sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Poemas de William Zeytounlian



William Zeytounlian é um poeta brasileiro, nascido em São Paulo, em 1988. O poeta nasceu no seio da comunidade armênia paulistana, e este é um fator determinante em sua escrita. Formado em História, o autor desenvolve hoje um trabalho de pesquisa sobre a História do século XVII, uma "História dos comportamentos silenciosos", a partir de tratados e máximas morais da época de Luís XIV. Sua história familiar e memória contituem outro aspecto importante, com o relato do massacre de sua família no Genocídio Arménio, perpetrado pelo Governo Otomano (hoje Turquia) em 1915. 

Esse genocídio, que os armênios chamam de Mets Yeghem, ou Grande Crime, é pouco discutido e conhecido, e até hoje ainda não foi reconhecido pelo Governo Turco. Este silêncio sobre ele, segundo historiadores, serviria de inspiração e incentivo para aquele genocídio que outro povo sofreu no século XX, chamando-o de Shoah, a Catástrofe. O armênios também usam a palavra Aghet, catástrofe, para o extermínio de seu povo nas mãos do governo dos Jovens Turcos, liderado por Talaat Pasha (1874–1921).

Nas palavras de Zeytounlian, "a violência como estratégia política e o cínico processo de construção de uma subjetividade em uma cidade que se destroi (SP)" estão ainda entre seus interesses como poeta.

O protesto político é um terreno escorregadio para a poesia. Mas acredito que os poemas de William Zeytounlian fincam seus pés, nos melhores momentos, em uma clara preocupação melopaica e no que me parece uma leitura atenta do trabalho de Maiakóvski (via Schnaiderman/Campos), como se pode notar especialmente em um texto como "A morte de um homem livre". Sua lírica concisa em alguns dos outros poemas, se ligada à prática objetivista na cidade de São Paulo dos últimos anos do século passado e início deste, diferencia-se mais uma vez por um claro talento e preocupação com a sonoridade. Há experimentação de linguagem ainda em textos plurilíngues, como o interessante "Shibolet II".

Seu trabalho foi incluído na antologia de poesia contemporânea É Que Os Hussardos Chegam Hoje (São Paulo: Editora Patuá, 2014). William Zeytounlian é, além de poeta, um dos principais esgrimistas brasileiros. Vive entre São Paulo e Paris, e escreve sobre literatura no espaço I Beg Your Pardon, no qual também publica poemas e traduções. Pretendo acompanhar seu trabalho com atenção.

E conforme vou acompanhando seu trabalho, vou pensando que ainda não posso dizer se, como esgrimista, ele é um poeta, mas ele me parece certamente ser um poeta com talento de esgrimista.



POEMAS DE WILLIAM ZEYTOUNLIAN

divina violência

O CINISMO PEDE AOS DESPOSSUÍDOS QUE ACEITEM O ULTRAJE COMO UM DEVER MORAL. O ÚNICO DEVER MORAL DOS DESPOSSUIDOS É DESTRUIR O CINISMO COM ULTRAJE.

haveria –
ode ou elogio –
senda sutil
ou suportável –
em que eu pudesse
ponderar o indizível,
em que eu pudesse
inscrever o que é
execrado;
                     para que um
                     entendimento
                     transtornado
                     se tornasse,
                     enfim,
                     inteligível?


§

A soma

trás um verso,
estranho léxico
em regresso –

inversa assim
a dúvida que
assoma a dívida
  reincidente,
  antiga,
   rediviva:

o velho dedo
que envereda
na ferida.

§


[Gesto alheio]

Gesto alheio
eco do afeto
há muito
dispensado:

eu te
acreditava
morto.

do rastro
de que lapso
te recuperei?

como no mastro
da mente
icei
o pano do rosto
difuso,
novamente?

Gesto alheio
eco do afeto
há muito
dispensado:

a tudo escapado,
menos ao ato
de um átimo,
ao traço esparso
de um
momento.


