segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Morticínio ancestral

"Morticínio ancestral" é um poema inédito que incluí numa seleção a ser publicada em Portugal, sob o título Canção da benzedura e outros poemas, pela Livraria Poesia Incompleta, do querido Changuito. Nesse volume, incluí poemas que venho chamando de localistas, centrados na cultura interiorana da minha infância.



Morticínio ancestral


                   a Rosária Cardoso in memoriam


Quando minha avó torcia o pescoço 

dos frangos, não raras vezes

chegando a decapitá-los, 

e os lançava ao chão frio de cimento 

para aquela dança assustadora, 

não havia em seu rosto 

paixão, prazer, ou pena.


Na escuridão escondida dentro do meio-dia,

aqueles morticínios eram os atos 

mais honestos na violência 

daquela casa e daquela infância.


Afogando na água fervente

os cadáveres sem cabeça 

[que ficara de banda no quintal 

interrogando seu Criador],

ela passava a depená-los, ágil,

qual fosse ela um gavião-pedrês.


Como o cafuné do crânio da onça 

no crânio da capivara, 

ou o abraço anelar das garras do carcará 

ao redor do corpo todo-torso da cobra, 

nada naquela velha

era cogitado 

para além da missão simples:


alimentar a prole.


Como todo animal que não questiona

a cadeia alimentar diante da fome,

minha avó foi o bicho mais inocente 

da minha casa e da minha selva.


Mais do que os gatos e pombos,

mais do que os jabutis e coelhos,


com certeza 


era mais inocente minha avó 

do que as cachorras da casa, 

aquelas cachorras grandes e gordas

com os dentes afiados — mas inúteis,


esperando também daquela mamífera-anciã 

que manchasse ela as mãos de sangue.



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terça-feira, 23 de novembro de 2021

André Capilé - excerto de "madrugada pombagira do absoluto", do livro inédito SERENO

André Capilé, tata kanzumbi no terreiro
Omariô de Jurema (Barra Mansa RJ)
fotografado por Clara Nascimento

MADRUGADA POMBAGIRA DO ABSOLUTO

vocabulário do ódio é o que resta na boca / violenta, a malta só ruge -- estila sua baba louca / já não me sobra mais nada na presa lisa da víbora / se a vida te levar a pulso, o soldo da sorte é a mirra


ei, Mumm-Ra 
chega e vê 
a ira do mar que vem
sinistra
procela 
a surra do céu também 
se cair
lá não vai
sobrar ninguém pra contar
que a paz
quem tomou
foi quem bebeu da guerra


a pira da bilha do porco, na boca larga da fome, / a fera fixa o hálito, o espanto lá no horizonte, / espana o espantalho as gralhas, / o cheiro do mijo, paura, / em sua entranha o expurgo do monstro que sonha alturas

vinha lá de cima a mais braba, mas coisas que a vida macumba / girava na barra da saia, na ponta da faca ela estuda / a rua medida a seus pés, em cada canino era fúria / linhas de soco no peito, seu nome era a dura recusa


temporal
chega e vê
a ira do céu que vem
sinistra
de ventar
nuvens de peso explodem
se cair
lá não vai
sobrar ninguém pra contar
que a paz
quem tomou
foi quem bebeu da guerra

se eu vir chegar a manhã 
há chance até de viver

tambores avisam que o conta-giros
não vai ceder, não vai ceder

– André Capilé

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domingo, 7 de novembro de 2021

CARTOGRAFIA DO FUNDO DO POÇO


1- 

País solitário, 
de um só 
habitante 
só,
fronteiriço
aos fundos 
dos poços 
de todos 
os outros.

2- 

Feito o último exemplar 
de uma espécie:
um rinoceronte 
velho e reumático,
um dodô dodói,
um neandertal 
com dor de dente.

3- 

Até planetas acabam presos 
num travamento gravitacional,
a rotação capturada,
um mesmo e único hemisfério 
encarando sua estrela,
e o outro, numa noite eterna.

4- 

Todas as marés 
aqui
são baixas.

5-

Conheço palmo a palmo
este chão 
de arranha-céus do avesso,
seco — onde os olhos
labutam, incessantes,
para doar-lhe um mar.

6-

Os mais antigos, escolados 
nos despenhadeiros,
haviam alertado para a necessidade 
do equipamento de montanhismo.

Arqueólogo dos próprios barrancos,
eu trouxe ao fundo do poço 
apenas o equipamento de escavações.

