quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

Diane di Prima para a Modo de Usar & Co.

Publiquei hoje, na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., traduções para 4 poemas de Diane di Prima, poeta nova-iorquina ligada aos Beats de Nova Iorque e San Francisco, e nascida em 1934. Uma das poetas budistas mais raivosas que já li. Diane di Prima, ainda vivinha-da-silva, mora na Califórnia, após sobreviver à esbórnia.
Muitos n
ão tiveram a mesma sorte, senhoras e senhores.




Amostra:


Fragmentos de um discurso ao FBI

Ai vocês de borsalino ou impermeável dão testemunho
Dos dias fugidios, data & horário?
As viagens de metrô a amantes esquecidos
(Vocês em verdade os têm para sempre, identidade & 3x4?)
Os velhos números de telefone, cujo ritmo não mais
Canta por nós, descrições de carros há muito mortos?
Ai ternos cronistas de nossas vidas irisadas
Benditos obreiros no arquivo labiríntico
Querubins gravadores que relegarão ao fogo
Identidade & formulário, papéis e corpo enquanto nós
Ascendemos em cânticos acima das árvores


O estimado leitor pode ler as outras traduções e seus originais na Modo de Usar & Co.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

H.C. Artmann (1921 - 2000)


H.C. Artmann nasceu em Wien-Breitensee, na Áustria, em 1921. A partir de 1947, seus textos começam a ser divulgados pelo rádio e na revista Neue Wege, além de fazer várias leituras no lendário Art Club. Em 1952, une-se aos poetas Gerhard Rühm, Konrad Bayer, Friedrich Achleitner e Oswald Wiener, todos mais jovens que ele, com quem forma o que ficou conhecido como Wiener Gruppe (Grupo de Viena). Seu trabalho com a oralidade e o dialeto vienense teria grande influência sobre os seus companheiros. Em 1958, ano em que se distancia das performances e intervenções do Grupo de Viena, Artmann publica a coletânea de poemas dialetais med ana schwoazzn dintn, que viria a se tornar um dos livros de poemas mais populares da Áustria. Poeta e prosador, H.C. Artmann traduziria ainda François Villon para o "vienense" no volume Baladn. Nas décadas que se seguem, estabelece-se como um dos poetas centrais na Áustria do pós-guerra. Teve um papel importante na revalorização da obra dos poetas germânicos de vanguarda do entre-guerras, como Hans Arp, Hugo Ball, Raoul Hausmann e Richard Huelsenbeck. Publicou, entre outros, os livros verbarium (1966), Die Anfangsbuchstaben der Flagge (1969), Das im Walde verlorene Totem (1972) e Aus meiner Botanisiertrommel (1975). Recebeu o Georg-Büchner-Preis em 1997. H.C. Artmann morreu em Viena no ano 2000.



H.C. Artmann

querida idolatrada orquídeanil prima ballerina
de chemnitz a missiones poughkeepsie u.r.s.s. recommandé
à senhora eu envio esta carta de amor
para que possa encaixá-la em seu lac de cygne
como um pássaro sibilante a mais a migrar
na pejada concha do céu junino da ômegabóboda
no recém-restaurado átrio da sinfônica do estado aleluia
eu sou em verdade um sem-vergonha um sacropândego
um heitor vira-copos a patinar campinas
por ousar dirigir esta carta a seu pas
de deux
mas eu nada exijo não eu tão-só peço-lhe
que aceite as pérolas que lanço a seus corpos
todos os seus sonhos misericordiosa sra.! saúdo-a! sua bença!
minha filiforminha escrita à pena minha carta em claro
minha extraordinária orig. pat. insígniaficante
como nada mais peço-lhe que a aceite como
um homem de princípios um rolls royce 59 uma ferrari 60
polidactilocomotiva a engatinhar para las vegas tou-tou
tou-tou tou-tou
uma banheira sob-medida no maksoud em são paulo
um swing em pub & cócegas em núcleos ricos de novela
em alphaville em estilo casa-grande-e-bengala do eng. arq.
e urbanista komudyabusxamavaoblableblufu-
lanim
e caso tudo isso não lhe chegue aos pés pois seja
ainda
uma diva radiante em sua próxima performance
a 23 deste 19h30 em ponto horário de brasília
merda merda merda
e uma ovação entre 69 cortinas e chuva de
rosas champagne
deus sobre os montes! o que deveria nem tudo
e que por certo nem tudo será minha epistolazinha
minha clara-neve
minha belíssima
minha fofa
minha tu tu
minha toda toda papoulacreponizada
via aérea par avion luftpost u.a.m.
no trajeto entre aa & bee

(tradu
ção de Ricardo Domeneck, publicada no número de estréia
da revista Modo de Usar & Co.)


§

liebe verehrte orchideengrüne primaballerina
aus windsor am kamp massachusetts udssr recommandé
ich sende ihnen diesen liebesbrief
dass sie ihn in ihren lac de cygne einbauen können
als eine anmutig zischende schwalbe mehr
am perlgrauen septemberhimmel am ultimobaldachin
der neurenovierten staatsopernpassage allelujah
ich bin ein schamloser in wahrheit ein höllsakra
ein johann sebastian orth am örthersee auf rollschuhen
weil ich es wage diesen brief an ihren pas de deux zu
richten
aber ich befehle ihnen nichts ja ich bitte sie nur
meine ezzes hinzunehmen als das was sie sein wollen
alles was sie lieben gnädiges frl! prost du! servus!
mein federgeschriebener schlankerl mein weisser brief
mein ausserordentlich orig. pat. petschaftberühmter
als nichts andres bitt ich sie ihn hinzunehmen als
einen mann mit grundsätzen einen mg 59 einen jaguar 60
eine elfenixbeinerne locomotive 230 ph nach las vegas toi
toi toi
ein schlüsselfertiges badezimmer im berliner hilton
ein ballet rose auf groschenstöckeln und eine filmwohnung
in döbling im dehmelschokoladetortenstil von dipl. arch.
und stadtbaumeister woswasdardeiföwiarahastdeadschu-
schdea
und wenn das alles noch nicht genug sein soll dann sei er
noch
ein strahlendes leitstarlet über ihrem nächsten auftritt
am 23. ds. um punkt 19 uhr 30 mitteleuropäischer zeit
spuck spuck spuck
und ein applaus mit 69 vorhängen und regnenden tee-
rosen dazu
gott über den berg! was soll les nicht alles
und was wrid es nicht alles sein mein briefchen
mein crèmeweisses
mein hübsches
mein zartes
mein du du
mein durch & durch veilchencrêpegefüttertes
luftpost par avion via aerea u.a.m.
auf der strecke zwichen aa und bee

§

sob uma araucária kircheriana eis que sansão
o da juba em madeixas e dalilás a violetíssima

restauram sua paixão semi-afogada em estuquoceano
fosfóreas crepitam as gramíneas no matagal em redor

e canários portam nos bicos campanuláceos
a aproveitar a ocasião para exibirem emblemas

mesmo davi o da estrela e golias o arquiquelôneo
trazem hoje equilibradas oferendas de pazes

como cacetetes de látex estilingues de origami
figas generosas e revólveres de amianto

(meu caro amigo isto significa cuidado
caso gozem disparos mas nem fazem caso

sao de amianto as coisas..)
o rabino de rzeszów e pato donald a sophisticated jew

ombreiam seus empoeirados fogos de armistício
e disparam a galopes holofotes e fumações de anéis anis

marlboro gauloises philip morris de 2 – 5 reais o maço
engatilhados após o rosiclérigo matinar teletúbico

uma ou duas hosanas pela tierra del fuego da rep. chile
que tal relíquia de quarta-feira assegure um cantinho

exclusivo nos anais de sutilíssimos eventos
sob uma araucária kircheriana musgolpeiam-se na horizontal

sansão e dalilás em uma orgisséia feito peixes
a morrer pela boca de sede ao pote deitam-se dualmente

com a única diferença que dalilás a violetíssima
ao fim não há de esgoelar em asfixia ao engolir

toma oh gentle reader de fliperamas para ti dentalha teu espanto
pois nosso tempo humanizou-se após uma era de fábulas

(tradução de Ricardo Domeneck, publicada no número de estréia
da revista Modo de Usar & Co.)



