Após tomar meu café neste domingo, fui convidado por meu anfitrião a acompanhá-lo à feira para dividir a dívida e o peso do carregamento. Pareceu-me justo, hospedado com conforto como estou, além de eu mesmo sentir agitar-se na barriga aquelas vontades grávidas de certas guloseimas paulistanas, ainda que não do machismo pitoresco dos feirantes da cidade.
Lá chegando, procedi a empanturrar-me de forma pantagruélica com pastéis (de bauru, aos mais curiosos) e copos de garapa (pura, pois sou purista nestas questões culinárias). Admirei-me, em primeiro lugar, da sinceridade mercantil do pasteleiro ao anunciar que o pastel de bauru trazia, por recheio, queijo, tomate e apresuntado, não presunto. Pareceu-me que seria um bom começo para a República em geral, ou seja: anunciar que é apresuntado o apresuntado e não presunto. Você estaria preparado para concordar, caro leitor?
Isto posto, percorri sorridente as vielas da feira onde fui abordado duas vezes em inglês por feirantes, algo que muito me feriu, não crendo ter voltado americanizado como cantou Carmen Miranda, nem mesmo germanizado (ah! o purismo da ‘mot juste’!), eu, euzinho ainda em plena posse do meu ziriguidum se não dos meus balangandãs.
Permiti-me um único ‘supérfluo’, que é como meu finado pai referia-se a qualquer coisa que julgasse luxo consumista quando íamos ao supermercado: comprei pinhas, aquilo que alguns de vocês chamam de atas e outros, de frutas-do-conde. Custaram-me os olhos-da-cara e quase também o olho-do-cu, mas ora, fiz-me um agrado que julguei merecido, já que, como escreveu Adília Lopes, “Deus não / me deu / um namorado / deu-me / o martírio branco / de não o ter”. Portanto, pinhas aos solteiros. Chegando à casa de meu anfitrião, taquei-as — as pinhas — para dentro do estômago já pastelizado e engarapado. Passei mal e dormi, enquanto o amigo dizia não comer frituras por causa da pança. Ora, a essa altura do campeonato erótico em que sigo perdendo de goleada, lá vou me preocupar com a própria pança?!
Querendo salvar o dia tentei ser produtivo culturalmente, essa doença paulistana, e corri para uma exposição. Dei-me mal, querido leitor. Pois mal sabia eu que toparia na Avenida Paulista com as hordas bolsonaristas festivamente preparando-se para retornar aos quintos dos infernos onde vivem. Decidi insistir. Apinhei-me no metrô, cantarolando em homenagem a meus compatriotas tão patriotas: “Se gritar ‘pega ladrão’, não fica um, meu irmão.”
Ao descer nas Clínicas fui surpreendido com maiores multidões, pois além das hostes verde-amarelas viria a se unir a nós a torcida do Palmeiras! Esqueci-me que o Estádio do Pacaembú é logo ao lado e não sou dos mais informados em assuntos primitivescos como o futebol. Logo ficaram mais verdes que amarelas as massas. Era de difícil análise o fenômeno de esverdeamento do amarelado, e não sabia eu por vezes se estava diante de um bolsonarista ou um palmeirense. É de se julgar que haja tanto bolsonaristas palmeirenses quanto palmeirenses bolsonaristas, assim como o leque de gradações entre tais polos.
Ora, o leitor me desculpe, mas há limites até para o mais convicto dos democratas. Herdei da casa paterna o cristianismo e o corinthianismo. Você, caro leitor, saberá bem que não pratico qualquer uma dessas religiões, mas mantive uma certa impressão infantil de que satanistas e palmeirenses são gente ligeiramente cafona, ainda que esteja pronto para concordar que são-paulinos podem ser piores. Os amigos satanistas e palmeirenses me perdoem, estou tentando ser uma pessoa melhor.
Assim sendo, voltei derrotado à casa do anfitrião, onde comerei pinhas e esperarei a chegada do amigo William Zeytounlian para que ao menos veja uma coisa bonita e vermelha antes que o dia acabe. Eis aqui, caro leitor e concidadão, a descrição de meu domingo neste Ano de Nossa Senhora da Escuridão 2018.
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São Paulo, 21 de outubro de 2018.
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