§

Armênia

há uma dimensão dupla da história escrita a partir dos depoimentos de um sobrevivente. certamente é um discurso sobre o passado. mas antes de tudo, é um discurso sobre o presente, ou antes, um discurso sobre o projeto que o sobrevivente tem sobre o interlocutor. com um sobrevivente, entramos na vala coletiva do passado com nossas roupagens atuais, como os apóstolos de um quadro renascentista ou dante no inferno.

o alfabeto sobre o escudo
revela a relva, a areia abreviada
nós, devir débil sopro surdo
nós, memória e olvido de uma raça


§

Debater política

NA CRISE, UM ROMPANTE DE LOUCURA É UM DELÍRIO DO REAL.

tudo
melífluo,
incerto,
certos versos
insistiam
em voltar:

vagavam
aqui e acolá
em raros
intervalos –
interstícios
do hospício.

hoje, têm
sentido;
têm abrigo:

loucos
são os
outros.

§

Imperativo categórico

A NÃO-VIOLÊNCIA É UM LUXO DO QUAL NEM TODOS PODEM SE SERVIR.

oráculo manual
um gesto desenha
palavras:

o passado se funde
ao futuro
com um passo –

a verdade de si
tem o vigor das
verdades –

nada mais
senão unir
o ser ao tempo
o dever ao devir.

§

A morte de um homem livre


A ‘L’ MAIÚSCULO QUE DEVEMOS À PALAVRA ‘LIBERDADE’ É TÃO PROVISÓRIO QUANTO NECESSÁRIO

I.

um tempo cego
descortina –
desgarra-se
impassível
à rotina:

um homem livre
está morto
e minha mente vaga
na neblina virgem
do dia.


cedo ou tarde
brotaria a lástima
a contrapelo
de nossos gritos –
a contratempo
de nossos apelos 
a vida lavra
o momento
da palavra:


                       morto.

vã é a luta
(é sabido de tudo):
sobretudo o luto
bebeu e brindou
sua cota de versos.


nova é a batalha
rasgada com a navalha
no horizonte
do hoje;
na aurora da hora
que desatina o
presente
é preciso estar vivo
é preciso ter força
matar o cinismo
jovem
antes que sepulte
a ideia de um homem
junto com seu corpo.

II.

do palácio
um inimigo da liberdade
brinda a coragem
do homem livre;
a palavra ‘humanismo’
ressoa pálida
entre seus lábios.

na catedral fria
o governador
encomenda um réquiem
hipócrita,
reza com ardor
olha ao teto absorto:
agradece a deus
que um homem livre
está morto.

o partido encomendou munição
para homenagear
o homem livre:
a saraivada
será disparada
contra a fila
trêmula
de dissidentes.

um presidente
lamenta
sinceramente
todos riem
todos choram
há palavras
e gestos
o suficiente
para deixar o ar
com náuseas.


mas um homem livre
sabe
que um homem livre
não precisa
de carícias falsas
para dormir tranquilo:
menos ainda
para
MORRER.

III.

gravamos
nossos nomes
nos muros
onde fuzilaram
uma raça
e querem apagar
o único alfabeto
que nos restou –

sentam-se sobre
as dobras
de um milênio
de barbáries
e querem fumar
a memória
da humanidade
em um cachimbo.
o momento é incerto,
                       é obscuro.
mesmo a poesia
queima
na fogueira
do absurdo.
até a crise
está em crise:
a saída
é um tiro surdo,
no escuro.

mas é verdade
que vagamos demais
sobre a vala comum
da humanidade
para esquecermos
por vaidade
e tão cedo.

§

poema shibbolet II (experimentação)

de acordo com a bíblia (juízes 12:1-7), na guerra travada entre os efraimitas e os galaaditas, os efraimitas eram reconhecidos (e consequentemente mortos) por não conseguirem pronunciar a palavra 'shibbolet' (pronunciavam 'sibbolet'). hoje, diz-se que um shibbolet é a palavra de uma língua qualquer cuja pronunciação é impossível para estrangeiros. há muitos casos históricos e fictícios de genocídios baseados na prova do shibbolet: distinguia-se o outsider por uma frase ou palavra e, em seguida, o matava.

o poema abaixo se utilizou de shibbolets em catalão, português, dinamarquês, russo, polonês, castelhano, frísio, finlandês e holandês.


schibbolet II
william zeytounlian

Setze jutges d’un mengen
Fetge d’un penjat
Pão, garbanzo, scheveningen,
En griene tsiis wa’t dat.

Soczewica, net sizze kin
Francisco höyryjyrä
Rødgrød med młyn
Doroga, fløde, brea.