§

unter eine araucaria kircheriana haben samson
mit dem löwenhaar und dalilah die sehr violette

ihre fast im mörtelozean ertrunkene liebe restauriert
hellauf knistern die gräser der wildnisse rundum

und lerchen tragen glockenblumen in ihren schnäbeln
um sich aus diesem anlass mit emblemen zu zeigen

selbst david mit dem stern und goliath erzbeschuppt
bringen heute ausgewogen versöhnliche geschenke

wie keulen aus gummi schleudern aus papierschlangen
hirschlederne amulette und pistolen aus asbest

(mein lieber freund da heisst es aufpassen
wenn die einmal losgehen aber sie tun s nicht

sind aus asbest die dinger..)
der rabbi von rzeszów und donald duck a sophisticated jew

haben ihre langvergrabenen böllerrifles geschultert
und schiessen im vorbereiten ein salut blauer rauchringe

ritmeester partagas willem de tweede zwichen ös 10-18 per stück
nach den mattrosa geladenen peynetkuppeln der morgenluft

ein bis zwei hosannah für das feuerland der freien republik chile
dass diesen grossen mittwoch auf einem vorreservierten plätzchen

in den annalen für subtilere ereignisse verzeichnen wird
unter einer araucaria kircheriana liegen mooszerstörend

der samson und die dalilah in einer marathoncopulation
wie hühnchen und hähnchen am nussberg liegen sie da die zwei

nur mit dem unterschied dass dalilah die sehr violette
schliesslich doch nicht ersticken wird an dem geschluckten

toma oh gentle reader aus read im innkreis zerbeiss deine furcht
denn unsere zeit ist humaner geworden nach einer ära der fabeln

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Poemas publicados na Green Integer Review

Poemas publicados no número 9 da revista eletrônica Green Integer Review, editada por Douglas Messerli.

Green Integer Review

Six Songs of Causality.

Três Textos contra Tristes Tigres

por Ricardo Domeneck






(Pequeno estudo sobre os ciúmes, 2007)







(Texto satyricrítico, 2007)

Auto-retrato, 2006

Punk Tropical ou Dada-Banana



§ A indeterminação das estações. A sensação (e subseqüente medo) de pertencer à periferia gerando a sede por inovação. Os debates internos exigindo o entrincheiramento de partidos opostos, divididos entre o positivismo das instituições políticas, controladas por uma elite que ainda anseia pelo Norte, e o misticismo das misturas de contextos lingüísticos e religiosos de partes distintas do globo. Porém, as investigações de uma identidade nacional sempre espelhadas em conceitos de homogeneidade cozidos na Europa, onde tais noções de nacionalidade unitária e monolítica são igualmente fictícias, ainda sofrendo e impondo a tentação do homogêneo.



§ As tendências em experimentação artística no território conhecido como Brasil têm se mostrado, freqüentemente, à direção de borrar fronteiras e aterrar trincheiras, onde artistas sempre tiveram que se manter atentos às separações: entre classes, entre sexos, entre raças. Borrar fronteiras, aterro de trincheiras. Se a denúncia da falsidade do mito de Gilberto Freyre para uma democracia racial tornou-se claramente necessária, nunca foi mais inexeqüível a urgência da luta por sua conquista. Assim, em um país onde o conceito de miscigenação foi eleito pelo modernismo como mito fundador, e onde a única trilha possível para artistas em uma sociedade dividida tornou-se a guerrilha pelo colapso de dicotomias como cultura erudita e popular, o conceito de Pop jamais mostrou-se essencial: esta já era a inclinação natural, muito antes dos anos 60.



§
Por instinto ou não, a escolha de resistência vinda da arte no Brasil foi o caminho de resistência interna. Se Adorno via a recusa da realidade e fuga ao sublime lírico como forma de revolta política, que expulsaria do trabalho artístico tudo o que o artista considera detestável na realidade em redor, podemos contemplar também, nos últimos cem anos, a escolha proposta, entre outros, pelos dadaístas: a estratégia de guerrilha cultural, sabotagem de sistemas, arte como vírus, que somente mostra-se eficiente dentro do organismo. Como a banda Secos e Molhados cantou nos anos 70: "E no centro da própria engrenagem / Inventa a contra-mole que resiste". Para artistas vindos de áreas como a América Latina, onde são constantemente obrigados a enfrentar a questão de identidade (ilusão de centro vendida por ideologias políticas européias, onde já causaram tanto derramamento de sangue, e mesmo assim comprada por nosso modernismo), isto apenas traz novas responsabilidades. Mas, enquanto na Europa a consciência política exige o expurgar de nacionalismos, na América Latina este mesmo nacionalismo é decretado obrigação política para os conscientes da posição econômica e social do continente no mundo, e a opressão que se sente vir do Norte.


§ Estes, os dilemas. Do manifesto modernista de Oswald de Andrade (Tupy or not tupy that is the question), declarando a morte de um padre português por indígenas e sua assimilação pelo ritual antropofágico como o ritual de nascimento da nação, apesar do anti-épico de Euclides da Cunha, à releitura de Pablo León de la Barra e sua proposta (Make your enemy eat you), temos décadas de diálogo artístico em que luso-brasileiros e hispano-americanos enfrentaram os mesmos questionamentos e dilemas de quaisquer artistas de outras nacionalidades, mas com a responsabilidade de respondê-los a partir de suas próprias perspectivas. E muitos uniram-se às filas de antiinstitucionalistas e, mais importante, interventores culturais que se tornaram ativos desde que o Cabaret Voltaire foi instalado em Zurique e primeiro urrou-se DADÁ em 1916. É em tal contexto de resistência política que se torna necessário analisar interventores como Oswald de Andrade, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Tom Zé, Glauber Rocha, enfrentando os mesmos dilemas culturais e necessidades de resistência de Dadá, Pop, Fluxus ou Punk, aos quais adicionaram várias responsabilidades políticas. É neste contexto e histórico que podemos entender as atividades de interventores, por exemplo, como Bruno Verner e Eliete Mejorado do Tetine ou Eli Sudbrack como assume vivid astro focus, em um clima cultural em que brasileiros não apenas enfrentam questionamentos de identidade, mas também expectativas que o resto do mundo desenvolveu em relação a esta identidade, abrindo espaço para o artista brasileiro desde que ele esteja disposto a seguir o papel já designado para ele por esta expectativa internacional.


§ O trabalho de um punk tropical permanece o de borrar fronteiras, aterrar trincheiras.