Das pás fazer asas.
Das tripas, cipó e escada.

7-

Recomendam todos
que eu vá ao encontro 
daqueles cavaleiros,
não da Távola Redonda
mas da Tabula Rasa.

Gosto dessa companhia,
a dos que nada mais têm
a perder.

8-

É costume erguer-se,
dizer o próprio nome,
e confessar 
limpezas e sujidades.

Levanto a carcaça 
desse trono da nulidade,
e digo:

“Este sou eu,
Sísifo-Dido,
o limpo-sujo,
o sujo-limpo.”

9- 

Esta é a minha tribo,
estes felizes 
que se desiludiram
mesmo de si.

10-

Este não é seu país de origem.
Este não é seu país de destino.
Também aqui aplica-se 
a lei da usucapião?

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quarta-feira, 22 de setembro de 2021

"Regresso ao agreste", um poema-canção de Makely Ka

Makely Ka é um trovador contemporâneo brasileiro, nascido em Valença do Piauí, em 1975.

REGRESSO AO AGRESTE Regresso ao agreste Esse reverso de floresta E do pouco que ainda resta Esse progresso ao revés Regresso ao agreste Do eucalipto ao cipreste Entre a transgênica semente E a hidrelétrica da vez E hoje a meta-resposta É talvez Um deserto, essa réstia De través Hoje tudo que pasta É a rês E um trator que arrasta Tudo ao rés Nessa terra de xerife Onde tudo se decide Na base do cassetete Não duvide O sujeito te agride Um sozinho contra sete Você pensa no revide E arremete DDT e neocide Com a monsanto quem compete Com o imposto que incide Quem resiste Qual o custo desse bife Qual o lucro dessa thread Isso tudo é muito triste E só regride Regresso ao agreste Seguindo por essa reta Onde aponta uma seta Leio a placa em português Regresso ao agreste Onde a commodity reveste Todo lucro que se investe Do que vende-se ao chinês E hoje a meta-resposta É talvez Um deserto, essa réstia De través Hoje tudo que pasta É a rês E um trator que arrasta
Tudo ao rés 

 
 

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terça-feira, 21 de setembro de 2021

Seminário de Poesia Contemporânea na UFPR e a homenagem à poeta pernambucana Tereza Tenório

DESTA VEZ, AQUI, AGORA: VOZES DA POESIA CONTEMPORÂNEA.



Terceira edição. Organização de Sergio Maciel, Guilherme Delgado, Renata Mocelin e Luciane Alves. Universidade Federal do Paraná.
DIA 1 (14/09)
Wellington de Mello
Henrique Provinzano Amaral
Anelise Freitas
DIA 2 (21/09)
Paulo Henriques Britto
Diego Alves Amancio
Margarida Vale de Gato
DIA 3 (28/9)
Edimilson de Almeida Pereira
Ronald Augusto
Márcia Brito
POETA HOMENAGEADA: Tereza Tenório (Recife, 1949–2020).

*


POEMAS DE TEREZA TENÓRIO
CORPO DA TERRA Pela janela o verde nos revela o coração da mata acesa o úmido veio das aromáticas resinas dentre nossas raízes enlaçadas a destilar a essência do teu hálito em mim corpo da terra desvelado * A FACA SOBRE A ÁGUA Existe o duplo silêncio: o da flauta e do tempo (que há mundos paralelos). Há o movimento rítmico: o do pêndulo no silêncio partido do hemisfério. E foi teu último engano: a ferida rubra e sangrenta. A branca madrugada transformou-te de louca suicida em clara manhã de pássaros e fadas. Houve também a faca sobre a água com o brilho mortal das escamas rápidas e houve o encontro da terra com os astros na rota dourada do fim de tarde. * A CASA NA COLINA Quem sempre quis uma casa na colina pra que pudesse namorar as árvores Tanto sonhou o rosto de uma menina sua cabeleira a refletir as vagas Eu que amarguei a solidão da sina de uma infância sofrida além da margem de tanto amar o amor como a saudade transformei-me ao sol dessa menina Tendo na boca o gosto da menina do crescer na paisagem do silêncio degustando a palavra enquanto sina transformando o silêncio enquanto tempo em meio ao sonho que a estrela move em meio à sina que se mofe ao vento * CASO O meu primeiro amor morreu de fome O meu segundo amor não teve jeito O meu terceiro amor se fez amante recebendo-me à tarde radiante Até hoje vivemos do seu jeito como meu último amor fatal perfeito * VIRTUAL No epicentro das ondas invisíveis edifiquei mandalas para os celtas habitantes dos últimos milênios guelras de peixes e barbatanas retas Onde o mar arrastara nossas redes para morder-nos tênues fios de espera o fluir das espumas retalhou os tecidos da carne contra as pedras nos módulos lunares dissolvi toda a sombra da superfície líquida seus cardumes de tubarões-martelo entre indormidos teoremas míticos arremessei ao lume destes versos nossa imagem virtual de estranhos ritos * TRÍPODES Queimados os corações no sacrifício dos remos sobre a pedra dos oráculos reedificamos o templo Marujos noutro avatar fomos mortos ao relento entre carvalhos e trípodes no temor ao deus sangrento No corolário da lenda filha dos quatro elementos fertilizamos a terra na fenda ao sul do oriente ao fim do embate mortal a seiva do sol no zênite .
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terça-feira, 14 de setembro de 2021

