quinta-feira, 12 de março de 2015

O que passa pela cabeça de Maria Bonita



Dia 8 de março foi aniversário de Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita, degolada ainda viva pela polícia em 1938, na emboscada ao grupo de Virgulino na Grota de Angicos. Esse texto é da minha pequena série de monólogos de mulheres (históricas ou míticas) do meu novo livro, que pretendo lançar no segundo semestre.

O que passa pela cabeça de Maria Bonita

Segui o que ditou meu peito
sob os seios
ao lado de meu homem.
Quando rola, cabras, a cabeça
deixa de ter sexo. Pescoço
acima, é o mesmo
o número de buracos, a não
ser que bala e pólvora
nos tornem
uma vez mais diferentes.
Se carrego menos
sangue que meu homem,
ele jorra da mesma cor,
meu corpo
mais parecia a cachoeira
de onde nasci.
Torto não se endireita,
nessa terra, sem sangue.
Quando Deus não quer,
erra-se o alvo. Até você
aparecer na mira de Deus.
Gostava mesmo era de dançar
um maxixe sobre suas covas,
mas deixaram meu corpo
regado a creolina
entre os urubus.
Minha cabeça ainda
gritava agora há pouco
na Grota de Angicos,
mas logo estava calma
na escadaria
da prefeitura de Piranhas.
Virá o dia, claro
como a manhã do sertão,
em que as cabeças certas
darão adeus a seus pescoços
e não haverá degraus
suficientes nesta República
para exibi-los.
Por ora comemoram
todas as anônimas
no meu aniversário.
Meu nome é Maria Gomes de Oliveira
e perdi a cabeça duas vezes na vida,
uma delas na garupa de Virgulino.

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quarta-feira, 4 de março de 2015

Alguns dos "epitáfios" de Antidio Cabal





Epitáfio de Efigenio Gomiá, vulgo O Semicompleto

Aqui jaz um idiota maravilhoso,
acreditou que haver nascido fosse um êxito.
Não ponham flores em seu túmulo.

§

Epitáfio de A.G., a Mulher da Penumbra

Eu, Amélia Garcia, aos dezessete anos
casei-me com um homem com sombra,
fugindo de pais que tinham sombra,

e de sombra em sombra cheguei à melhor de todas.

§

Epitáfio de Luis Calvo, vulgo O Suficiente

Aqui se encontra sob a terra um sábio
cuja esterilidade produziu muito.

§

Epitáfio de Jimeno Jiménez, vulgo O Desequipado

Aqui jaz
aquele que viveu carente de si mesmo,
esqueceu-se de comprar um cão.

§

Epitáfio de Carlos Sanchez, vulgo O Limitado

Do que aqui jaz,
só a morte encontrou a utilidade.

§

Epitáfio para Jacinto Modales, vulgo O Botas

Vivi lutando contra a gordura e a ontologia,
agora tudo está no caixão.

§

Epitáfio do vigário Trústegui, vulgo O Sabichão

Antes eu queria ser eu,
agora ser me dá na mesma.

§

Epitáfio de Ramón Ramonense, vulgo O Igual

Sinto falta de não ter nascido.

§

Epitáfio de Clarisa Méndez, vulgo A Raíz

Sempre há saída para tudo, menos para o que somos.

§

Epitáfio de Gabino Suárez, vulgo O Conselho

Nascer, existir, morrer,
já sei como se divide
o nada por três.

§

Epitáfio de Creencio Álvarez, vulgo O Dentro

O caixão me dói menos que o berço.

§

Epitáfio de Seremo Cruz, vulgo O Norte

A nós deveriam fazer-nos natimortos.



Antidio Cabal (1925-2012)
in Epitafios, Barcelona: Kriller71 Ediciones, 2014.
As traduções aqui são minhas.

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segunda-feira, 2 de março de 2015

Um poema de Sebastião Alba


Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mundo de desencontros marcados «slogans» que violam
os espaços aéreos de países castos
e se dissipam além dos limites naturais
um laivo incendiando as espirais do rasto
Mais do que do outro o meu reino é deste mundo
mas de uma província de incerta geologia
com uma história sem crónicas ou reis absolutos
a única a que a constituição se refere numa clave de sol
onde os cidadãos de todos os burgos
pulam à rua das mãos estendidas de deus
dessa nenhuma anexação polui a virgindade civil.

Sebastião Alba



Sebastião Alba nasceu em Braga, Portugal, a 11 de março de 1940. Seu nome de batismo era Dinis Albano Carneiro Gonçalves. Em 1950, a família do poeta emigrou para Moçambique, onde ele passaria a viver até 1984, tornando-se cidadão moçambicano. No seu novo país, trabalhou como jornalista. Estreou em livro com Poesias (1965), ao qual se seguiram O Ritmo do Presságio (a primeira edição, moçambicana, em 1974 e a portuguesa em 1981) e ainda A Noite Dividida (1982).

A editora portuguesa Assírio & Alvum reuniria em um único volume seus livros O Ritmo do PresságioA Noite Dividida e O Limite Diáfanoem 1996, reunidos uma vez mais no ano 2000, incluindo inéditos, com o título Uma Pedra Ao Lado Da Evidência. A essa altura, o poeta vivia nas ruas de sua cidade natal. No dia 14 de outubro de 2000, com 60 anos, morreu atropelado. Havia escrito recentemente um bilhete:


"Se um dia encontrarem morto o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá".

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