"Morticínio ancestral" é um poema inédito que incluí numa seleção a ser publicada em Portugal, sob o título Canção da benzedura e outros poemas, pela Livraria Poesia Incompleta, do querido Changuito. Nesse volume, incluí poemas que venho chamando de localistas, centrados na cultura interiorana da minha infância.
Morticínio ancestral
a Rosária Cardoso in memoriam
Quando minha avó torcia o pescoço
dos frangos, não raras vezes
chegando a decapitá-los,
e os lançava ao chão frio de cimento
para aquela dança assustadora,
não havia em seu rosto
paixão, prazer, ou pena.
Na escuridão escondida dentro do meio-dia,
aqueles morticínios eram os atos
mais honestos na violência
daquela casa e daquela infância.
Afogando na água fervente
os cadáveres sem cabeça
[que ficara de banda no quintal
interrogando seu Criador],
ela passava a depená-los, ágil,
qual fosse ela um gavião-pedrês.
Como o cafuné do crânio da onça
no crânio da capivara,
ou o abraço anelar das garras do carcará
ao redor do corpo todo-torso da cobra,
nada naquela velha
era cogitado
para além da missão simples:
alimentar a prole.
Como todo animal que não questiona
a cadeia alimentar diante da fome,
minha avó foi o bicho mais inocente
da minha casa e da minha selva.
Mais do que os gatos e pombos,
mais do que os jabutis e coelhos,
com certeza
era mais inocente minha avó
do que as cachorras da casa,
aquelas cachorras grandes e gordas
com os dentes afiados — mas inúteis,
esperando também daquela mamífera-anciã
que manchasse ela as mãos de sangue.
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