Se a fenda boquiaberta
Abismasse o verbo enfim
Ao intent d’alma inquieta

No words would claim within.
Encore…
dans la rive
        sonnerait
Son
profond
 schibbolet.

§

poema shibbolet


shhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh
hhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhibbolet   
§

[Do pacto dos viventes]

Do pacto dos viventes
O ato final seja selado

Que a sela dos carros
De sol nenhum coroado
Hasteie enfim o surdo
E pálido murmúrio
Que treme nervoso e silente
Dentre os gritos vãos
De nossas chagas.

§


Festa monstra
(detalhe epigramático)

asco? nojo?
aqui não!
não hoje!

resistir ao
doce gozo
é coisa pouca,
é coisa vã:

eu adoro
o cheiro
de napalm
de manhã.

§


atraso e eminência

beckett cioran proust certeau rochefoucauld agamben
todas as frases que li nos últimos 10 anos são viscerais
absolutamente vitais. imprescindivelmente exigentes
é preciso que se viva de alguma forma           aquilo
as penas mergulhadas nas trevas do presente
intempestivamente exige-se um sacrifício ou gesto
shakespeare dostoiévski foucault levi baudelaire


                          não sei o que fazer.


§

Sobre a História do silenciado genocídio armênio, assista ao perturbador Aghet - Um Genocídio (2010), de Eric Friedler.



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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Donizete Galvão (1955 - 2014)

Perdemos outro poeta. 
Morreu esta madrugada em São Paulo o excelente poeta brasileiro Donizete Galvão (1955- 2014). 



POEMAS DE DONIZETE GALVÃO

Oração natural

Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas 
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
Fique atento.
A atenção
é sua forma natural 
de oração.

§

Diante de Uma Fotografia

O Tietê não é o Neva.
E nada no Curtume
lembra a sua Peter.
Galpões de fábricas
estendem-se sem rigor,
sem história ou forma.
Sucessão de chaminés,
caos de telhas de zinco.

Este é o lugar da cadela esquálida,
dos trens que gemem no subúrbio,
dos peões vestidos de azul e graxa,
dormindo ao meio-dia na calçada.
Na fila do almoço, o rebanho todo
estende suas bandejas de plástico.
Há fuligem nas janelas, nos olhos,
na sola dos sapatos. Nos cérebros.

Anna, as sereias do Báltico
não cantam aqui suas cantigas.
No mar das impossibilidades,
deixaram-me uma fotografia.
Vejo você - estrangeiríssima.
A curta franja dos cabelos.
O nariz forte. O desenho da boca.
A mão pousada no pescoço
que Modigliani um dia desenhou.
E no olhar felino, cinza-claro,
pressinto paixão e dor contida.

Anna Ahkmátova,
poeta de nome inventado,
lança sobre mim o claro raio
dos teus olhos líquidos,
para que minha alma não vire pedra.
Não quero morrer de sede,
sem ouvir a voz da língua.

§

Fiapos

            a José Paulo Paes 

Sei que sei
não sei bem o quê.
Saber não revelado,
ainda envolto em
membrana de placenta.
Lembro-me de que preciso
lembrar de uma coisa
que não deveria ser esquecida.
Lembrar de quê?
De um território que se espraia
em sua mudez de azul?
De uma palavra soprada
em tempos de antes de eu nascer,
que na tarefa de viver
caiu no esquecimento?
Num lapso, às vezes,
parece que me lembro
e a lembrança passa
sem que fique registro.
A luz de Apolo
roça minha cabeça
sem que arrebatá-la
eu possa.
Por ela, esmolo.
Rendo sacrifícios.
Ignora-me.
Vai-se embora
com suas chispas.
Ficam fiapos,
cacos, esboços.
Logo, desmemoriado,
quedo-me cego
e abandonado.

