terça-feira, 4 de setembro de 2018

De um museu em chamas e um sermão ouvido na infância

Eis o país. Salve! Salve!

Uma tragédia de tristeza acachapante. O museu havia completado 200 anos há poucos meses. Parabéns, ministros da Cultura e da Educação de Michel Temer, Dilma Rousseff, Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso, e ignóbil etc. Sugiro recolhermos as cinzas para uma exposição na Arena das Dunas ou no Estádio Nacional de Brasília, rebatizando qualquer um destes elefantes brancos de ‘Novo Museu Nacional’.



Entre as 20 milhões de peças que muito provavelmente perdemos com o incêndio do Museu Nacional, no antigo Palácio de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista, estava o crânio de Luzia, a mais antiga ossada humana encontrada no território. É uma destruição da história dessa terra que alcança uma dezena de milênios. No último ano, em várias performances relacionadas ao Brasil feitas na Europa, eu as iniciava dedicando-as a Luzia. Tenho toda uma série de poemas dedicados a ela, que já era só osso e agora virou cinzas. Virou algo brasil. Este poema meu é de 2015:

luzia do brasil
algo, um resto,
uma sobra,
luzia da terra,
luzia enterrada
essa migalha,
se do passado
ou futuro
não
se sabe,
mas segue-se
dando nomes
luminosos
a façanhas
e ossadas
dessa terra,
a brasa
na lama,
a luz
no fundo
da terra,
cava-se
até não
sobrar,
arranca-se
até não
restar,
e eis
que aqui
jaz
luzia, osso
ou caroço,
resíduo
ou semente,
não
se sabe,
será cálcio
ou caule
num sulco
ou túmulo,
mas ainda
luzia, luzia,
a primeira,
a primeira
que restou,
a última
que sobrou,
seus restos
os primeiros,
os últimos
do solo
que se faz
território
a que um dia
dariam outro
nome luzidio,
brasil, e luzia
que certo
não
sonharia
essa noção
de trapos
e bagaço
e lama
e detritos
e pó
que se
chamou
colônia,
império,
república,
estado
-nação,
não,
luzia
não
sonhou
brasil
nenhum,
quiçá
brasil
seja tão
o pesadelo
repetindo-se
no vão
do tempo
dentro
do crânio
de luzia

And then “these fragments” we had “shored against our ruins” went up in flames.

O luto pelo Museu Nacional ocorreu em frente à Biblioteca Nacional, que certamente está na mesma situação periclitante em que se encontrava o Palácio de São Cristóvão na Quinta da Boa Vista.

O Museu do Ipiranga em São Paulo está fechado desde 2013. No Norte, colegas alertam para a situação de descaso com o Museu Emílio Goeldi. Em visita a Juiz de Fora há um par de semanas, ouvi coisas escabrosas sobre o Museu Mariano Procópio.

Enquanto isso, deve estar luzidia ao sol a Arena do Pantanal, assim como outros mamutes (feito a Usina de Belo Monte). Já os restos de Luzia viraram cinzas brasis.

Se os senhores ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, e ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, não estão agora mesmo preparando suas cartas de renúncia, espera-se que estejam mexendo seus pauzinhos para a liberação de verbas maciças para os museus do país.

Mas, em ano eleitoral, alguém ouviu alguma pergunta sobre Cultura nos debates dos “presidenciáveis”?


Curt Nimuendajú nos jardins do Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1913.

Entre os pequenos alívios em meio à catástrofe está saber que o acervo de Curt Nimuendajú havia sido digitalizado recentemente. Alguns fragmentos vão sendo encontrados para escorar as ruínas das nossas ruínas.


'A tentação' - Hugo van der Goes, 1470


Eu me lembro de um sermão ouvido quando criança. O pregador relatava sobre a Queda, e como, ao apresentar-se Deus no Jardim, Adão jogara a culpa toda em Eva que por sua vez culparia a Serpente.

Foi o que me veio à mente observando ontem os discursos dos que seriam responsáveis pela maior coleção de arte e conhecimento da América Latina, repositório ainda de muita joia imaterial, como línguas indígenas já mortas.

O senhor ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão - certamente ao ver que muitos pediam sua cabeça - foi para as redes sociais declarar que o Museu Nacional estava sob os auspícios da Universidade Federal do Rio de Janeiro e portanto sob os auspícios do Ministério da Educação. Foi também o que disse o senhor ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, acrescentando: 'Agora que aconteceu tem muita viúva chorando'. A leviandade é embasbacante. Do senhor ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, não li sequer um pio até agora. Tampouco do próprio senhor ministro da Educação, Rossieli Soares da Silva.

Quem é o responsável, afinal? Um par de amigos estrangeiros me perguntou: mas ainda não rolou uma cabeça sequer?

Enquanto isso, o senhor presidente da República, Michel Temer - também conhecido como o Vampiro do Jaburu - lamenta o ocorrido.

Neste país, permite-se que rios morram (refiro-me tanto ao Rio Doce como ao Xingu), e museus queimem. Estamos passando por uma crise verdadeiramente política, não no sentido que tal palavra assumiu no país, onde se confunde o “político” com o “partidário”. É uma crise da pólis,

da co-vivência.

O rio Doce. O Xingu.
O Rio de Janeiro.
O rio Museu Nacional.
O RIO de DENTRO

como João Cabral de Melo Neto escreveu sobre aquele rito de Murilo Mendes: “nos rios, / cortejava o Rio, / o que, sem lembrar, / temos dentro.”

Talvez porque nossos avós e pais e nós mesmos aceitamos por tempo demais essa ‘guerra de exaustão civil’ que é esta República. Essa rês pública na qual todos queremos mamar. Vamos precisar de um fôlego de maratonista, porque só os ingênuos acreditam que a eleição presidencial deste ano nos tirará deste buraco.

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(Texto recolhido de várias publicações nas redes sociais)

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