Carla Diacov - "o burro trota tão lentamente"

Carla Diacov (São Bernardo do Campo, São Paulo, 1975)




[O BURRO TROTA TÃO LENTAMENTE]
o burro trota tão lentamente
perdido do nome gritado
carrega ovos nas mãos escondidas nas
mangas do casaco extralargo
coitado do burro com mãos
perdido da moldura antiga
pacífico de sua própria demência
bonito tão bonito pacífico tão lindo
lentamente ruma
já a casa de fé nos olhos de burro
parece um peixe coitado pacífico
tem esse jeitão de aquário trincado
gosta de cadeiras em geral
mas é boa gente
gosta de leite quente e de cadeiras
em geral
chega ao templo das irmãzinhas castanheiras do último dia
deixa os ovos no altar
faz carinho nos porcos
pega o microfone e repete
quase porque quase porque quase
tudo empilhado
quase porque quase porque quase porque
é mesmo um burro
queria ser pianista
tem muita fé quase porque tudo empilhado
mas é mesmo um lento burro de carregar ovos
pacífico todo pacífico demente e lindo
tão bonito tudo empilhado

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quarta-feira, 8 de setembro de 2021

André Capilé - "Kuzuela"

Para mim, trata-se de um dos grandes poemas do nosso tempo. Merece um ensaio alentado, mas como o incluí no dossiê de poesia brasileira contemporânea que estou organizando para uma revista do âmbito germânico, terei que enfrentá-lo em breve. 


KUZUELA
André Capilé

ó pássaro verdadeiro
ó pássaro sincero

papagaio ê!

seja bem vindo
gostamos de recebê-lo

mas não nos garantimos boas novas

os maridos ainda recusam a voz das esposas
os pais renunciam a voz de seus filhos

nossos avós saíram da raiz faz tempo
mas o tronco resiste apesar dos inventos

esta é a terra e o que se tornou

veja
estamos sempre prontos a nos repetir

viemos a esta terra
comemos desse esterco

em um mundo
que não devia ser tão espalhado
em um mundo
que se distrai por trair ser pacífico
em um mundo
que é apenas um lugar de mercado

uê papagaio uê!

será possível que se instale um vau
que se preciso atravessemos juntos?

e o que virá depois do salto, o óbvio?

de um lesa-majestade ouvi a prece
nem todos voltarão pra casa um dia

até que dê ciência a concha ao molde
é o estéril que engravida o caracol

viemos até aqui
agora chamamos de casa

ó há terra para todos

talvez devesse um elogio
que te fizesse mais feliz

ó há terra para todos

e me escutasse o que rezava
e respondesse cada reza

ó há terra para todos
é de lá meu papagaio

uê que espalha o mundo no lajedo
tão grande, tão poderoso

que não pode vencê-lo a calma
a violência de teu silêncio

quem ousar eiá eu vos digo
enxaguará as mãos pra comer terra

quem ousar eiá eu vos digo
entrará pelo duto ó cu dos céus

e quem ousar eiá que aproxime
mil e um passos contados pra trás

hoje não vou ousar ser tão rude com ele
são mais de mil passos à frente do rei

ó colorido com a tintura do açafrão
patrono dos tapetes sem tamanho

esta terra deve ser pacífica
esta terra deve ser prolífica

a terra deve ser boa pra nós
a terra deve nos favorecer

não botamos nossos ovos pra guerra
nós que somos testemunhas do luto

não merecemos castigo
não devemos ser roubados

papagaio ê!
venha ouvir nossas súplicas

papagaio ê!
prestamos homenagens ao senhor

ó pássaro verdadeiro
ó pássaro sincero

seja bem vindo
gostamos de recebê-lo

não ouça amanhã nossos gritos
não nos garantimos boas novas

*

in Muimbu (Juiz de Fora: Macondo Edições, 2019)