[Publicado originalmente em inglês, em Londres, por ocasião da exposição Tropical Punk, com curadoria de Bruno Verner e Eliete Mejorado, na Whitechapel Gallery em junho de 2007]

Entrevista para o Portal Literal

Entrevista ao Portal Literal


Minibio, resumindo suas atividades em poesia e fora dela.


Nasci em 1977, e ainda não morri. Estreei com o livro "Carta aos anfíbios", publicado pela editora Bem-Te-Vi do Rio de Janeiro, em 2005. Antes disso, publicara um único poema no número 4 da revista Cacto. A partir da estréia, colaborei com poemas e ensaios em revistas impressas como Inimigo Rumor, Ciência e Cultura, Entretanto e a virtual Germina. Edito, ainda, a revista eletrônica Hilda


http://hildamagazine.net


e fui editor e um dos fundadores do site Flasher


http://www.flasher.com/


Em Berlim, onde vivo, sou co-fundador do coletivo Kute Bash, que manifesta-se de várias maneiras: organizando um evento e festa semanal, todas as quartas-feiras, com performances de artistas e músicos como, entre outros no passado, Kevin Blechdom, Angie Reed e Mount Sims (EUA), Planningtorock (Inglaterra), Tetine (Brasil), Hanayo (Japão), Hellvar (Islândia), Bruce LaBruce (Canadá), T.Raumschmiere e Apparat (Alemanha), além de ser um dos DJs residentes (DJ Kate Boss); especificamente com Oliver Krueger e Philipp Sapp, dirijo a gravadora Kute Bash Records,


http://www.myspace.com/kutebashrecords


em que lançamos o álbum L.I.C.K. My Favela, da dupla Tetine, e, sozinho, comecei o editorial independente Kute Bash Books.

Estou nas antologias "Cuatro Poetas Recientes del Brasil" (Buenos Aires: Black & Vermelho, 2006) e "Überland und Leuchtende Städte, 12 Dichterinnen und Dichter aus Lateinamerika" (Berlin: SuKulTur, 2006), além do "dossiê dos novíssimos", editado por Carlito Azevedo na revista Inimigo Rumor 18. Meus trabalhos em vídeo têm sido exibidos em instituições culturais como o Instituto Cervantes, o Muffathalle http://www.muffathalle.de/,

clubes noturnos europeus, e na televisão brasileira, além de sites como o do coletivo espanhol El Águila Ediciones


http://elaguilaediciones.wordpress.com/


Apresentei meu trabalho como poeta/videasta/DJ em cidades como Berlim, Munique e Hamburgo, na Alemanha, e ainda Londres, Antuérpia, Roterdã, Copenhague. Ganho a vida, no momento, com meu trabalho como DJ.



Como/quando começou a escrever poesia? O que motivou? Algum evento/fator crucial?


Descobri poemas em manuais de literatura brasileira, na casa dos meus pais, ainda adolescente. Lia e relia os mesmos poucos poemas que se repetem exaustivamente nestes livros escolares, de Álvares de Azevedo, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira. Comecei a escrever poemas e contos por volta desta época, aos 12, 13 anos. Ganhei uma bolsa de estudos e, com 17 anos, mudei-me para os Estados Unidos, onde minha professora de literatura, uma mulher genial chamada Pamela Peak, passou-me livros de Thoreau, Whitman, Dickinson, Emerson. Quando voltei ao Brasil, passei a devorar livros de poetas.


Por quê você escreve poesia? Existe um motivo?


Como exponho em meu vídeo "Garganta com texto", exibido na TV Cultura no ano passado, eu acredito que a poesia ainda tem uma função específica no cenário contemporâneo, papel que não pode ser exercido pela prosa, que tem ferramentas muito distintas. Por este motivo, ainda escrevo poesia.


Como é o seu processo de trabalho?


Meu processo de trabalho é grande parte do que ofereço como produto neste livro a cadela sem Logos.


Como você vê a atividade poética no Brasil?


A produção é intensa, há boas editoras interessadas no trabalho de poetas mais jovens, mas os critérios para a seleção de livros ainda são determinados por fatores de mercado e de moda literária, e há poetas bons que têm dificuldades de publicação. Citaria o exemplo de um livro como o "Icterofagia", do Dirceu Villa, que segue inédito. Mas eu sinto que a "cena" da poesia no Brasil está caminhando, eu espero, para uma postura mais saudável e adulta, com possibilidades de debate público abrindo-se, aos poucos. Por que este debate é necessário? Porque a escolha de uma "forma" tem implicações muito mais sérias que, simplesmente, quanta tinta e quanto papel uma editora terá que gastar com um livro de poesia; tenho tentado, com meu trabalho crítico, demonstrar que as escolhas estéticas (éticas) de um poeta vão além de questões de gosto pessoal: ele utiliza o bem comum de uma sociedade, a linguagem. Trata-se de um trabalho de imensa responsabilidade, que tem repercussões amplas, ainda que a longo prazo, apesar da aparente falta de atenção ao trabalho do poeta na sociedade contemporânea. Quando critico o trabalho de outro poeta, não é porque eu creia que seus poemas ficariam mais "bonitinhos" ou "poéticos" ou "melhores", se escritos de outra forma. Trata-se de tomar com responsabilidade o trabalho poético e saber que um poeta não DIZ, ele FAZ, através de propriedade pública: a língua, e estas ações têm implicações ético-estéticas, políticas, sociais, culturais, filosóficas, até econômicas. Acredite: para quem se entrega ao trabalho poético com estas exigências, impostas a si mesmo, é incrivelmente irritante perceber que, para muita gente, poetas ou não, escreve-se poesia apenas para se "expressar" ou porque é mais "fácil" que prosa, já que é "mais curto." Quem estiver interessado em "expressar-se", sugiro que guarde os poemas na gaveta. Quem publica, ou divulga seus trabalhos pela internet, entra num jogo de linguagem com toda a comunidade com a qual divide a língua.


Mas, caminha-se. O engessamento crítico em torno de parâmetros obsoletos, que circulavam no país há décadas, a partir do discurso poético sobre a obra de Cabral e Noigandres (insisto: baseados mais no discurso SOBRE as obras destes autores fundamentais, que em sua poesia em si) após gerar alguns livros de poesia muito competentes, mas esterilizados demais, está começando a cair. Aquilo que Marcos Siscar chamou de "crise de critérios" passou a surgir com força, algo muito saudável, perturbando as receitas miojo de poesia: os ingredientes abstratos de concisão, economia, concretude, que passaram a ser diluídos a partir de Cabral e Noigandres, dando-nos apenas poemas descritivos de paisagens e cenas exteriores, que os poetas não percebiam que eram extremamente subjetivas em suas perspectivas monolíticas, partindo de uma voz única: a do poeta, que se queria autoridade organizadora da realidade coletiva. Além de muitos poemas que se querem elípticos, mas escorregam no mero "inarticulate". Não se trata de estabelecer se esta crise de critérios é algo do nosso tempo ou se sempre estivera entre os poetas, mas de perceber que esta "crise de critérios" pode ser saudável, é saudável, é o estado atual das coisas: não há receitas, não há manuais, o poeta é obrigado a fazer escolhas. Ainda há poetas discursando sobre a própria obra a partir destes axiomas (enchem a boca para dizerem de si mesmos que são concisos e econômicos, como se apenas isso garantisse a validade do papel que gastam), mas os poetas mais interessantes da última década passaram a questionar este manual de instrução de "Como escrever um poema de qualidade para agradar os que assistiram dois documentários e meio sobre a obra de João Cabral de Melo Neto e leram cerca de 17 resenhas sobre poesia na década de 90".