§

Invenção do branco

                 “...all this  had to be imagined
                      as an inevitable knowledge.”
                                      Wallace Stevens

O tanque é o avesso da casa.
A rebarba.
A ferrugem tomando conta da boca.
O tanque é a parenta decaída,
que machuca os olhos das visitas
com suas carnes rachadas.
O tanque é onde se lava o coador
e o pó de café de seguidas manhãs
desenha uma poça de água preta.
Uma arraia-miúda,
ervas e craca e limo,
flora sem -vergonha,
infiltra-se em suas paredes.
À beira do poço,
alguém imaginou copos-de-leite.
Bebendo a umidade,
em verde e branco brotaram.
Reinventados pela distância,
erguem-se vívidos,
mais brancos que o branco,
artifício de vidro.
Recém-nascidos.
Só porque eles existem,
o tanque e seu corpo saloio
foram salvos do esquecimento.

§

Recomendações

Ao cavaleiro desencarnado,
com sua égua de gás hélio,
recomendo ouro, prata e chumbo.
No meio do seu caminho,
mero pedregulho transmuta-se
em rocha, penedo, penhasco.
Mínima ponta de agulha fura
sua armadura hiperbovarista.
Nem figos envenenados
sustentam-lhe  a fome.
Tudo o que toca some. Evapora.
Ponha os pés no chão,
para que o minério de ferro
neles grude e forme um casco.
Ninguém vai ouvir falar do seu nome.
Escuta o resumo de sua vida:
um espasmo, um sopro que não soa
além da grade de sua casa.

§

Solilóquio de Nina Simone

Habitou-me um deus espesso.
Sangue cor de fígado.
Veneno talhado, macerado e amargoso.
Fez morada em cada célula.
Nos alvéolos, nas entranhas, sob as unhas.
Expande a veia do pescoço.
Sangra pelas gengivas.
Lateja nas têmporas e nos pulsos.
Planta arrancada da terra africana,
deita suas raízes fundas de baobá
e traz gosto de lama à boca.
Tem sabor atávico a relembrar
o lodo de que se originou o homem.

Habitou-me um deus exigente,
que me fere e exaspera.
Que espezinha o que eu era.
Que fala o que eu não pensara
e, dizendo-me ao contrário,
faz-me gostar do calvário
que, às cegas, eu criei.
Nomeio que não tem nome:
Raio de Iansã, trovão, ciclone,
Sopro de Orixá, c´est moi
Nina Simone.

§

Fachada

Logo vai terminar o prazo
para o homem construir sua fachada.
Ele continua em andaimes.
Provisório.
Exibe máscaras cambiantes.
Sua face inconclusa,
sustentada por ferragens,
parece esconder que,
em todos esses anos de obra,
ergueram-se inúteis plataformas
para edificar um escombro.

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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Minha tradução para a "Todesfuge" de Celan


Na segunda-feira, dia 27 de janeiro, comemorou-se a data de lembrança das vítimas do extermínio nazista, a terrível Shoah, assim como o extermínio de homossexuais, Romani, e outros povos e grupos naqueles anos de trevas densas. Postei na página da Modo, nas redes sociais, minha tradução para a "Todesfuge" de Celan, assim como traduções para poemas de Rose Ausländer, Dan Pagis e outros sobreviventes. Esta tradução é de 2008 e havia aparecido apenas em meu ensaio "Tradução, contexto e migrações possíveis", publicado naquele ano na revista Germina. Este poema já foi traduzido várias vezes para o português. Minha tradução leva em conta várias destas traduções, ao menos as que conheço, e tenta apenas apresentar uma outra possibilidade.




Fuga da morte

Leite negro da madrugada que bebemos à tardinha
nós bebemos ao meio-dia e de manhã nós bebemos à noite
nós bebemos e bebemos
cavamos uma cova nos ares onde possamos espreguiçar-nos
Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve
que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete
ele escreve e posta-se diante da casa estrelas chamejam ele assovia conclama seus cães
ele assovia enfileira seus judeus faz cavarem na terra uma cova
ele ordena desferi os violinos agora chacoalhemos os esqueletos

Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos à tardinha
nós bebemos e bebemos
Certo homem habita a casa e brinca com víboras que escreve
que escreve quando escurece à Alemanha teu cabelo doirado Margarete
Teu cabelo cinzento Sulamita nós cavamos nos ares uma cova onde espreguiçar-nos
Ele grita pás mais fundo no miolo da terra vós e vós cantai e tocai
ele alcança o ferro na cintura agita-o nos ares seus olhos são azuis
mais fundo com as pás mais alto com os violinos chacoalhemos os esqueletos

Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos à tardinha
nós bebemos e bebemos
Certo homem habita a casa teu cabelo doirado Margarete
teu cabelo cinzento Sulamita ele brinca com víboras

Ele grita dedilhai com mais doçura a morte a morte é especializada na Alemanha
ele grita desferi azuis os violinos e escalai como fumaça aos ares
assim tereis uma cova nas nuvens onde podeis espreguiçar-vos

Leite negro da madrugada nós te bebemos à noite
nós bebemos ao meio-dia a morte é especializada na Alemanha
nós bebemos à tardinha e de manhã nós bebemos e bebemos
a morte é especializada na Alemanha seus olhos são azuis
ele acerta teu corpo com balas metálicas acerta na mosca
certo homem habita a casa teu cabelo doirado Margarete
ele atiça contra nós seus cães brinda-nos com uma cova nos ares
ele brinca com víboras e sonha a morte é especializada na Alemanha

teu cabelo doirado Margarete
teu cabelo cinzento Sulamita




(tradução de Ricardo Domeneck)

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terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Poemas de Reuben da Cunha Rocha


Reuben da Cunha Rocha é um poeta, artista visual e crítico brasileiro, nascido em São Luís do Maranhão a 28 de junho de 1984. Também assina cavaloDADA. Publicou o ensaio "Ficção-Verdade: fronteira semiótica na montagem narrativa de Valêncio Xavier", traduziu poetas norte-americanos como Allen Ginsberg, Bill Knott e Richard Brautigan, e colaborou textualmente com os xilógrafos Ana Calzavara e Fabrício Lopez no álbum Miragem no olho aceso (2013).

Texto de Reuben da Cunha Rocha/cavaloDADA em Miragem no olho aceso (2013).


Em 2012, apresentou-se em Nottingham, Inglaterra, com a performance CAIXAPREGO na Backlit Gallery, durante o World Event Young Artists.

Reuben da Cunha Rocha / cavaloDADA - "CAIXAPREGO" -
em apresentação na Backlit Gallery, 
Nottingham, Inglaterra, 2012.

Trabalha também com poesia visual, exemplo da qual seria sua série de "pixo transmídia", publicada na revista randomia.

Reuben da Cunha Rocha / cavaloDADA - "pixo transmídia"



Tem sido um colaborador contumaz da Modo de Usar & Co., com traduções e ensaios sobre e.e. cummings, Kenneth Rexroth, Cátia de França e Linton Kwesi Johnson. No terceiro número impresso da revista, publicou aquele que me parece um dos ensaios indispensáveis para o debate poético contemporâneo, "Poesia inútil, poesia irrelevante?", já publicado também aqui. Considero-o uma das forças mais positivas e impressionantes a surgir na poesia brasileira da novíssima geração. 

Reuben da Cunha Rocha, ou cavaloDADA, vive e trabalha em São Paulo, onde coedita a revista randomia e colabora com diversas outras publicações, entre elas a Modo de Usar & Co., para sorte de todos nós. O quarto número impresso da nossa revista, lançado no mês passado, traz dois poemas inéditos do autor.



POEMAS DE REUBEN DA CUNHA ROCHA (cavaloDADA)


Praça do Sol às 3 da tarde
risca o fósforo do incendiário
Praça do Sol às 3 da tarde
abre as narinas p/ o fedor dos muros
Praça do Sol às 3 da tarde
esconde a senha dos holocaustos
Praça do Sol às 3 da tarde
enerva cada coração covarde
Praça do Sol às 3 da tarde
aponta os mísseis à glória
Praça do Sol às 3 da tarde
depila as tuas rameiras
Praça do Sol às 3 da tarde
apascenta teus ambulantes
Praça do Sol às 3 da tarde
despista o fumo dos policiais
Praça do Sol às 3 da tarde
oculta o raio do cego
Praça do Sol às 3 da tarde
acode o baque das ondas
Praça do Sol às 3 da tarde
distrai o tédio do pipoqueiro
Praça do Sol às 3 da tarde
loas ao biquíni túrgido
Praça do Sol às 3 da tarde
acorda a renca dos ventos
Praça do Sol às 3 da tarde
diz a gíria do guardador de carros
Praça do Sol às 3 da tarde
toma gosto c/ as empregadas
Praça do Sol às 3 da tarde
pendura a nuvem nos galhos
Praça do Sol às 3 da tarde
trocados ao vendedor de coco
Praça do Sol às 3 da tarde
ouvido ao reggae das bacantes
Praça do Sol às 3 da tarde
Praça do Sol às 3 da tarde
Praça do Sol às 3 da tarde
devora a muvuca das gentes
cede teus bancos às fodas
legisla a rixa dos traficantes
senhora injuriada das trapaças
abre tuas pernas p/ os pivetes
engole o mijo da criança