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domingo, 29 de agosto de 2021

Diego Alves Amancio [poema]

 MUITOS CAMINHOS

levam
ao silêncio (1) recusar
à réplica, não
desenrolar o fio
da conversa: se
enforcar com
ele; (2) se ater
ao elementar: que horas
são? Esse ônibus
segue até a praça da
independência? Café
sem açúcar, por
favor; (3) se espelhar
na mudez das águas
que discursam
só quando
agitadas; (4) furar
os tímpanos
com cotonetes
de vidro; (5) cirurgiões
clandestinos,
bisturis oxidados
que desatem o nó górdio
das pregas vocais; (6) mas
o menos radical,
o mais comum
é encher a boca
com palavras,
mastigá-las com
dificuldade e
cuspi-las para cima
até atingir
o estado de silêncio
pelo ruído.


*


Diego Alves Amancio  é um poeta brasileiro, nascido em Londrina, estado do Paraná, em 1988. É ainda inédito em livro.


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quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Allan Jonnes - "O sol não ilumina mais o olho bege de Gisele"



O SOL NÃO ILUMINA MAIS O OLHO BEGE DE GISELE
Allan Jonnes

O sol não ilumina mais o olho bege de Gisele
nem se pode saber qual dermatite
escama entre os dedos e as covas

das unhas doentinhas
quando Gisele lava os operados

não há sol no mundo que ilumine o caramelo triste
do olho de Gisele
e ela louva coberta de glaucoma

até as putas mais indiferentes destas ruas
curvam suas orelhas à porta da igreja Batista Betel
quando Gisele canta para os Lázaros às segundas

e rasga uma canção tão triste quanto uma criança
débil mental babando a cabeça descosturada de seu elefante  
de pelúcia numa cadeira de rodas na rodoviária do Recife 
quarta-feira de cinzas

outro dia sob a marquise de um café em Minas Gerais
bêbado de conhaque e manuseando imaginário
a caixa de controle do seu ex-trator
o viciado aponta na camisa a inscrição

a cabeça de Mao é o nosso sol vermelho

Gisele não sabe das revoluções camponesas
de nenhum lugar do mundo
mas vende calculadoras nos ônibus de linha
ao preço de dois reais
para a manutenção dos ídolos que reúne

*

Allan Jonnes é um poeta e performer brasileiro, nascido em Lagarto, Sergipe, em 1990. Acaba de publicar o livro Areia para engrenagens.

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terça-feira, 24 de agosto de 2021

Érico Nogueira - "Retábulo" (inédito)


Há alguns dias, pedi a meu grande amigo Érico Nogueira que me enviasse um "poeminha" inédito para a plataforma digital da revista peixe-boi

Não esperava que o homem me enviaria este "Retábulo",  coisa poderosa que merece publicação em qualquer espaço que eu detenha. Que belo poema.


RETÁBULO


ACHEI, ENQUANTO BESTAS DE AÇO BRA-

-miam e de hélices roncavam vespas,

Um bilhete em meu nome; as letras crespas

Eram tinta de assombro, ou pez de sombra.

Abri. Exortações exatas à obra

Por obrar inda, de gramar a gleba,

E redobrar o que se não desdobra,

E em ferro duro pôr o fumo débil.

Aquelas coisas – casos aquilinos

De ovelhunas misérias cravejadas

Em madeiros de mais agudos trinos.

Crucificadamente encruzilhados

O lambique que sílabas destila,

A linfa que deflui do flanco, e estrila.



UM FOGO ABSTRATO, UM ALGARISMO FULVO

Brilhando à brisa em bruma de uma hipótese

Implausível; a glândula da hipófise

Secretando um segredo indissolúvel.

O trajeto mais reto o mais recurvo,

E a mais vígil vigília uma narcose

Que se condensa no clarão mais turvo

Da chaga sem conceito e sem necrose.