É claro que há sempre o outro lado da moeda, de poetas que vêm propondo como alternativa o que vejo como saque descontextualizado de poetas como Paul Celan ou Herberto Helder, por exemplo. O caso de Celan é o mais gritante pois, na maioria dos casos, são poetas que não falam alemão, desconhecem por completo o contexto cultural em que a obra de Celan se insere, conhecem a sua obra por traduções, que os levam a confundir as AÇÕES LINGÜÍSTICAS do poeta romeno por meras metáforas, praticando o abuso desonesto da aura de autoridade do poeta, sobrevivente do Holocausto, sugando do Holocausto (!!!) o ar de "beleza terrível" e "sublime transcendente" que eles querem enfiar em seus poemas a qualquer custo. É imoral. Exploração do contexto cultural de um acontecimento histórico como o Holocausto, para preencher o formulário estilístico do trans-histórico e incondicionado (!!!). Não sei se me faço compreender, em como vejo esta questão e por que ela simplesmente me transtorna. A relação destes poetas com Celan parece-me similar à relação da geração de 45 com Rilke: usam estes poetas para resgatar a aura perdida de autoridade da poesia, em busca do sublime, tentando recriar a hierarquia entre poeta e leitor, recusando o trabalho das vanguardas modernistas que trabalharam contra o sublime, contra vícios simbolistas e formalistas, como o César Vallejo de "Trilce", o Oswald de Andrade do "Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade", o William Carlos Williams de "Spring and all", o Nicanor Parra dos "Poemas y Antipoemas", o Hans Arp de "Die Wolkenpumpe". O que nos leva a uma questão bastante interessante: apesar de tentarem vender um discurso de experimentalismo, quando se analisa


I- a ojeriza destes poetas ao que eles chamam de "diluição de Drummond", ou certa poesia do cotidiano que se tornou hegemônica em certos círculos poéticos (à qual nao me subscrevo), devido à forma como se desenvolveu nosso modernismo, unida


II- à escolha dos poetas que votaram para o seu paideuma dos deputados, e a defesa que fazem de uma "linguagem pura", que se "eleve" acima da realidade "aviltante" (ainda há gente gritando "Waste Land! Waste Land!", a esta altura do campeonato), que pratique o incondicionado poético,


percebemos que isto pode denunciar uma recusa, na verdade, da própria linhagem modernista que instituiu como parâmetros o anti-lírico, o não-elevado, que eram praticados por certos modernistas, não à guisa de originalidade, como estes poetas de paulcelana crêem, dizendo que na época de Bandeira isso era "novo" e, em sua lógica confusa, conseqüentemente "aceitável" (num tom não muito elogioso, pois detestam, na verdade, os efeitos anti-sublimes desta linhagem do modernismo), para usar isto como razão (num jogo de causas e conseqüências fictício) para defenderem seus trabalhos baseados em elefantíase semântica, saque da aura de autoridade de poetas do passado e de outras línguas, em sua busca obsessiva pelo sublime, parâmetros que, se seguidos em suas implicações ético-éstéticas, mostram-nos como estes poetas (defensores auto-proclamados do experimentalismo) são reacionários, beirando o neo-simbolismo, se algum "neo" se lhes há-de impingir. Mesmo quando eles permitem que "objetos do cotidiano" invadam sua poesia, trata-se de signos claramente marcados, com a função de elevar ainda mais os exóticos símbolos pululando pelos livros. Não há borrar de dicotomias em seus trabalhos, no Brasil, pois sua poética usa estas dicotomias como muletas.


Existe muita gente querendo ser "artista". Acho ótima a conotação que o substantivo adquiriu no Brasil Global, pois artista é realmente gente querendo agarrar-se ainda a certos privilégios. Bom proveito, eu digo, já que defendo que, após o Rimbaud das "Illuminations", o trabalho dos dadaístas de Zurique e Berlim (realmente iconoclastas, se comparados aos trabalhos para calendários de serralheria de muitos surrealistas), o Marcel Duchamp/Rrose Sélavy da "Fonte" e do "Grande Vidro", além de gente (vários deles foram poetas-performers) como Dieter Roth, Patti Smith, John Cage, Joseph Beuys, Vito Acconci, Lygia Clark, Louise Borgeois - nós não precisamos de artistas, mas de interventores culturais, como eles.


Que nomes do cenário contemporâneo brasileiro você destacaria? E com quem se afina?


Já escrevi sobre o trabalho de Angélica Freitas, sobre como sua relação anti-autoritária e não-fetichista com a tradição é um antídoto à poesia bem-comportada e de bom gosto de muitos poetas brasileiros, que não "fazem referência" à tradição, mas, sim, reverência, e tentam, na verdade, saquear-lhe a aura de autoridade. Sua poesia trabalha com vários critérios de escrita, critérios literários que satisfazem mesmo os críticos em busca do "trabalho formal", e ainda funciona na saúde bárbara oralizável, que apenas se encontra em poetas como Christian Morgenstern, Hans Arp e outros dadaístas, HC Artmann e Gerhard Rühm, do Grupo de Viena, Susana Thénon, Adília Lopes. Não se trata de "poesia marginal", ainda que eu tema que muitos serão tentados a enfiar-lhe a obra nesta estante. Não em seus melhores poemas. Poemas como a série "O que é um baibai?" não têm muitos paralelos na poesia do Brasil; fazem-me pensar no "Die Schwalbenhode" de Arp, nas "Galgenlieder" de Morgenstern, na série de "Landschaften" de Artmann, na "Ova Completa" de Thénon, no "Op-Art" de Lopes. Dona Freitas, esta poeta que presenciei comunicando-se com outros poetas, em Buenos Aires, em espanhol, inglês e alemão.


Em Marília Garcia, o estilhaçar e indeterminação da voz poética estão em compasso com o contexto cultural do mundo, porém não como apenas outro diagnóstico histérico de "Waste Land", abandonando a perspectiva monolítica dos poetas viciados em axiomas como objetividade e secura, (cf. seu poema "Classificação da secura"), mas, sim, tomando pelo cabelo e às unhas a crise da representação, em poemas que não são mais véus de um mundo representável, como em muitos poemas cotidianos e lineares das últimas décadas, e que também não se entregam à ilusão ingênua de objetividade ao concentrarem-se em substantivos concretos, como dos poetas regurgitando Cabral. Ela sabe que substantivos concretos não garantem objetividade. E o mais excitante é que este próprio estilhaçar e indeterminação da voz poética, em Marília Garcia, parecem capazes de aproximar-nos muito mais de uma sobrevivência da subjetividade no mundo de hoje. A Marília Garcia e Angélica Freitas eu vejo como kindred spirits meus, e não se trata de adesão cega e incondicional às obras uns dos outros, mas de certas preocupações irmanadas.


Diferentes em algumas de nossas escolhas, concordando e discordando, mantenho um diálogo muito estimulante com Dirceu Villa e Fabiano Calixto, a quem eu ainda juntaria Diego Vinhas, como poetas que têm conseguido dar respostas diferentes, mas que eu respeito, e considero importantes, às necessidades da poesia do nosso momento. São poetas abertos ao debate. Tenho respeito pelo trabalho de Fabrício Corsaletti, Pádua Fernandes e Juliana Krapp, que nem publicou livro ainda, tendo tido acesso à sua poesia pela internet, para voltar à questão anterior.