§

perde os sapatos quando falo
esquece os sapatos
desfaz o embrulho do laço

tem 1atalho q dá na tua estrela
reviro os olhos no voo da abelha

aceso, teu nome
na cinza do skank
acolhe a saudade
nossa pena doce

minha febre é 1ataque de cócegas

o fofão q brinca c/ a criança
decifro antes de entender teu jeito
desse jeito tu dança
veloz e livre igual 1grilo

feliz e leve sou a terra toda
pequena cavalo do som

esquece os sapatos quando falo
perde os sapatos
desfaz o caroço do cadarço

§


Reuben da Cunha Rocha / cavaloDADA - "pixo transmídia"


§


teu cabelo de espuma
sol cabeça de coruja
estou pesado como as ondas
tua cabeleira no azul

é a segunda vez
q dás o ar da graça

a primeira: pássaro
em pleno pouso
no braço do vento
adubando o som no bar
dos maconheiros

a segunda:
o rosto desfeito
em luz difusa
revoltas o ego
n1 espasmo
dissipas o ego
governado
pelo medo

§

vem o cheiro da chuva: passa
o rasta faz sinal: o céu desaba
dispersa o baculejo na zona
o astronauta atravessa
a rua: pousa e passa
na raiz da árvore: ñ recua
da experiência mundo
se despega da perda: entra
     noutra história


(in Miragem no olho aceso)
 

§

 cavaloDADA + Tazio Zambi - "z de zero" (2013) 


§

A professora ensina a empalhar
personagens
operações universais, aplicáveis
ao trabalho de cada 1 dos presentes

A professora ñ acerta
ñ tem certeza
se me conhece doutro lugar
Quem dera estar
noutro lugar, quem dera enforcá-la
c/ a palavra corpus, usar
os dentes dela p/ triturar
a palavra objeto

Nada q vale a pena de ser lido
pode estar contido
na palavra objeto
quando 1texto está de pé
ñ vem c/ essa

São assim (p/ ficar nos gêneros clássicos)
a desobediência e o assalto a banco

Ó feiura estatística, sem amor
ou música das estudantes de Letras
acabadas feito Obras Completas

§




José Agrippino de Paula
salta bem em cima
d1 texto em progresso. Solta
pelos nas teclas
amassadas do teclado
do computador
em branco

Éguas, Agrippino! assim
seremos 2 a ficar carecas
digo p/ o gato
enquanto noto
meu próprio
pelo tomar conta
do ladrilho
branco

Noutro tempo
tínhamos 1gato
mas ñ se chamava
assim, José
Agrippino de Paula
, era a invenção
d1 poeta inglês
1q sempre desaparecia
à hora q queria
deixando p/ trás
pouco mais
q 1sorriso

Levanto
d1 txt em progresso
p/ abrir a janela
O vento, tlvz
1enciumado
poeta inglês
arrasta p/ si
nossos pelos e antes
q eu possa checar
se ñ terá levado
também as palavras
q abri na tela, tu

abre a porta
de casa, sacolas
nos braços
a sombra sozinha
da nuvem ilhada
no meio da água


§

TELEGRAMAS DA L.A.I.A.

