNARTE de 2008 e outros momentos em que foi agraciado com o dinheiro público, para promover apenas os poetas que aprecia, como em festivais que organizou com patrocínio da Caixa Econômica Federal?

Como o poeta Ricardo Aleixo expôs em sua Carta aberta a Claudio Daniel, publicada essa semana, são levianas e sérias as insinuações que este fez em seu blog, e ele deveria apresentá-las ao governo. A declaração de Ricardo Aleixo torna-se importante aqui, por ser um dos jurados do edital de 2008/2009 da Petrobrás e viver muito longe das intrigas de boteco de São Paulo, assim como já foi publicado na revista editada por Claudio Daniel e na revista editada por Carlito Azevedo, com um nome impecável e idôneo. Vale lembrar que o mesmo edital concedeu bolsas aos autores Ricardo Corona e Diana de Hollanda, além de Edson Cruz e Andréa del Fuego, do conselho editorial (vejam só) da revista Zunái, de Claudio Daniel. Onde está, eu insisto, o boicote e monopólio que este senhor afirma existir?


Se o conceito de “neobarroco” algum dia teve alguma seriedade, nas ideias de poetas como Haroldo de Campos, Severo Sarduy ou mesmo em poetas importantes como Néstor Perlongher, a partir da década de 90 e com o uso interessado que dele fizeram homens como Claudio Daniel, tal conceito transformou-se, este sim, em mero jogo de marketing, tentativa de fundação dogmática de “escola”, grupo com antologias próprias, obliterando as diferenças mesmo entre os poetas que inclui e, obviamente, excluindo poéticas divergentes. Já se tornou costume, especialmente de Claudio Daniel, falar sobre "poesia contemporânea" ou editar antologias da poesia "do novo milênio" (notem a megalomania), em que comparecem, muitas vezes, apenas autores ligados a certo "neobarroco", que aos poucos transforma-se, de conceito sério em Haroldo de Campos e Severo Sarduy, em nada mais que slogan, do qual Claudio Daniel quer ser o pontífice no Brasil. Tal poética abandonou qualquer discussão de forma, função e contexto poéticos, transformando-se em fórmula, manifestando-se no trabalho de Claudio Daniel, por exemplo e em minha opinião, como neosimbolismo aguado, diluição da est-É-tica da poésie pure e do expressionismo, gerando uma espécie de neosurrealismo ou outro neo qualquer, já que, em Claudio Daniel, o MAKE IT NEW de Pound torna-se mero MAKE IT NEO. Mesmo os poetas envolvidos parecem aos poucos tentar se afastar, pois os mais inteligentes sabem que se este “balaio de gato” ajudou, em um momento inicial, a ter certa visibilidade e conseguir publicação, a longo prazo esta obliteração de diferenças em nada ajudará a discussão sobre a poesia brasileira contemporânea ou sobre seus próprios trabalhos. Ninguém mais leva a sério estas oposições simplistas, este debate já se decompôs em vários países latino-americanos.

Quanto à crença de Claudio Daniel, de que Carlito Azevedo possui o Fiat Lux, como um demiurgo capaz de “inventar poetas da noite para o dia”, como ele diz ser o meu caso, como comentar de forma elegante uma ideia tão estapafúrdia? Certamente não vou me propor aqui a tentar provar que existo ou cometer o ato feio de listar “conquistas” ou fatos do gênero. Meu trabalho é bastante acessível na Rede, a quem quiser tirar suas próprias conclusões. Eu mesmo publiquei uma pequena seleção de poemas neste espaço, caso alguém queira seguir o desafio deselegante de Claudio Daniel. Prefiro mostrar trabalho: na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., qualquer um pode encontrar a centena de artigos e traduções que venho publicando naquele espaço desde 2007.

Tudo isso não passaria de mais um episódio de paranóia e leviandade deste bufão-mor, se não fosse tão séria a falta de respeito com que tratou várias pessoas que têm sido extremamente generosas, como Carlito Azevedo, que abriu as páginas de sua revista para o trabalho de vários poetas jovens. Poetas, obviamente, que ele aprecia ler e respeita, como qualquer editor sério o faz. Imagino que o próprio Claudio Daniel defenda assim seu trabalho de editor.

Também vale mencionar que Angélica Freitas e eu, a quem Claudio Daniel menciona abertamente como inimigos da boa poesia, já publicamos em nossa revista impressa, com os outros dois coeditores da Modo de Usar & Co. (Marília Garcia e Fabiano Calixto), jovens poetas brasileiros que foram editados por Claudio Daniel, como, por exemplo, Andréa Catrópa, ou o mesmo Eduardo Jorge que ele tão deselegantemente sugere que seja “comparado” comigo, unindo a ele outros dois poetas, tão diferentes entre si quanto o próprio E. Jorge (poeta a quem respeito e com quem já dialoguei de forma civilizada e frutífera) e eu. Na Modo de Usar & Co., publicamos poetas que também apareceram nas páginas de várias outras revistas, incluindo a deste senhor, como, por exemplo, Danilo Bueno, Izabela Leal e Gabriel Beckman. Se fôssemos tão sectários quanto ele, faríamos isso? Onde, meu caro, o boicote, a máfia?

Minhas críticas são feitas no caráter de debate est-É-tico entre poetas. Não sinto a menor necessidade de influenciar leitores que talvez encontrem algum prazer nos poemas deste senhor. Ele deveria apenas aceitar que há, sim, pessoas que encontram prazer em ler poemas de Carlito Azevedo, Angélica Freitas e meus, com todas as nossas diferenças. O primeiro livro de Angélica Freitas, intitulado Rilke shake, esgotou no Brasil a primeira tiragem de 1.500 exemplares e está prestes a ser publicado em edição bilíngue aqui na Alemanha, como parece estar também sendo traduzido na Argentina. Será mesmo que estes mais de 1.500 leitores, em dois continentes, são andróides comandados por Carlito Azevedo? Ou serão leitores que encontraram, no trabalho desta autora, algo que não encontraram em outros, seja no trabalho de Claudio Daniel ou no meu?

No entanto, faz muito tempo que Claudio Daniel pratica estas ações de caráter questionável. Sua leviandade ultrapassou todos os limites, posando agora como salvador, isento de interesses, do dinheiro público. O aspecto ridículo deste senhor se torna ainda maior quando percebemos sua demagogia e hipocrisia, sendo ele o mesmo Claudio Daniel que esteve envolvido no escândalo da FUNARTE em 2008. Já que se gaba tanto dos ensinamentos de Buda, que, em minha opinião, funcionam em sua mentalidade apenas com o mesmo exotismo de fim-de-século dos poetas a que deveria ser comparado (ou ele demonstraria maior equilíbrio espiritual), seria muito melhor para a poesia brasileira se meditasse um pouco mais, antes de iniciar guerras nada santas contra o trabalho de poetas que, se não são respeitados por ele, o são por outros.

.
.
.

Arquivo do blog