sexta-feira, 29 de maio de 2009

Feira de sextinas às sextas-feiras


§ - Feira de sextinas às sextas-feiras

por Ricardo Domeneck

Discutir a forma, função e contexto da sextina tornou-se, para mim, como um nó múltiplo que fosse capaz de fazer uma corrente transformar-se em teia, iluminando aspectos importantes para vários conceitos em vigor na historiografia literária contemporânea, assim como em nossa discussão sobre a historicidade do fazer poético. Na minha formação e estudo como poeta, lembro-me de quando primeiro li sobre sextinas e a sua descrição, por críticos literários, com a afirmação de que se tratava da mais difícil e sofisticada forma histórica para a prática de um poeta, com sua constrição formal estrita e restrita. Sua discussão vinha, invariavelmente, unida à descrição de sua "forma fixa", como fora, na crença de tais críticos, "estabelecida" por seu inventor. Sabemos, portanto, de sua estrutura altamente marcada, exigindo a aparição das mesmas palavras em uma sequência específica: 123456 - 615243 - 364125 - 532614 - 451362 - 246531, com o terceto ou dístico finais exigindo novamente a aparição das mesmas 6 palavras, não sendo à toa, destarte, que apenas um tour-de-force imaginativo permita aos melhores poetas que mantenham a graça (mais uma vez aviso não estar me referindo ao humor) e inteligência em um trabalho formal como a sextina. Ou pelo menos assim seguia a narrativa. Se uma discussão sobre o conceito de forma fixa tem alguma relevância hoje para o nosso debate sobre a historicidade do fazer poético, certamente a sextina serviria ao nosso questionamento ainda mais que o debate sobre a validade est-É-tica da escrita atual de sonetos.

Confesso (ouso) que minha sensação, na maior parte das vezes, ao ler sextinas mais recentes, dos últimos poucos séculos, era justamente a que venho chamando de "jogo literário", do poeta que se propõe um desafio, cujos resultados, ainda que competentes, o restringem ao âmbito do "literário", quanto mais este se distancia da estrutura completa do trabalho
como foi praticado por seu inventor, em forma, função e contexto. Conhecemos a forma da sextina, mas eu sentia a vontade de perguntar: qual a função e qual o contexto para essa prática, além do satisfazer do ego técnico de um poeta e seus críticos, além do prazer artístico que o leitor tem ao ler uma sextina bem-feita? Alguém poderá dizer: não basta esse prazer artístico da forma bem arquitetada? É claro que basta. É o motivo principal por que lemos ou ouvimos um poema. Mas eu tentarei elaborar aqui, se possível, a maneira como a sextina pode ilustrar minha preocupação com a noção de "forma fixa", que me parece equivocada, quando a solução formal de um poeta, com sua funcionalidade e contexto específicos, passam a ser tratadas como fórmula para o uso de qualquer poeta, em qualquer momento histórico. Espero que isso aclare ainda mais a minha posição sobre um debate mais complexo sobre a historicidade do fazer poético e sobre o que pode significar ainda hoje a conceito de forma fixa, já que poetas atuais seguem argumentando que todas as formas históricas estão disponíveis para os poetas, como alguns têm afirmado em recentes artigos repetitivos, a quem as vanguardas históricas não parecem ter passado de um afrodisíaco para soneteers.

Tomemos dois praticantes da sextina, de línguas e contextos históricos distintos. Em primeiro lugar, o trabalho de Luís de Camões (c. 1524 - 1580), os duros seios nos quais todos nós desde cedo mamamos, para citar o verso de Murilo Mendes. Camões viveu e escreveu em local não tão distante da região onde a sextina surgiu. Seus textos datam de cerca de 400 anos após a "invenção da forma" por Arnaut Daniel (c. 1150 - 1210). Uso aspas para certos conceitos, como "forma" ou "invenção", porque tentarei argumentar que o próprio vocabulário crítico usado, muitas vezes determina uma mentalidade condicionada ao extremo por uma est-É-tica específica, quando o crítico acreditar estar agindo de maneira empírica, científica, "neutra".