Convoluções de convolutas voltas

Em órbita de um algo, uma agonia

Que te acoita e te acode por aguda.

Conexas vozes de palavras soltas;

Escultura que escalda a pedra fria;

– Ó retrato mudável, que não muda.



SENSAÇÕES ASSOLADAS DO INTELECTO

Ou conceitos do látego acossados?

De elipse a elipse se me elude um repto

De palmas e de pés em cruz. Eu falho.

Eu quedo aquém. Dos riscos no trançado

Da madeira me obceca muito objeto.

Ah, quem me dera o talhe mais dileto

Discernir entre a massa dos entalhes.

Mas não. Cada arabesco é uma tortura

Tortuosamente amaranhada – opaca,

Oblíqua, oblonga –, flecha que não fura.

Vai ver, Senhor, é isto: a iniciática

Via-crúcis das formas é antecâmara

Do amor que se despoja e se desama.



DESPOJAR-SE PEJANDO-SE DAS LINHAS

Excessivas, elípticas que a lima

Perlustrou e poliu no madeirame

Qual enxame de traços em enxame

Ou desamar-se amando este tentame

De fiar ferros orbitais de um ímã

Que os trança e entrinça e entronca e desarrima

Em contínuo, magnético certame

É despojo de pó, mau desamor,

Cupidez de asperezas deduzíveis

Taticamente à parte do cruor

Dos espinhos... De cardos e calhaus

Mune-se a mente entre ondas infiéis;

O fiel corpo entre holandas se refaz.



DA TRANSPARÊNCIA ARTÍFICE DO VIDRO

Que se industria em nítido binóculo

Ao cristalino elemental de um olho

Naturalmente hábil – quanto dista?

Do alquímico sabor de sumo cítreo

Ou de ouropel sintético o refolho

Ao limoeiro rústico e imperito

E uma jazida abrupta entre os escolhos?

Tanto dista, ah, Senhor, quanto o madeiro

E tu nele cravado em sangue rúbeo,

Do lavrado lavor desta madeira   

E um asséptico homem de Vitrúvio.

Se Deus à carne crua já desceu,

Por que a culta subir não pode a Deus?



CARNE CULTA NO AMOR QUE SE DESAMA

De tanto amar um só e dele os muitos,

Incontáveis lugares e minutos

E rostos em que flana a sua flama

É a só que sobe a antrópica montanha

E só se o pensamento exato e enxuto

Não for culto de formas, mas for culto

Em armar aranhóis, absorta aranha.

Assim, se a carne sobe, numa teia

Do pensamento arácnido quem sabe

Se mais lúcida abelha não se enleia

E alumia o que a carne só não sabe.

É um outro amor, este do pensamento;

Um brilho, um voo, um eco, um raio, um vento.



É O PENSAMENTO, POIS, QUE SE DESPOJA

Da série monocórdia de sinapses

E entre lobos e córtices se arroja

Tão vária e velozmente que num lapso

O sistema ancestral cai em colapso;

E o pensamento, puro do que enoja,

Como luz e calor na mesma tocha,

Converge em raros, rarefeitos ápices;

Mas, ai, que a carne clama, inda que douta,

E, socolor de cíclico equilíbrio,

O sistema caído se levanta;

No breu de um pensamento já sem brio

O cérebro maquina maquinal

E a nova se enovela, e é o velho mal.



MAL DA FOSCA FRIEZA QUE DESCREVE

A maligna engrenagem do relógio

E o minuto e o segundo, como fogem,

E como corre o mal e quanto ferve;

A arquivolta, a arquitrave e os tramos lógicos,

Alaques e predelas que refervem

De nervuras nervosas e da verve

De ornatos flóreos e ornitológicos;

Mas o mal não evita, quando vem;

Mas o bem, quando foi é que o adora;

E um conhece se aflui, o outro se falta;

Desce aos detalhes e os descreve bem,

Mas, atômico número do ouro,

Não sobe nem reflete nem refrata. 



ASSIM SUBISTE AO CIMO DA CAVEIRA

Por açoites, espinhos, cravos, sangue,

Assim lime e labore e lustre e lanhe

Por escrever o que não escrevera.

E por poder o que já não pudera,

Ou já por que o perdido ou ache ou ganhe,

Hei de arrancar de mim o que da terra

Ninguém arranca, quando não lhe arranquem.