Entre os mais velhos, Carlito Azevedo, por ser um poeta que, apesar de agregar em si certos elementos de que discordo na produção da geração anterior à minha, foi um dos poucos poetas de sua geração capazes de produzir em sua obra os caminhos e saídas para estas mesmas questões, apontando para caminhos novos que minha geração retoma, em poemas, por exemplo, como "Do livro de viagens", que abrem caminhos críticos, ou nos seus "versos de circunstância", como todo bom verso é de circunstância; gosto muito do trabalho de Marcos Siscar; mesmo que tendo reservas, de algumas coisas de Cláudia Roquette-Pinto, a única que parece ter conseguido assimilar Celan em um nível aceitável de coerência e honestidade; de Josely Vianna Baptista, quando ela está praticando aquela poesia em que demonstra estar entre os poucos que assimilaram, como Lenora de Barros, de forma interessante o legado de Noigandres, ainda que ela tenha se entregado a outras linhagens que não me interessam; nas décadas anteriores, Ronaldo Brito, Torquato Neto, Paulo Leminski, Régis Bonvicino, o Glauco Mattoso do "Jornal Dobrabil", o Duda Machado de antes da década de 90, o Roberto Piva de "Piazzas" e "Abra a boca e diga ah!", Orides Fontela, que poderia ensinar muita coisa sobre concisão aos poetas que tanto prezam o de curto-fôlego. Não estou criando paideuma, nem elegendo os novos senadores do cânone. São apenas poetas que me estimulam, ou que respeito. Não poderia deixar de mencionar os portugueses Alberto Pimenta, Fernando Assis Pacheco e Adília Lopes.



E fora dele? Você se corresponde com poetas de outros países?


Tenho mantido um diálogo com poetas argentinos como Cristian De Nápoli, que traduziu poemas meus ao castelhano, e Lucía Bianco, poetas com quem tenho colaborado e a quem tenho também traduzido, além de Silvana Franzetti, que trabalha com vídeo, poetas que conheci em Buenos Aires, ao participar do festival Salida Al Mar, onde conheci ainda o genial Mario Ortiz. A Argentina, do grande Oliverio Girondo e do grande Sergio Raimondi.



No Chile, esparsamente, mas sempre com respeito e admiração por Sergio Parra e Yanko Gonzáles, fiéis poetas ao trabalho que tem em Nicanor Parra uma fonte ainda viva, desta outra tradição que certos poetas brasileiros tentam esmagar a qualquer custo, além de Victor López e Christian Aedo Jorquera.


Da Espanha, mas vivendo entre Viena e Berlim, a poeta madrilenha Sandra Santana.


Tive acesso, pela rede, há pouco tempo, a documentações em vídeo de performances do jovem poeta belga Damien Spleeters, com quem passei a dialogar, além de manter contato, em Berlim, com Odile Kennel (minha tradutora para o alemão) e Timo Berger. Estou começando a traduzir poetas alemães mais jovens, como Barbara Köhler e Daniel Falb, creio que daí sairão mais debates.


Como/quando começou a publicar? A Internet ajudou na divulgação da sua poesia? Você divulga a própria poesia?


Eu acredito no poder democrático de divulgação da internet. Sem dinheiro para comprar livros, um poeta pobre e jovem tem acesso a muita coisa, primeiramente, pela internet também. Poetas contemporâneos de outros países, por exemplo, só chegam a nós pela rede. Tenho defendido o resgate da poesia pela oralidade, após o seqüestro e possessão que ela sofreu pela escrita, que não deve, nem quero que seja abolida, mas que gerou vícios que afastaram a poesia de sua vocação inicial, negando-lhe caminhos perfeitamente legítimos. Por isso, tenho dado muita atenção a leituras de poetas, e mantenho meu perfil de "música", como poeta, na internet:


http://www.myspace.com/ricardodomeneck


e permito que alguns dos meus vídeos possam ser acessados pelo YouTube


http://youtube.com/ricardodomeneck


Agora sobre o livro: eu queria que você me dissesse como foi o processo de escolha dos poemas. Se há um tema ou são antologias.


"a cadela sem Logos" reúne 3 seqüências longas. Foram iniciadas no começo de 2004 e as dei por terminadas em 2006, ainda que tenha feito alterações mesmo nas provas da editora, logo antes de irem para a gráfica. As três seqüências estão reunidas neste volume por serem AÇÕES LINGÜÍSTICAS irmanadas. Pertencem ao mesmo ciclo obsessivo de preocupações, e espero que sua metralhada de recusas seja aparente.

Entrevista publicada na Inimigo Rumor

Carlito Azevedo - Ricardo, posso contar nos dedos quantos livros de estréia surgiram tão "prontos" como o seu. Então, que tal começarmos falando da "pré-história" dele? Poderia falar um pouco dos seus "anos de formação"?


Ricardo Domeneck - Não havia livros na minha casa. Eu, primeiro, descobri poemas em manuais escolares de história da literatura brasileira, tendo acesso àqueles poemas mais conhecidos de Gregório de Matos, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos. Esta foi minha nutrição inicial. Aos 17 anos, ganhei uma bolsa de estudos e fui morar nos Estados Unidos, onde uma professora de literatura, Pamela Peak, me apresentou Poe, Whitman, Dickinson, Thoreau. Voltando ao Brasil, comecei a ler tudo o que me caía nas mãos em português, inglês e espanhol, com atenção especial aos modernistas dessas línguas e quaisquer escritores de que eles gostassem. Assim, via Eliot, cheguei a Donne, via Drummond, a Camões, via Guillén, a Quevedo. Pensando nessa tal de formação, fui estudar filosofia na USP, sem concluir o curso. Restou a grande descoberta dos escritores justamente mais "antifilosóficos": Kierkegaard, Unamuno, Wittgenstein, completamente determinantes para mim. Mas a tendência é falar sobre escritores, quando no meu caso, pelo menos, cineastas como Kieslowski, Tarkovski e Lars Von Trier, ou artistas plásticos, como Lygia Clark e Nan Goldin, foram quase tão fundamentais quanto os criadores/criaturas: Murilo Mendes/ "Janela do Caos" e Ezra Pound/ "The Pisan Cantos". Mas espero não estar "pronto", espero que a formação continue.
Gertrude Stein: "Naturally one does not know how it happened until it is well over beginning happening". Lyn Hejinian: "launched in context". Meu sonho é a vitalidade de Murilo Mendes que, aos 69 anos, publica um livro como "Convergência". Eu chamaria de meu período de formação a época em que havia apenas a grande esperança de um dia poder também FAZER aqueles objetos/organismos/vírus que eles chamavam de poemas. Não sei explicar como, mas em algum momento isso tudo fermentou dentro de mim e me embebedou.


CA - Seu livro é dividido em duas partes e, mesmo que o "corpo" seja o personagem principal em ambas, há uma diferença no "tom de voz" dos poemas de uma e outra, caracterizada até pela diferença entre as epígrafes de Jabés e Waldrop (que, contudo, e não por acaso, traduziu bem o Jabés para o inglês). Como você construiu (ou, posteriormente, leu) essa divisão do livro?