Creio podermos dizer, com segurança, que o contexto cultural, econômico e político que circundou a atividade dos trovadores occitanos em seu ápice, entre o reinado de Guilherme IX de Aquitânia (1071 - 1126) e a geração de poetas em atividade em meados do século XIII, que legou ao mundo os textos de Arnaut Daniel, Peire d'Alvernhe, Raimbaut d'Aurenga, Azalais de Porcairagues, Bernart de Ventadorn, Beatriz de Diá ou Bertran de Born, já havia se encerrado e transformado no tempo de Camões. O luso e o occitano já não compartilhavam o mesmo contexto. Tais equivalêcias temporais/culturais sao perigosas, haverá mais de um a querer alertar-me, mas poderíamos dizer que Luís de Camões estava talvez tao distante de Arnaut Daniel quanto Ezra Pound estava do próprio Camões, ao escrever sua "Sestina: Altaforte", ainda que se queira, muitas vezes, pregar uma ruptura distinta entre a nossa modernidade e a modernidade de outros momentos históricos. Creio termos estabelecido já, com vários autores, como Hans Robert Jauss e Fredric Jameson, que "modernidade" não é privilégio nosso. O próprio Haroldo de Campos, em seu equivocado "manifesto do poema pós-utópico", repete o achado de Jauss, ainda que o direcione às "armadilhas da coerência" de sua falácia teleológica. Mesmo as convoluções entre o tempo de Camões e o de Dante, este mestre da sextina, que aprendeu com il miglior fabbro, já os punham em contextos culturais distintos.

Ora, eu mesmo já afirmei que não nos importa aqui meramente fazer uma leitura sociológica e política dos momentos históricos de Arnaut Daniel, Dante Alighieri, Luís de Camões ou Ezra Pound, usando seus textos como mero documento histórico, político ou sociológico. Para tal intento, há jornais de época e cardápios de restaurante. O que nos importa é compreender o trabalho formal sem manuseá-lo em alguma espécie de espaço selado, como em experimentos em vácuo. Tenho buscado defender uma crítica que parta do texto sem, no entanto, ignorar outros aspectos além da forma, pois não podemos compreender esta forma sem uma avaliação da sua função e seu contexto.

Assim, isso interessa para a avaliação das sextinas de Dante Alighieri, Luís de Camões e Ezra Pound, as diferenças entre seus contextos históricos? Para muitos, não. Para mim, apenas na medida em que ela condiciona justamente as transformações formais entre uma sextina de Arnaut, de Dante, de Camões ou de Pound. Portanto, concordo com os zeladores do formalismo que o que importa é saber se Camões e Pound elaboraram textos com graça e inteligência, seguindo a constrição formal altamente rígida da sextina, tal qual foi "inventada" e praticada por Arnaut Daniel, que passa a ser o parâmetro de qualidade.
Há várias perguntas, infindáveis debates para esta questão. Sem mencionarmos as diferenças de línguas, é claro, seria realmente possível a Camões ou Pound escreverem sextinas da mesma "qualidade" das sextinas de Arnaut Daniel,
se mesmo a noção de qualidade parece transformar-se entre o século XII e o século XX? Seria realmente apenas uma questão de talento?

Um poeta por volta do final do século XIII, por exemplo, como era o caso de Dante Alighieri, em atividade cerca de um século após a morte de Arnaut Daniel, ainda compartilhava, em grande parte, do mesmo "mundo" de seu campeão eleito. Ainda havia trovadores occitanos em atividade quando Dante escreveu suas sextinas, algum tempo antes deste mundo naufragar no cataclismo da Grande Peste e das convoluções políticas que dariam fim à Idade Média. Em seu caso, a imitação era homenagem possível, de autor para autor de um "mesmo" contexto histórico.

"Al poco giorno e al gran cerchio"
Dante Alighieri


Al poco giorno e al gran cerchio d'ombra
son giunto, lasso! ed al bianchir de' colli,
quando si perde lo color ne l'erba:
e ‘l mio disio però non cangia ‘l verde,
sí è barbato ne la dura petra
che parla e sente come fosse donna.

Similmente questa nova donna
si sta gelata come neve a l'ombra;
ché non la move, se non come petra,
il dolce tempo che riscalda i colli,
e che li fa tornar di bianco in verde
perché li copre di fioretti e d'erba.