És tu, Senhor, quem troca no meu tórax

A pedra que se veste aí de víscera

Por víscera que vige, e aonde moras;

Então, quanto cultivo, é quanto viça,

Então as sílabas que escando, tantas,

A só ressoam que contigo cantas.


§ Caetera desiderantur §



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quinta-feira, 22 de julho de 2021

INDÚSTRIA CULTURAL

 As distrações 
para as famílias do interior
exigem recursos humanos
próprios.

Aqui 
não vêm atuar
os grandes atores,
aqui 
não vêm ler
os grandes poetas,
aqui 
não vêm cantar 
os grandes cantores,
aqui 
não se digna
a interpretações 
a intelligentsia.

Aqui, 
às igrejas evangélicas 
e às academias de ginástica 
pertence a implementação 
do Mens sana in corpore sano.

As visitas à sorveteria
que antes fora uma pizzaria
e antes, uma lanchonete, 
apenas mudam as paredes,
que não trazem 
nem fotografia nem pintura
de tradições centenárias.

O espaço público 
— nem Ágora nem Eclésia —
incita variações 
— agora aos sussurros —
dos ressentimentos velhos,
das irritações pequenas
que se acumulam
e latejam como pústulas.

As frustrações do pai,
as frustrações da mãe,
e assim, em escadinha,
as frustrações nascentes 
da prole toda, em perdas
crescentes.

À mesa 
reina nossa mesma 
falta de assunto da janta
ou o assunto repetido 
à exaustão. As dívidas 
com Deus e com César.

E sim, o silêncio 
sobre os únicos assuntos
que quiçá nos salvassem.
Quem-nos-dera, num instante 
de lucidez repentina,
aguássemos agora
os sorvetes, as pizzas, os lanches 
com lágrimas, esgoelando juntos
na sarjeta. Mas o que diriam
os vizinhos?

Nas capitais
lacrimeja a intelligentsia 
— o povo! o povo! — 
enquanto o mofo e o musgo
cobrem aos poucos 
a nossa não-boca, a nossa não-alma.

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sexta-feira, 25 de junho de 2021

Acerca de Ernâni Rosas

Existe uma outra pavônica esquecida pela qual tenho apreço. Talvez "esquecida" não seja a palavra, pois tendo sido vista como representante de uma geração tardia do Simbolismo, quando o movimento já fora declarado oficialmente encerrado, jamais sequer entrou no cânone.

Falo de Ernâni Rosas (1886–1955). Toda vez que lamento que jamais saberemos o que Augusto dos Anjos (1884-1914) e Pedro Kilkerry (1885-1917) teriam feito em contato e confronto com o Modernismo e as vanguardas, uma voz sopra no meu ouvido: "lembre-se de Ernâni Rosas". O que quero dizer é que Ernâni Rosas viveu até a década de 50, morreu com 69 anos, e passou incólume pelo Modernismo e as vanguardas. É como se 1922 não tivesse existido. O que havia de moderno em sua poesia – que vejo como moderna, assim como são modernas as obras de Augusto dos Anjos e Pedro Kilkerry – permaneceu tal como em sua origem.

Augusto de Campos apontou com muita acuidade que Ernâni Rosas poderia ter sido nosso Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), chamando nossa atenção para os compósitos inusuais, o domínio da sonoridade, e a invenção sintática. E há realmente ecos no vocabulário e simbologia do brasileiro e do português, mas Rosas manteve-se fiel a uma tradição que não o torna quiçá menos moderno, se pensarmos em como nem todos os Modernismos Internacionais abandoram a métrica e as formas fixas, mas infelizmente é difícil não ler nos poemas do catarinense mais uma vez o tal "gosto de antiquário". Seu pavonismo esteticista porém é muito bonito, em minha opinião.

Pensem agora nas idades destes poetas. Augusto dos Anjos nascido em 1884, Pedro Kilkerry em 1885, e Ernâni Rosas nascido em 1886 - no mesmo ano em que nasceu Manuel Bandeira, o São João Batista do Modernismo. Augusto e Pedro poderiam tanto ter percorrido a trilha manuelina quanto a trilha ernânica. Jamais saberemos.

Mas vale sim conhecer Ernâni Rosas. Amiga pavônica.

ERNÂNI ROSAS (1886-1955)

O SONHO-INTERIOR 

O Sonho-Interior que renasceste
era o Poema dum Lírio do Deserto,
o vinho d'Outras-Almas que bebeste
fatalizou o meu destino incerto.