RD - O duplo percorre todo o livro, mas na imagem do anfíbio, habitante do duplo em unidade. Este "anfíbio" é informado pela leitura de Mircea Eliade e sua defesa de que, mesmo no mundo moderno, aparentemente mais dessacralizado, o ritual, o mítico e o sagrado sobrevivem ainda que nas formas mais confusas. Além de Eliade, o poema sonoro "Amphibian" da Björk, com sua modulação de vozes, sugeriu o título. A primeira parte está imersa na água das origens, eu estava completamente tomado pela procura do mítico escondido nos escombros. O guia neste momento é Kierkegaard e sua proposta da fé como salto no escuro. Parte disso era totalmente claro como projeto, desde o princípio, mas muito foi se formando a caminho. Jabès recarregado: "un livre, donc, qui s' émiette à mesure qu' il se forme." Essa crença na Simpatia do Todo, na ligação cósmica entre as coisas, é o arcabouço cultural que gerou e fundamentou a metáfora ao longo dos séculos. O corpo entra não como personagem, mas como veículo da minha insistência na tentativa de quebrar o logocentrismo da poesia brasileira principal, além da rejeição de qualquer forma de transcendência que implique em sublimação. Waldrop recarregada: "I love getting the body into my writing, especially to subvert ideas like pure thought." E uma espécie de cristianismo inescapável (como minha contingência cultural) elevado a método. A descoberta da noção de FIGURA, em que um acontecimento histórico liga-se a outro acontecimento histórico, prefigurando-o, dois fatos distintos e temporalmente segregados prevendo um último acontecimento (a parúsia?) que revelaria seus significados, além da noção de intervenção do sagrado no profano (o verbo feito carne, a história feita mito), foram uma influência fundamental no desenvolvimento do livro. Mas, aos poucos, isso foi se enfraquecendo como obsessão para mim. Essa crença na Simpatia do Todo, que corroborava a metáfora no mundo arcaico, foi gradualmente entrando em colapso nos últimos dois séculos e estamos vivendo hoje as conseqüências culturais disso. A metáfora entrou em crise porque não há mais seu fundamento sócio-cultural e religioso. Como a poesia baseava-se primordialmente nela, experimentamos, hoje, a total falta de "contexto" para o trabalho poético e a ascensão da prosa como meio privilegiado. A estratégia tinha que mudar. Eu não podia mais seguir trabalhando daquela forma porque eu mesmo já não acreditava mais nela. Eu adotei, então, a estratégia dos poetas contemporâneos aparentemente mais conscientes dessa condição, em minha opinião: basear-se na metonímia (a sinédoque entendida também como forma de metonímia), usada geralmente para a prosa, não para a poesia. A metáfora pressupôe uma crença que está em crise cada vez mais intensa: a da transcendência. Não é à toa que alguém, como João Cabral de Melo Neto, extirpou a metáfora de seu trabalho. A metonímia permite a escolha: procura algo além dela, quem quer, quem crê. Nesse meio tempo, surgiu Wittgenstein e o terreno para as mudanças na segunda parte do livro estava arado. O óbvio passou a parecer hermético o bastante. Fui trabalhando numa gradual "desmetaforização". A atenção passou a dirigir-se mais à sintaxe que à semântica. De qualquer forma, desde o princípio preferi, por temperamento, a parataxe à hipotaxe, e aprendi isso com Murilo Mendes, antes de descobri-la como técnica, em Lyn Hejinian e Rosmarie Waldrop, ou Emmanuel Hocquard. Questionei se não tinha em mãos dois livros e não um único. Mas a unidade estava ali, foram os meios que mudaram. Ainda que as duas partes possam sugerir uma dicotomia, ela não existe: a quebra de dicotomias sendo justamente a vontade, o livro é um processo. Como, ainda que subterrânea, está lá a ligação entre Jabès e Waldrop, Kierkegaard e Wittgenstein. Por exemplo, como escritores da experiência dos limites, em especial os do Logos: "...for faith begins precisely where thinking leaves off" (S.K.); "Wovon man nicht sprechen kann, darueber muss man schweigen" (L.W.); "...contre la pensée, car elle est incapable de penser sa totalité et même le rien." (E.J.); E não esquecer: "Pain always produces logic, which is very bad for you." (Frank O´Hara)


CA - Esse procedimento está bem demonstrado no despojamento de poemas, como "Conversa com duas estranhas" e "Lembrete", que são singulares, mesmo dentro dessa segunda parte "desmetaforizada" (e lembrei agora de "Um estudo figurativo", que, para tornar as coisas mais interessantes e menos absolutas, encontra-se na parte 1), porque neles há uma clareza, uma transparência, de que os outros poemas, uns mais e outros menos, afastam-se. Há poemas belíssimos em que a "prosificação" não evita os "mal-entendimentos", certa obscuridade (mais próxima da "margem de indeterminação" de um Ashbery, do que do hermetismo) que nasce muito naturalmente do fluxo característico seu, musical, que leva o poema a espraiar-se por mais de uma página, quase sempre. Há, também, um desejo seu "anfíbio", entre objetivismo e indeterminação?


RD - Mas eu não vejo nisso conflito ou contradição. O equívoco de muitos é entender objetividade como linearidade e consistência lógica. Penso num poeta como Louis Zukofsky, o teórico dos "objectivist poets", que, em seu poema "A", aplica métodos de colagem e justaposição de elementos históricos, míticos e extremamente pessoais (como conversas com seu filho Paul), quebrando com a linearidade discursiva de forma tão, ou mais radical, que o Pound dos "Cantos". Esta divisão do OU era uma das questões que Rosmarie Waldrop tinha em mente, ao escrever seu "Lawn of Excluded Middle". A separação drástica dos elementos formativos racionais e irracionais do ser humano tem levado a essa esquizofrenia que experimentamos de forma tão radical no século passado. Como se pudéssemos ser um ou outro. Há, nos poemas do livro, a tentativa de objetividade, mas, ao mesmo tempo, os poemas questionam a noção de "objetivo", com a justaposição de elementos pessoais, contingentes e condicionados; assim como, nos poemas mais "líricos", mina-se a noção de "subjetivo", com a colagem e montagem de material lingüístico alheio, da conversa ouvida na rua à tradução e apropriação de textos de outros escritores, desmontando a idéia de voz autoral. Objetividade, mas sem a hipocrisia de crer-se e fingir-se neutro, invisível, como se a voz não saísse da minha garganta, como se eu próprio pudesse ouvi-la pura, como se ela não ressoasse dentro da minha caixa craniana e condicionasse minha audição. O problema da maioria dos poetas obcecados com esta idéia equivocada de "objetivo" começa no fato de que esta objetivação requer, em sua base, a sobrevivência das dicotomias interno/externo, sujeito/objeto, e sua concentração no que crêem ser o "mundo externo" (daí a avalanche de poemas descritivos) depende de uma espécie de unidade de percepção que acaba sendo centrada num sujeito monolítico, que eles desonestamente camuflam. Wittgenstein: "Als wäre unsre Logik eine Logik, gleichsam für den luftleeren Raum." Sua crença numa razão pura, axiomática, não condicionada por contingências pessoais, subjetivas, segue contaminada pela típica arrogância masculina/branca/heterossexual de abarcar e controlar o mundo e, assim, perpetua-se essa esquizofrenia e dilaceração do homem moderno, em especial a brasileira, onde isso assume contornos trágicos no conflito do positivismo das nossas instituições e o misticismo inerente da nossa cultura; e na guerra entre estes dois sertões, tais poetas tomam claramente o partido da rua do Ouvidor, incapazes de buscar o gesto de cicatrização e religação, de tentar ser ao menos a ferida, se não é possível ser a cicatriz. Não quero substituir um extremo pelo outro. Não quero pregar irracionalismo ou refúgio no inconsciente ou técnica desvairista. Ernst Cassirer foi outra leitura inicial importante, com sua proposta do homem como "animal simbólico", substituindo aquele racional freqüente como simplesmente incompleto, e elaborando a proposta em seu estudo das criações simbólicas do ser humano: a arte, a linguagem, a ciência... a história. A História, refúgio da tal de realidade, também como criação simbólica. E Ernest Becker (saravá Hilda Hilst!) falando sobre as reações traumáticas do ser humano às características que se resolvem em dualismo, o humano, este "god that shits". Estas dicotomias (interno X externo, profundo X superficial, subjetivo X objetivo) estão entrando em colapso no cenário contemporâneo e precisamos encontrar os aspectos positivos (e criativos) do fenômeno. Penso nos estranhos no ninho da tradição ibérica logocêntrica e falopaica no Brasil, com suas subversões e seus nomes esquisitos: Raduan Nassar, Hilda Hilst, Paulo Leminski - penso em como o filho falha na destruição da tábua da mesa do patriarca, talvez por mimetizar demais seu DISCURSO, e em como a filha a despedaça com uma dança; penso no "homem centrado no nó das trigonometrias", mas visceralmente feliz com o contato do corpo da porca; penso no método perdido nos trópicos. Penso na importância que minha geração dá à obra incrivelmente subversiva de Clarice Lispector, a grande crítica no Brasil da violência de qualquer processo civilizatório, sempre discursivo e linear, só comparada, em sutileza, a de Machado de Assis, pois, em Euclides da Cunha, o que há é o grande susto do positivista, assim como o "jagunço antijagunços" de João Guimarães Rosa incorre na mesma contradição e falha do filho pródigo do Lavoura Arcaica. Penso naquele objeto não-identificado que são as "Galáxias" revolucionárias de Haroldo de Campos. Penso no trabalho de artistas da minha geração, como o Grupo de Teatro Obara, em que Verônica Veloso e outras atrizes, sob a direção de Luzia Carion e da técnica-guia de Klauss Vianna, reúnem mais uma vez corpo, voz e palavra, imagem e movimento, tornando a palavra interpretação imprópria e nos deixando apenas com a possibilidade de sussurrar "incorporação"; ou os trabalhos de Janaína Tschäpe e Rafael Assef. As mudanças estão no horizonte.