Quand'ella ha in testa una ghirlanda d'erba,
trae de la mente nostra ogn'altra donna;
perché si mischia il crespo giallo e ‘l verde
sí bel, ch'Amor lì viene a stare a l'ombra,
che m'ha serrato intra piccioli colli
più forte assai che la calcina petra.

La sua bellezza ha più vertù che petra,
e ‘l colpo suo non può sanar per erba;
ch'io son fuggito per piani e per colli,
per potere scampar da cotal donna;
e dal suo lume non mi può far ombra
poggio né muro mai né fronda verde.

Io l'ho veduta già vestita a verde,
sí fatta ch'ella avrebbe messo in petra
l'amor ch'io porto pur a la sua ombra:
ond'io l'ho chesta in un bel prato d'erba,
innamorata com'anco fu donna,
e chiuso intorno d'altissimi colli.

Ma ben ritorneranno i fiumi a' colli,
prima che questo legno molle e verde
s'infiammi, come suol far bella donna,
di me; che mi torrei dormire in petra
tutto il mio tempo e gir pascendo l'erba,
sol per veder do' suol parmi fanno ombra.

Quandunque i colli fanno più nera ombra,
sotto un bel verde la giovane donna
la fa sparer, com'uom petra sott'erba.



A linguagem de Dante é a mais próxima da linguagem telúrica de Arnaut Daniel. Não conheço muitos autores que tenham sido capazes de compor uma sextina tão graciosa quanto as de seu inventor, em que a linguagem substantiva não se perde no uso da sextina para malabarismos retóricos, em um texto que mal parece estar tão baseado em uma série de repeticões extremamente marcada. Passeamos pelo texto sem perceber tão claramente que as mesmas palavras estão marcando suas quebras-de-linha. Aqui está o que chamo de "graça", na página, na superfície do texto de Dante. No entanto, a linguagem de Dante já começa a demonstrar um grau mais elevado de abstração, se comparada a uma sextina como "Lo ferm voler qu'el cor m'intra", de Arnaut Daniel. Isso se dá por haver, já aqui, apenas algumas décadas após a morte de seu inventor, uma transformação bastante importante entre o trabalho de Arnaut Daniel e o de Dante Alighieri, que os diferenciam em contexto e função, ainda que Dante tenha sido talvez o melhor praticamente da forma após seu inventor. Voltarei a esta distinção a seguir, permitam-me a elaboração de meu argumento.

O que poderíamos dizer, portanto, de um poeta como Luís de Camões, escrevendo quando mesmo os ossos de Arnaut Daniel
já eram pó e em uma Europa que já se transformara e perdera muitas das características culturais do tempo dos trovadores?
No caso de Camões, resta-lhe apenas a "forma" da sextina, naquele conceito bastante simplista de forma: contagem de sílabas, versos, acentos, que leva a forma de um poema original a ser tomado como fórmula. A Camões não lhe basta apenas imitar a forma de Arnaut Daniel, seria necessário imitar seu contexto, assim como a função da sextina para o trovador já desaparecera por completo quando Camões assume sua "prática". Ele assume realmente sua prática? Veremos ao fim deste artigo.

O que não fora talvez difícil para Dante, por compartilhar de muitas das características do contexto cultural, social, religioso
e filosófico de Arnaut Daniel (ainda que grandes transformações já se faziam sentir), para Camões mostra-se como tarefa
de um grau bem mais alto de artificialidade. Entre outros fatores, o contexto occitano da cultura do amor cortês já havia desaparecido. O "Amor" que fora tema para Arnaut Daniel e Dante Alighieri já não é o mesmo "Amor" de Luís de Camões. Vejamos a bonita "A culpa de meu mal só têm meus olhos", minha favorita entre as sextinas de Camões:




"A culpa de meu mal só têm meus olhos
"
Luís de Camões

A culpa de meu mal só têm meus olhos
pois que deram a Amor entrada na alma,
para que perdesse eu a liberdade.
Mas quem pode fugir a üa brandura
que, depois de vos pôr em tantos males,
dá por bens o perder por ela a vida?

Assaz de pouco faz quem perde a vida
por condição tão dura e brandos olhos,
pois se tal qualidade são meus males
que o mais pequeno deles toca na alma.
Não se engane com mostras de brandura
quem quiser conservar a liberdade.