Depois por Ti em Sombras de degredo
encerrei a minh'alma desolada,
tive a tua visão crepusculada
na Beleza fugaz do meu segredo.

Perdeu-se-me ao Sol-Pôr teu rastro amado!
qual Cipreste, no Poente agonizado —
na demência autunal duma Alameda.

Velaram-se Sudários teus Espelhos
ante o cerrar do teu Olhar de seda,
que era um descer de lua em cedros velhos.

*

OUTUBRO. O SOL 

Outubro. O sol em fuga d’oiro parte!
E a paisagem parece que morreu.
Todo um temor procura-me afastar-te.
Dentro de mim tu'alma floresceu.

Cerrou-se-te palácio em brônzeas portas.
Teus repuxos cessaram de se erguer.
Há um estranho rumor a coisas mortas,
Já as fontes pararam de correr.

Guardo um rumor de folhas na alameda,
Gela-me a paz da tarde pelo outono.
Anda um tecer de luz a oiro em seda!

Sonho-te ausente... ou antes recolhida,
Vejo teu ser passar pelo abandono:
Como uma sombra errante em minha Vida.

*

AO POENTE

Gosto de ver na síncope do dia
A mistura de tintas do poente,
O sangue vivo, violento e quente
Do sol, n'uma medonha hemorragia.

A claridade extingue-se na enchente
Da noite, de uma atroz melancolia,
Mas, na curva rosada inda sorria
A luz do fim da tarde no ocidente.

Pirilampos azuis, misteriosos
Saem das moitas frescas, perfumadas,
Como os astros por céus silenciosos.

E, por entre o salgueiro de uma cava,
Surgia além, das fúnebres moradas,
A cimitarra de uma lua nova.

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sábado, 19 de junho de 2021

Acerca de Walmir Ayala

Walmir Ayala (1933-1991)

Na pesquisa sobre a poesia homoerótica e os poetas homossexuais da República Federativa, um nome recorrente e incontornável é o do gaúcho Walmir Ayala (1933-1991). Não conheço poeta contemporâneo que o reivindique – ou vindique. Continua uma figura que se obscurece cada vez mais desde sua morte. Certamente há um grau de homofobia nesse processo. Bastante vocal e barulhento durante a vida, foi gradualmente esquecido como figura cultural nas três décadas seguintes (são 30 anos desde sua morte). Não há justiça completa aí. Trata-se de um poeta bastante irregular, mas que deixou alguns poemas sim bastante bonitos. 

A sensibilidade homossexual, tal qual Susan Sontag buscou teorizar no ensaio "Notes on camp", tem o que os modernistas chamaram de "gosto de antiquário", ainda que não da maneira como eles usavam a expressão. E o gosto CAMPista tende ainda ao exagero, ao que chamamos de espalhafatoso. Em poetas como Sosígenes Costa, Valério Pereliéchin ou Mário Faustino, essa explosão, essa centrifugacidade, acaba contida pelas formas do soneto e da balada. As métricas fixas não têm como fazer milagres com a linguagem abstrata e algo meditabúndia de Walmir Ayala. Além da sua falta de humor, sua aparente incapacidade para a autoderrisão. Mas quando ele consegue ficar ao rés-do-chão, sua poesia voa muito mais alto. Parece-me o caso de muitos dos poemas reunidos neste livro que a Patuá lançou em 2019, 'Poemas do surf', até então inédito, e que traz um ensaio fotográfico de Alair Gomes a pedido do poeta. 

– Ricardo Domeneck

*

OS SOBREVIVENTES
Walmir Ayala
Sem as pirâmides de Atlântida,
sem as colunas de seus templos,
sem seus deuses e incensos,
sem suas lutas e arenas floridas,
eles deslizam esquecidos.
Seminus e luminosos
eles enraízam nas águas
do esquecimento.
O futuro é hoje – eles clamam
Quando o futuro for, nós saberemos.
Por enquanto navegamos sobre o nosso próprio sonho
como coisas ressurgidas.

*

Abaixo, uma resenha de Ricardo Silvestrin para o livro.



Resenha de Ricardo Silvestrin
para o livro de Walmir Ayala,
Poemas do surf (São Paulo: Patuá, 2019).
Foi lançado recentemente pela editora Patuá um livro que resgata o interesse por um poeta que teve uma trajetória breve e intensa na cultura brasileira. Walmir Ayala morreu aos 58 anos, autor de uma obra premiada e de destaque em diversos gêneros: poesia, romance, conto, crônica, diário íntimo, literatura infantil, teatro, ensaio, reportagem e tradução. Teve também uma produção marcante como crítico de arte.