1FABRICANTE DE PIANOS (SCHMIDT, DE ESTRASBURGO) CONSTRUIU A 1aGUILHOTINA. “SE ALGO EXISTE DE CERTO NESSA VIDA, SE A HISTÓRIA NOS ENSINA ALGUMA COISA, É Q SE PODE MATAR QQR1”. CUIDADO C/ O TRUQUE DO ELOGIO COMO FORMA DE CONVENCIMENTO

MESMO C/ 3DIAS DE ATRASO, A LEITURA DO JORNAL PERMANECE DESINTERESSANTE. LEGALIZE A FRUTA Q LAMBUZA. ABAIXO A CÓPIA AUTENTICADA. (TODO MUNDO SABE Q) A VIAGEM NO TEMPO ESTÁ COMPROVADA PELA PRESENÇA MACIÇA DE CABEÇAS DO SÉCULO RETRASADO NESTE

A TERRA É 1TAPETE VOADOR. 1CABEÇA Q CONVERSA É COMO 1UNIVERSO. O TELEJORNALISMO NOS DÁ VONTADE DE BATER C/ AS CABEÇAS NA PAREDE (Ñ AS NOSSAS CABEÇAS). E Ñ ADIANTA ALIVIAR C/ A TELENOVELA

A ÚNICA COISA PIOR Q 1GOVERNO É 1GOVERNISTA. O POLÍTICO CONSERVADOR PODERIA SE INSPIRAR NO ARTISTA CONSERVADOR E AO MENOS SE TORNAR INOFENSIVO. LEGALIZE O SOL ANTES DAS SEIS

NA CLASSIFICAÇÃO GERAL DE TUDO O Q É TRISTE
O PENSAMENTO POBRE PERDE
P/ O PENSAMENTO CONVENIENTE


(in As aventuras de cavaloDada em + realidades q canais de tv)

§

TESTE DE INDETERMINAÇÃO INDUZIDA


materiais: luz, ônibus, paisagem

dentro d1 ônibus, c/ destinação variável, posicione-se ao sol. A preferência é por horários em q a incidência de luz favoreça a formação de sombras a partir do exterior do veículo e por durações amplas, c/ razoável transformação de paisagem. (Desaconselha-se o verão.) Trânsito fluido (se ñ livre) facilita a experiência. Casas, prédios sem nenhuma coerência arquitetônica, árvores c/ folhagem de densidade variável, túneis, aviões e outras naves, nuvens, são voluntariamente derretidos durante o trajeto n1 único filtro de luz sobre a superfície dos corpos dentro do ônibus. A ambiência (grande tubo de metal, pneus dando esparro) dá 1ideia de caleidoscópio c/ pigarro, e a mutação das sombras destila suave lisergia


materiais: quadril, coxas, biblioteca

no interior da biblioteca, durante a leitura, prossiga n1a boa enquanto aguarda, sentado. A bateria de samba se posiciona no espaço contíguo à biblioteca (ou seja) no verso d1a parede próxima, q no modelo utilizado acompanha vasta área livre. A qqr momento a bateria dá início à música (q estimula quadril e coxas). Certifique-se de ñ fazer nada. Siga resolutamente a leitura, permitindo a quadril e coxas q pensem por si mesmos, estimulados pela dinâmica das vibrações. Em pouco tempo (espontaneamente) o corpo se empenha em mil posições na cadeira ocupada, beneficiando postura, respiração e humor


materiais: alimento sólido, caixa craniana

durante a explicação, mastigue. O tema discutido ñ altera o experimento, pois seu verdadeiro conteúdo é o desejo de ñ estar ali. “Ali” designa espaços variados: sala de aula, debate, reunião, importantes discursos. Importante também o conteúdo q se leva à boca, dando-se preferência aos crocantes, q amplificam a ação acústica produzida por maxilar, dentes e ouvido interno. (A depender do alimento escolhido recomenda-se acompanhamento médico.) O crânio desempenha o papel de caixa ressonante p/ seu portador (de efeito imperceptível p/ os circundantes) e solapa a fala externa


(in As aventuras de cavaloDada em + realidades q canais de tv)

§

Autorretrato enquanto retirante

p/ essa cidade
eu vim trazer
preguiça

gíria lânguida
“ñ perturbe”
no pórtico,
contrabando

pelo andar
da minha
rua (onde no
início a banca
de revistas
fechava qdo
muito aos
feriados
e hj ñ abre
+ p/ nada)
parece quase
certo q anda
tudo rente
ao plano

exceto claro
pelo amor
elétrico q
lanço a essa
zona
ambivalente
cidade
anômala

lépido
o amor q lhe
dedico
quase encalça
a pressa c/ q
me aplico
nos jornais
aos títulos
às listas
de 10+
e aos
retrospectos
de final
de ano

(Publicado originalmente aqui na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., na série de inéditos).

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