Roubadora é de toda liberdade
- e oxalá perdoasse à triste vida! -
esta que o falso amor chama brandura.
Ai, meus antes imigos que meus olhos!
Que mal vos tinha feito esta vossa alma,
para vós lhe fazerdes tantos males?

Creçam de dia em dia embora os males;
perca-se embora a antiga liberdade;
transforme-se em amor esta triste alma;
padeça embora esta inocente vida;
que bem me pagam tudo estes meus olhos
quando de outros, se os vêem, vêem a brandura.

Mas como neles pode haver brandura,
se causadores são de tantos males?
Engano foi de Amor, por que meus olhos
dessem por bem perdida a liberdade.
Já não tenho que dar senão a vida,
se a vida já não deu quem já deu a alma.

Que pode já esperar quem a sua alma
cativa eterna fez de uma brandura
que, quando vos dá morte, diz que é vida?
Forçado me é gritar nestes meus males,
olhos meus, pois por vós a liberdade
perdi; de vós me queixarei, meus olhos.

Chorai, meus olhos, sempre danos da alma,
pois dais a liberdade a tal brandura
que, para dar mais males, dá mais vida.


A cultura do amor cortês, que animou a poesia dos trovadores, mal se faz sentir na sextina de Camões. Aqui, o amor idealizado na figura feminina, inatingível e pura, transforma-se em castigo e pena, torturado em contradições.
As transformações culturais entre o tempo de Arnaut Daniel e Luís de Camões fazem-se claras a partir do próprio texto. Muito
se transforma: entre a linguagem extremamente corporal, concreta e tesa de Arnaut Daniel e a linguagem muito mais discursiva, retórica de Luís de Camões, há uma diferença muito grande em grau de abstração, que já começa a se fazer sentir mesmo em Dante. Seria possível dizer que isso é simplesmente o resultado da diferença de talento entre o grande Arnaut Daniel e um poeta menor, se comparado a ele, como Luís de Camões? Será a difícil tarefa de comparar um inventor e um mestre, se seguirmos a classificação de Pound?

Ora, pouco me interessa usar o texto de Luís de Camões para avaliar sua cultura apenas. Estamos interessados no trabalho poético, é sempre bom lembrar aos que estão prontos e prestes a acusar este debate de mera sociologia uspiana, petista ou de outras instituições ideológicas.

A linguagem de Camões em "A culpa de meu mal só têm meus olhos" está baseada em uma grau de abstração muito mais alto que o de Dante Alighieri, em "Al poco giorno e al gran cerchio d'ombra", ou Arnaut Daniel em "Lo ferm voler qu'el cor m'intra". Se tomarmos o trabalho formal a partir desta noção equivocada, em minha humilde opinião, de "forma fixa", como a mera aparência visual e estrutura matemática de um texto, teríamos que julgar o trabalho de Camões apenas por sua capacidade técnica em adaptar seu texto a tal constrição numérica. Nesta mentalidade, um estudo sobre seu contexto cultural serviria apenas para sabermos se sua época estava interessada em tais parâmetros de qualidade, o que nos informaria apenas sobre a "fama e reputação" de Camões em seu tempo, mas nos ajudaria pouco a estabelecer parâmetros para o nosso momento. O que venho argumentando, porém, é que o estudo formal só compreende por completo uma "forma", se levar em consideração sua "função" e seu "contexto", para que possamos aprender com ela.

Eu não estou tentando basear minha argumentação em alguma teleologia sociológica, ligando forma artística a contexto cultural. Não se trata de defender qualquer espécie de neo-determinismo. Não estou insinuando que a sextina só fazia sentido no contexto da cultura do amor cortês. No entanto, também acredito que não possamos simplesmente tomar a sextina como "forma fixa", sem compreender sua forma, sua função e o contexto em que foi inventada. Pois, em Camões, já vemos a sextina transformar-se em veículo para a retórica renascentista, no uso que Camões faz de sua rede de repetições.