Quando publicou sua Antologia Poética, foi saudado por Drummond em artigo que acentua o contraste entre “a poesia como vibração do ser inteiro”, de Ayala, em que as palavras encontram “seu ritmo e organização encantatória”, e “os gelados e vazios exercícios formalistas, amparados em muletas de teoria e vã guarda, quer escapistas, quer pretensamente participantes, que nos massacram a paciência”.

Walmir Ayala deixou ainda uma grande quantidade de livros inéditos. Entre eles, está Poemas do Surf (Editora Patuá, 2019). O volume é formado por vinte e quatro poemas e treze fotos. Os textos dialogam com o ensaio de Alair Gomes, todo com imagens de surfistas e suas pranchas na praia de Saquarema. O conjunto de fotografias foi realizado na segunda metade da década de mil novecentos e setenta, a pedido do poeta.




Não se trata, contudo, de poemas criados como legendas dos cliques ou uma releitura em palavras do conteúdo visual. As fotos ambientam a sequência de poemas. Ficamos dentro do mar de imagens e letras. Mas a poesia, no livro, se constrói de várias maneiras. Ora como observação, que se permite também a indagação, como quem tenta desvendar o sentido do que está diante dos olhos:

- Que coisa é esta que flutua
cegamente
sobre um lençol
de espuma
e corta, com sua quilha, a carne da água?

Ora como tentativa de recuperar o que ficou nas lembranças:

Procuro desenhar de memória teu percurso.
Inútil: estás sempre onde
não caem
as algemas dos meus olhos.

E mesmo a ausência é motivo para se criar do nada mais um poema:

Vejo o mar vazio.
Vejo a tarde, a última prata
da luz. E não te vejo.
Não vejo tua prancha,
nem o estrepe te ligando,
canal umbilical.

Predominam as imagens nos versos, a maioria sem rimas, mas que não abrem mão, em alguns momentos, de buscar a sonoridade interna das palavras: “Baila/em Bali/a onda bailarina.”. E mesmo a aparente leveza do tema escolhido, o surf, não descarta o peso de uma reflexão mais sombria sobre o testamento do surfista: “Sua herança é quase nada./Um sopro quebrado,/uma renda de espuma de alabastro.//Sua herança é o despojo/inútil/de um mastro.”.

O livro de Ayala é um exercício de descentramento do poeta, daquele tipo de poeta que só olha para si mesmo, para os seus sentimentos, para as suas vivências. Aqui, ao contrário, o que importa é olhar para o outro, para refletir sobre e a partir dele. Também a eleição de um tema pouco explorado na poesia conta pontos nesses poemas do surf. Trata-se de um assunto não codificado tanto naquilo que se costuma chamar de poesia do cotidiano quanto na linha dos ditos temas mais elevados.

Essa temática e esse livro cabem perfeitamente como a realização de uma visão mais ampla de Walmir Ayala, conforme ele expôs no seu poema abaixo (extraído do livro Estado de choque, a poesia de Walmir Ayala. São Paulo: Galeria Parnaso; Massao Ohno Editores, 1980):

*
ARTE POÉTICA
Walmir Ayala
Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.
Poemas que não envelhecessem.
Aspirava os pensamentos abstratos, as ideias transcendentes,
jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.
Eu queria a estação permanente dos fatos,
aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos
em reflexos cíclicos
de uma realidade essência.
Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,
pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.
Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,
eu sei que, como todas as civilizações,
a nossa tem um fim,
e já durou demais.
Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,
adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.
Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.
Por isso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária
duração,
esta idade virtual com pés de efêmero tato.
Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver
à sua legítima história,
mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam
a vida.
Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,
quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração
oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.
Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.
*
Assim, não pode haver nada mais efêmero do que a onda. É sobre ela que o surfista tenta domar o tempo presente. É com ela que aprende a recomeçar e recomeçar: “A sabedoria de pousar num corpo/como se pousa na exatidão irrepetida/da onda.”. É o que acaba fazendo também Walmir Ayala. Cada poema do seu livro é um “tributo do instante”, o que não impediu o poeta de conquistar, como mostra esta edição vinte e oito anos depois de sua morte, mais do que a duração da onda: a perenidade do mar.

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