CA - Nessa resposta aí noto que você tem uma leitura bem crítica da poesia e da literatura brasileira em geral. Como você vê o cenário atual? O que chama a sua atenção mais favoravelmente e menos favoravelmente? O que o anima e o que o desanima?


RD - Crítica como consciência. Mesmo após modernistas como Pound já era difícil entregar-se à prática inocente da poesia, mas para um brasileiro pós-Noigandres torna-se ainda mais urgente a consciência crítica. Eu sinto no Brasil hoje um beletrismo que se alastra por grande parte da poesia contemporânea, um escrever com luvas, um preciosismo de vocabulário, todos querendo ser virtuoses aos 6 anos. Parafraseando Jack Spicer, depois se reclama que "No one listens to poetry." Além disso, por toda parte a repetição ininterrupta daqueles preceitos mais manjados e batidos da poética de João Cabral de Melo Neto, o parâmetro quase-único da crítica nas últimas décadas: economia, concisão, secura, objetividade, repetidos à exaustão, a ponto de não se saber mais se a discussão gira em torno de poesia ou do que fazer com o orçamento do mês. Tempos difíceis. Leitura fácil além de tudo, de ambos, Cabral e Noigandres, mestres, cujos preceitos, se seguidos por demais à risca, levam ao desastre. Se continuar assim, esse disco riscado crítico terá sobre a imaginação poética brasileira o mesmo efeito que a subnutrição sobre as crianças do Nordeste natal do engenheiro. E o mais genial de Cabral surge quando ele pratica sua poética da hesitação, em momentos de crise, como no seu estupendo, insuperável, "Uma Faca Só Lâmina". A indeterminação daquele poema contradiz todo os clichês de precisão, com sua construção como processo e não como produto, mas é mais seguro fingir que não se vê. Veja uma poeta como Marly de Oliveira, de toda uma obra corretíssima, mas foi num momento de crise, em que perdeu a casa e a companhia dos que amava, que ela permitiu-se cambalear e nos deu aquele "Mar de Permeio" lindo, lindo. Os poetas brasileiros têm medo de cambalear. Houve porém este acontecimento, um dos mais saudáveis da poesia brasileira recente: a antologia bilíngüe/binacional brasileira/argentina de poesia contemporânea. Seria banal cair no erro (de sempre) de querer criticar as contingências e condicionamentos do contexto das escolhas de Heloísa Buarque de Hollanda, suas distorções de perspectiva (das quais nenhum indivíduo escapa) e obsessões pelos nomes da sua turma. Sim, isso exigiu a exclusão de nomes que OUTROS (mas foi ela quem fez) teriam escolhido, minhas escolhas seriam também outras (mas foi ela quem fez). Houve, no entanto, também a decisão saudabilíssima e essencial de excluir João Cabral da antologia, decisão que abre caminhos críticos. Seguindo em frente, para a maioria, eu tenho a impressão, o alto e o baixo da cultura seguem cuidadosamente estabelecidos, nunca existiram Torquato Neto e tropicalistas em geral, nunca existiram Warhol e Beuys, são tão confortáveis certas dicotomias. Talvez, daí, o beletrismo. Poderíamos escutar juntos, como remédio para este dualismo entre alta cultura e de massas, a canção dos Secos e Molhados que, a certa altura, diz "e no centro da própria engrenagem / inventa a contra-mola que resiste", o que nos provê com uma po/ética. Junta-se a isso, essa compreensão da pós-modernidade como momento em que todas as formas históricas são viáveis e disponíveis para o poeta, e isso é defendido por poetas tão diversos em geração e estilo, quanto Arnaldo Antunes e Érico Nogueira. Como se vivêssemos em um espécie de Aleph. Mas eu creio que isso é ignorar que toda forma está intimamente ligada ao contexto histórico e cultural em que surgiu, seu momento de vanguarda, o soneto espelhando a sociedade em que foi criado e a sobrevivência de suas crenças, a terza rima de Dante como coroamento do tempo em que a Máquina do Mundo pairava sobre a cabeça dos homens e assim por diante. Eu argumento que o desgaste das formas dá-se menos pela hipertrofia do uso, que pela atrofia do contexto. Não creio que se possa usar qualquer forma fixa hoje, por exemplo, a não ser que se leve isso em consideração. Penso em poetas como John Ashbery ou Paulo Henriques Britto ainda capazes de ordenhar essas vacas magras das formas fixas, mas com doses maciças de ironia, desorientando-as por dentro. Gertrude Stein: "The composition is the thing seen by every one living in the living they are doing, they are the composing of the composition that at the time they are living is the composition of the time in which they are living (...) Each period of living differs from any other period of living not in the way life is but in the way life is conducted and that authentically speaking is composition." Nosso tempo tem características próprias e totalmente distintas da época de Dante, da época de Petrarca, da época de Baudelaire, então, em algum lugar, está escondida nossa composição, escondida porque está na ponta da língua, na frente do nosso nariz, estamos vivendo, cheirando e gostando desta composição que precisamos encontrar. É sempre impossível separar o que qualquer poeta promove do que ele simplesmente prevê antes que se torne óbvio. Mas a escolha de um metro, ou de um ritmo, tem conotações ideológicas inescapáveis, não adianta esconder a cabeça num buraco. E a essa altura do campeonato, já deveríamos estar entendendo FORMA como "center around which" ou "means through which" e não "box within which". Há também o problema da falta de críticos literários no Brasil que se ocupem de forma sistemática das questões da poética contemporânea. Nossos grandes críticos mais maduros seguem dedicando-se à lírica modernista e às obras estelares de Machado de Assis e Euclides da Cunha, e os críticos mais jovens, também, e eu sou obrigado a me perguntar o quanto o fato de alguns também escreverem poesia influi nessa omissão. O que deveria, pelo contrário, estimulá-los ao debate. Não temos uma Marjorie Perloff, com seu leque abrangente de interesses, escrevendo com paixão tanto sobre Rilke quanto sobre Cage. Não temos um Peter Quatermain ou um Charles Altieri fazendo suas intersecções entre artes plásticas e literatura. E algo que eu nunca esqueço é: prestar muita atenção ao que os artistas plásticos estão fazendo, eles sempre sabem o que fazer, sem saber muito bem que sabem, e isso torna mais fácil roubar deles. Terminando os estímulos: da década de 50, Mário Faustino com sua obra em processo, biografia cósmica a cada 5 anos, morto tão cedo, que falta nos faz; Haroldo de Campos com sua obra multifacetada (o barroco sempre o salvou do dogmatismo, pelo menos na prática poética), sobre quem eu roubaria as palavras de Hugh Kenner sobre Ezra Pound e diria que Haroldo de Campos "is very likely in ways controversy still hides, the contemporary of our grandchildren."; Affonso Ávila com sua pesquisa nos documentos lingüísticos da nossa cultura, vanguarda e retaguarda num só. Década de 60, Torquato Neto e Roberto Piva, nossa contra-cultura, ainda que me incomode o surrealismo tardio do último, do qual, porém, ele tira a melhor, nos gigantes das "Piazzas"; mas minha atenção, na década, é comandada por Orides Fontela - aquilo é senso de medida; que outro poeta move-se entre o simbólico e o semiótico com tanta agilidade, seus pequenos cubos de energia concentrada? Dos anos 70, volto-me para o experimental subversivo da prosa de Raduan Nassar, Hilda Hilst e Paulo Leminski, ainda que haja os textos (que descobri há pouco) de Duda Machado. Da década de 80, o trabalho de Ronaldo Brito jogado à negligência. Quanto aos noventas, discordar não impede o respeito por Cláudia Roquette-Pinto e Marcos Siscar, por exemplo, ou Josely Vianna Baptista e Claudio Daniel. As minhas discordâncias com a década incluem o que vejo como uma certa sedução discursiva, as vegetações metafóricas e a descontextualição poética que ocorre nos melhores poetas, com vários efeitos e causas, efeitos/causas, como a escolha de suas musas poéticas: Paul Celan, por exemplo, talvez a maior moda dos últimos dez anos, com suas técnicas descontextualizadas no cenário brasileiro. Se pensarmos na declaração de Norman O. Brown de que "syntax is the arrangement of the army" ou John Cage escrevendo em seu M: "Syntax, like government, can only be obeyed. It is / therefore of no use except when you / have something particular to command / such as: Go buy me a bunch of carrots", compreendemos a necessidade de Celan em quebrar, fraturar a sintaxe da língua dos que assassinaram seus pais judeus e o encerraram também num campo de concentração, língua que, nas palavras dele, continuou a soar eufonicamente bela, mesmo em meio aos maiores horrores. Aquele era o contexto da década de 50, de sua língua e de sua tradição. Basta observar o que se passava em nosso contexto para ver a discrepância, nos nossos anos cinqüenta em que João Cabral de Melo Neto, Oscar Niemeyer, João Gilberto e Alfredo Volpi praticavam o enxugamento e conceitualização minimalista de 400 anos de fundação, apropriação e consolidação da nossa cultura, coroando-a com suas obras internacionais e impossíveis de produzir em qualquer outro país, que não o nosso. Faz sentido aplicar, em demasia, as técnicas de um poeta como Celan, no contexto brasileiro, cinqüenta anos depois?