O que explica esta gradual abstração entre a linguagem de Arnaut Daniel e os praticantes subsequentes da sextina? Talvez naquela sutil diferença que já insinuei, entre a prática da sextina em Arnaut e a prática da sextina em Dante? Ainda não chegou o momento para essa discussão. Vejamos um exemplo de sextina no século XX, praticada por aquele que já foi mencionado neste artigo, a "Sestina: Altaforte", de Ezra Pound:

"Sestina: Altaforte"
Ezra Pound

LOQUITUR: En Bertrans de Born. 
Dante Alighieri put this man in hell for that he was a stirrer up of strife. 
Eccovi! 
Judge ye! 
Have I dug him up again? 
The scene is at his castle, Altaforte. "Papiols" is his jongleur. "The Leopard," the device of Richard Coeur de Lion.

I

Damn it all! all this our South stinks peace.
You whoreson dog, Papiols, come! Let's to music!
I have no life save when the swords clash.
But ah! when I see the standards gold, vair, purple, opposing
And the broad fields beneath them turn crimson,
Then howls my heart nigh mad with rejoicing.

II

In hot summer have I great rejoicing
When the tempests kill the earth's foul peace,
And the lightnings from black heav'n flash crimson,
And the fierce thunders roar me their music
And the winds shriek through the clouds mad, opposing,
And through all the riven skies God's swords clash.

III

Hell grant soon we hear again the swords clash!
And the shrill neighs of destriers in battle rejoicing,
Spiked breast to spiked breast opposing!
Better one hour's stour than a year's peace
With fat boards, bawds, wine and frail music!
Bah! there's no wine like the blood's crimson!

IV

And I love to see the sun rise blood-crimson.
And I watch his spears through the dark clash
And it fills all my heart with rejoicing
And pries wide my mouth with fast music
When I see him so scorn and defy peace,
His lone might 'gainst all darkness opposing.

V

The man who fears war and squats opposing
My words for stour, hath no blood of crimson
But is fit only to rot in womanish peace
Far from where worth's won and the swords clash
For the death of such sluts I go rejoicing;
Yea, I fill all the air with my music.

VI

Papiols, Papiols, to the music!
There's no sound like to swords swords opposing,
No cry like the battle's rejoicing
When our elbows and swords drip the crimson
And our charges 'gainst "The Leopard's" rush clash.
May God damn for ever all who cry "Peace!"

VII
And let the music of the swords make them crimson!
Hell grant soon we hear again the swords clash!
Hell blot black for always the thought "Peace!"



Pound, sempre muito esperto, sabia estar há séculos demais de distância (permitam-me misturar tempo e espaço) da invenção e prática de Arnaut Daniel. Sua solução é simples, sem deixar de ser est-E-ticamente engenhosa: ao assumir a forma histórica e solução est-É-tica de um trovador para o seu texto, no período anterior à escrita dos Cantos, quando Pound ainda assumia suas máscaras, ele faz de sua sextina uma espécie de "monólogo dramático" de um trovador, neste caso o Bertran de Born (c. 1140 – 1215) que parecia mais afeito à própria personalidade belicosa de Ezra Pound. Isso permite a ele a adoção da forma e da linguagem de um imaginário trovador inglês, escrevendo sua sextina cerca de 700 anos após a morte de seu inventor. Pound demonstrou, em vários momentos, uma consciência bastante clara das condições históricas permeando o trabalho de poetas como Arnaut Daniel ou Dante Alighieri, assim como Geoffrey Chaucer e Robert Browning, ou os seus próprios contemporâneos. Poucos autores tiveram tamanha sensibilidade para o discernimento crítico dos valores da poesia pré-renascentista, sendo capaz de driblar vários dos preconceitos que críticos anteriores e posteriores a ele seguiram adotando. Pound tinha consciência do aspecto estrutural do trabalho poético medieval, escrevendo com paixão sobre Arnaut, Chaucer e Dante.

Estes três autores, Dante Alighieri, Luís de Camões e Ezra Pound usam, no entanto, a forma da sextina para a possibilidade
de elaboração, por vários ângulos de formulação e hesitações, de um argumento (Camões é o exemplo mais claro),
assim como para exercitar certas possibilidades narrativas no poema, como vemos em Pound. No entanto, todos eles imitam
a "forma" de Arnaut Daniel em uma mentalidade de "forma fixa", que não se mostra capaz de reproduzir a sextina tal qual
foi concebida e praticada pelo poeta occitano. Setecentos anos após a composição de um texto como o que estamos prestes a ler, por mais competente que seja, a sextina de Pound chega ao máximo a parecer uma paródia do trabalho poético occitano.


A narratividade e elaboração discursiva podem ser encontradas nas sextinas primevas de Arnaut Daniel, mas aqui chega finalmente o momento de considerarmos aquela que é a semente desta discussão, para podermos debater sobre sua forma, função e contexto, tentando compreender o que se transforma a partir de sua composição, chegando aos dias de hoje:

"Lo ferm voler qu'el cor m'intra"
Arnaut Daniel

Lo ferm voler qu'el cor m'intra
no'm pot ges becs escoissendre ni ongla
de lauzengier qui pert per mal dir s'arma;
e pus no l'aus batr'ab ram ni verja,
sivals a frau, lai on non aurai oncle,
jauzirai joi, en vergier o dins cambra.

Quan mi sove de la cambra
on a mon dan sai que nulhs om non intra
-ans me son tug plus que fraire ni oncle-
non ai membre no'm fremisca, neis l'ongla,
aissi cum fai l'enfas devant la verja:
tal paor ai no'l sia prop de l'arma.

Del cor li fos, non de l'arma,
e cossentis m'a celat dins sa cambra,
que plus mi nafra'l cor que colp de verja
qu'ar lo sieus sers lai ont ilh es non intra:
de lieis serai aisi cum carn e ongla
e non creirai castic d'amic ni d'oncle.

Anc la seror de mon oncle
non amei plus ni tan, per aquest'arma,
qu'aitan vezis cum es lo detz de l'ongla,
s'a lieis plagues, volgr'esser de sa cambra:
de me pot far l'amors qu'ins el cor m'intra
miels a son vol c'om fortz de frevol verja.

Pus floric la seca verja
ni de n'Adam foron nebot e oncle
tan fin'amors cum selha qu'el cor m'intra
non cug fos anc en cors no neis en arma:
on qu'eu estei, fors en plan o dins cambra,
mos cors no's part de lieis tan cum ten l'ongla.

Aissi s'empren e s'enongla
mos cors en lieis cum l'escors'en la verja,
qu'ilh m'es de joi tors e palais e cambra;
e non am tan paren, fraire ni oncle,
qu'en Paradis n'aura doble joi m'arma,
si ja nulhs hom per ben amar lai intra.

Arnaut tramet son chantar d'ongl'e d'oncle
a Grant Desiei, qui de sa verj'a l'arma,
son cledisat qu'apres dins cambra intra.



Por que mistério (e será mesmo mistério?) a sextina de Arnaut Daniel nos chega hoje como a mais vívida e atual dentre as quatro aqui expostas? O maior talento de Arnaut Daniel, superior a Dante Alighieri, Luís de Camões e Ezra Pound? Seu privilégio por ter sido o "inventor" da "forma", que não viria a encontrar mestres que o emulassem, para retornar à classificação de Pound? Talvez esta superioridade esteja, como agradaria aos pós-concretos, na maior "substantividade" da linguagem de Arnaut, contra a qual as linguagens de Dante, Camões e Pound empalidecem, especialmente a de Camões? É bem verdade que
Arnaut não se satisfaz com a mera repetição de seis palavras. A tessitura textual de Arnaut é a mais TESA (veja bem, querido leitor, que não usei os termos "concreta" ou "densa", seja gentil e não veja isso como mero acidente) dentre as quatro sextinas, criando uma textura musical potente no eco sonoro das seis palavras: "intra/cambra", "oncle/ongle", "verja/arma", como por todo o texto. O leitor contemporâneo mais atento perceberá uma alta carga de erotismo nestes pares de rimas, ainda que seja difícil precisar a intencao de Arnaut Daniel. Certa vez, em Barcelona, terra de trovadores occitanos, na companhia do poeta sonoro Eduard Escoffet, passamos um bom tempo nos deleitando em ouvir o texto de Arnaut Daniel, com sua ousadia em rimar a palavra "unha" com a incorrespondente palavra "tio", ou usar "entra" com "câmara". Mesmo a linguagem de Dante soa um tanto castiça, diante do texto de Arnaut. Permito-me o possível anacronismo perceptivo. Aqui um leitor poderia dizer:

"Mas, Sr. Domeneck, você escreveu `ouvir o texto de Arnaut Daniel´"?