CA - Este número de Inimigo Rumor traz uma pequena homenagem a Robert Creeley, recentemente falecido. Você poderia falar um pouco sobre o seu contato com a obra de Creeley, a quem você admira muito?


RD: A primeira menção ao nome de Robert Creeley de que me lembro foi na dedicatória de Charles Olson, em seus Maximus Poems: "for Robert Creeley, the Figure of the Outsider". Eu me lembro de ter ficado intrigado com a expressão. Isto em 1998, numa época em que eu já estava obcecado com a busca de obras alternativas às mais conhecidas e influentes, tanto na literatura brasileira quanto na americana, por exemplo, e buscava em autores como Charles Olson e John Ashbery, ou Orides Fontela e Hilda Hilst uma saída para a pasmaceira. Quando descobri, então, os poemas do próprio Creeley, a começar pelos famosos "I Know A Man" e "The Language", e passei a lê-lo, o que me atraiu foi justamente a obsessão centrípeta/centrífuga nesse poeta de aparentes paisagens internas, em que o interno e o externo, na verdade, freqüentemente borravam-se. E sua obra realmente destacava-se, quando comparada com os temperamentos mito-poéticos de Charles Olson e Robert Duncan, os dois outros nomes, em minha opinião, da grande tríade da Black Mountain School. Falava-se muito de seu "minimalismo", mas a sensação que sempre tive em seus poemas era o de um mover-se como com roupas justas, mas sob medida, porém com freqüentes ataques de claustrofobia. Sim, talvez seu senso de medida (para usar as palavras de Michael Palmer, na introdução às traduções de Régis Bonvicino dos poemas de Creeley) nos mostrasse que nos movemos e relacionamos através de relações de subtração. E quando passei a buscar as medidas para a minha própria geração, uma delas foi em sua form is never more than the extension of content, usada por Olson em seu "Projective Verse", que distorci e redirecionei em form is never more than the intention of context. A lição de um poeta em quem a objetividade jamais descambou para o mero descritivo ou discursivo, nem precisou obliterar o interno para afastar o perigo da sentimentalidade. Talvez, por aprender com Ezra Pound que "Only emotion endures" e, provavelmente com L. Wittgenstein, que só se vê o mundo com os próprios olhos - ele que perdera um e parecia não estar disposto a desperdiçar mais nada em sua contemplação desse mundo. Esse poeta que, como todos os que admiro, escolheu alinhar-se ao William Carlos Williams que escrevera suas certidões de nascimento iluminadas em "Spring and All", num mesmo momento em que T.S. Eliot carpia suas certidões de óbito em "The Waste Land." Talvez, mais uma demonstração de como as relações entre o contexto/ambiente e as disposições pessoais de um poeta levam-no a moldar, a remodelar o mundo em que todos vivem, para que possamos encher a boca ao pronunciar o substantivo "cultura", respingado de sangue aqui e ali. A linguagem é, ao final das contas (quem paga?), comum, de todos. Outra lição do Creeley, íntegro e obcecado com o "one" em seus poemas. Simplicidade que jamais se finge de naturalidade. A plenos pulmões ou sem fôlego, a língua entre mandíbulas e céu-da-boca lida com artifícios.



(Publicada originalmente na revista Inimigo Rumor nº 17)

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