Podemos passar finalmente, neste artigo, à característica estrutural da forma, função e contexto da sextina que já se transforma entre a prática de Arnaut Daniel e até mesmo a de Dante Alighieri, tão próximo em tempo e espaço: lembrarmo-nos que a sextina é letra-de-música. Esta é minha blasfêmia pessoal favorita, dirigida aos ouvidos dos literatos.
A sextina, forma tão intrinsecamente ligada à Literatura, é um dos exemplos de como o debate no Brasil (mas não só) assume características obscurantistas, como em artigos recentes de poetas literários, tentando mais uma vez criar uma separação intransponível entre poesia e música, escrita e oralidade. Já se chegou a definir a diferença como estando na necessidade, do texto de uma canção, de ajustar-se à melodia, como se jamais houvesse existido o trabalho de Arnaut Daniel, especialmente na sextina, que mostra como a pergunta é geralmente mal-formulada. O que se pergunta, em verdade, é se um texto composto para a performance oral pode também funcionar como Literatura. A existência e recepção crítica da sextina poderia responder bem a estas perguntas.

Sabemos que na poesia oral e cantada, a repetição tem uma função estrutural e intrínseca à composição do texto, funcionando como reiteração de sentido à mente, baseada no ouvido e sem o suporte dos olhos na página. Sim, haverá quem argumente que o troubadour tinha uma educação literária, ou não seria capaz de produzir textos que passariam a "funcionar" nos séculos vindouros como "Literatura", ainda que não tenham surgido como "Literatura". No entanto, ignorar que o trabalho do troubadour, incluindo a rainha das "formas literárias", a sextina, era composto para a performance oral levou à distorção literária da sextina, que deixa, na verdade, de ser realmente uma sextina, tal qual a compunha Arnaut, já nas mãos de Dante, chegando à abstração altamente retórico-discursiva de Camões e à paródia acidental de Pound. A sextina se transforma, por uma compreensão parca de sua forma, que se torna "forma fixa" ou "fórmula", pela ignorância de sua estrutura formal, funcional e contextual. A repetição, que tinha uma função musical, intrínseca à poesia oral, transforma-se em veículo para retórica ao ser transportada meramente para a página. Vejo aqui um exemplo claro do que venho chamando de gradual descontextualização do trabalho poético. Não estou tentando vetar a escrita de sextinas. Gosto muito das sextinas de Camões e de Dante. A sextina de Dante aqui reproduzida me parece belíssima. No entanto, meditar sobre a transformação da sextina parece-me ideal para a compreensão de como a solução formal de um poeta para uma questão específica, em um contexto específico, ao ser tomada como fórmula para poetas futuros, acaba por levar a uma gradual abstração até a total desfiguração do trabalho poético em mero jogo literário e acadêmico. Não é uma questão de ruptura com a tradição, mas de um questionamento de como poderemos realmente aprender com os poetas do passado. Já vimos que o "modernizar/atualizar" não é invenção nossa. Calímaco levantou questões similares em seu momento histórico, o século IV a.C., assim como a leitura mais desavisada de Catulo e Virgílio deveria mostrar que os dois não estavam de acordo com a maneira mais adequada de relacionar-se com a tradição. O Doce Stil Nuovo de Dante e colegas, como est-É-tica, já estava nos occitanos, o que não impediu a lavagem e dissipação neoclássica desta saúde após o Renascimento. Já argumentei que DADA não é uma ruptura com uma fictícia tradição unívoca, mas a religação a parâmetros est-É-ticos negligenciados após a Idade Média. Como Pound argumentou, a existência anterior de Geoffrey Chaucer e sua saúde linguística não impediu as baboseiras latinistas de John Milton. Da mesma maneira, em minha opinião, como a escrita tesa de John Donne não impediu a linguagem frouxa de Alexander Pope. Hoje em dia, venho a pensar sobre a sincronia histórica menos como imutabilidade das soluções est-É-ticas de poetas do que a imutabilidade dos problemas e debates a que respondiam.

O que os poetas de hoje poderiam ainda aprender com as sextinas de Arnaut Daniel é justamente como a educação literária deveria capacitar o autor a compor um texto altamente concreto e denso em sua linguagem, assim como não perder de vista e ouvido sua performance permitiria ao autor manter seu texto teso, livre de um grau demasiado alto de abstração retórica.

Assim, a sextina, em sua estrutura completa: formal, funcional e contextual, acaba por engessar-se em mero jogo literário ao ser tomada como solução atemporal para qualquer momento, e creio que está aí também o motivo pelo qual a linguagem poética usada por Arnaut Daniel e a de Luís de Camões, por exemplo, acabam por estarem muito distantes em grau de abstração. É o que faz a mosca viva a zunir em nossos ouvidos a partir da poesia de Arnaut Daniel transformar-se gradualmente em mosca em âmbar em jogos literários para acadêmicos. Não sugiro vedarmos a prática da sextina nos dias de hoje. John Ashbery a praticou, assim como li, entre as mais recentes da língua, uma bela composição de Paulo Henriques Britto, sempre muito competente. Mas sonho com o surgimento de um poeta que possa praticar a sextina em sua estrutura total: formal, funcional e contextual, em uma linguagem tesa, dos dias de hoje, como a belíssima "Le form voler qu´el cor m´intra", como a sextina deveria ser experimentada, desta maneira:


///performance moderna para a sextina "Le form voler qu´el cor m´intra", de Arnaut Daniel, com direção artística de Thomas Binkley (1932-1995)///

Essa discussão sobre a sextina seria interessante também para o debate sobre a hierarquia pós-Renascimento entre escrita e oralidade. No entanto, moro na Alemanha, onde uma das lições que aprendi foi a de não exagerar no número de fronts.

3 comentários:

Érico Nogueira disse...

Caríssimo,

Mais uma vez, parabéns pelo texto. Suas posições estão cada vez mais claras, e sua erudição -- por que não chamar as coisas pelo nome? -- soa leve, agradável, temperada que é por sua inteligência.
O coceito de linguagem tesa me parece um achado, e vejo-o em ação na sua própria poesia. Não obstante, tenho, como de praxe, algumas objeções:
1) Contexto e função, na poesia do Renascimento, não só sugeriam como pressupunham uma poesia livresca, retórica, erudita, acadêmica, engenhosa, abstrata... De modo que o texto de Camões, p. ex., está plenamente em sintonia com seu "Zeitgeist". Dizer que a sextina "degenerou", ou languesceu, ou coisa que valha, é comprar uma idéia (equivocada) da primazia do que é pioneiro -- algo facilmente contradito qdo. comparamos um romance de cavalaria e uma obra de Tolstói...
2) Segundo sua "ideologia da percepção", Arnaut Daniel é (dói-me dizê-lo) maior que Camões, Chaucer maior que Milton; felizmente, neste caso, (ao menos para mim) o cânon pensa diferente -- e eu também.
3) Poesia engenhosa, livresca, aguda etc. é hoje posta questão, me parece, apenas porque é mais difícil, porque dá mais trabalho, porque é mais solicitante. E pouquíssimos têm os conhecimentos necessários para lê-la como convém. Sou voto vencido, também neste assunto. Mas não deixo de espernear.

Abração.

E.

Rodrigo Pinheiro disse...

Minutos bem empregados esses que passei lendo "Feira de sextinas às sextas-feiras". Aliás, tenho aprendido muito ao acompanhar o debate Domeneck-Nogueira.

Para ilustrar essa questão do "jogo literário", e colocar mais lenha na fogueira, recorro ao poeta que eu mais cito, W.H. Auden, que também escreveu sextinas.

Quando perguntado sobre "verso livre" (na entrevista da Paris Review), ele disse: "But I can't understand - strictly from a hedonistic point of view - how one can enjoy writing with no form at all. If one plays a game, one needs rules, otherwise there is no fun."

Saudações,

Rodrigo

Unknown disse...

Fascinantes el artículo y el debate, así como la posibilidad de un Domeneck formalista en libros futuros.

Abrazo desde Buenos Aires,

EZ.

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