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domingo, 7 de novembro de 2021

CARTOGRAFIA DO FUNDO DO POÇO


1- 

País solitário, 
de um só 
habitante 
só,
fronteiriço
aos fundos 
dos poços 
de todos 
os outros.

2- 

Feito o último exemplar 
de uma espécie:
um rinoceronte 
velho e reumático,
um dodô dodói,
um neandertal 
com dor de dente.

3- 

Até planetas acabam presos 
num travamento gravitacional,
a rotação capturada,
um mesmo e único hemisfério 
encarando sua estrela,
e o outro, numa noite eterna.

4- 

Todas as marés 
aqui
são baixas.

5-

Conheço palmo a palmo
este chão 
de arranha-céus do avesso,
seco — onde os olhos
labutam, incessantes,
para doar-lhe um mar.

6-

Os mais antigos, escolados 
nos despenhadeiros,
haviam alertado para a necessidade 
do equipamento de montanhismo.

Arqueólogo dos próprios barrancos,
eu trouxe ao fundo do poço 
apenas o equipamento de escavações.

Das pás fazer asas.
Das tripas, cipó e escada.

7-

Recomendam todos
que eu vá ao encontro 
daqueles cavaleiros,
não da Távola Redonda
mas da Tabula Rasa.

Gosto dessa companhia,
a dos que nada mais têm
a perder.

8-

É costume erguer-se,
dizer o próprio nome,
e confessar 
limpezas e sujidades.

Levanto a carcaça 
desse trono da nulidade,
e digo:

“Este sou eu,
Sísifo-Dido,
o limpo-sujo,
o sujo-limpo.”

9- 

Esta é a minha tribo,
estes felizes 
que se desiludiram
mesmo de si.

10-

Este não é seu país de origem.
Este não é seu país de destino.
Também aqui aplica-se 
a lei da usucapião?

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quinta-feira, 22 de julho de 2021

INDÚSTRIA CULTURAL

 As distrações 
para as famílias do interior
exigem recursos humanos
próprios.

Aqui 
não vêm atuar
os grandes atores,
aqui 
não vêm ler
os grandes poetas,
aqui 
não vêm cantar 
os grandes cantores,
aqui 
não se digna
a interpretações 
a intelligentsia.

Aqui, 
às igrejas evangélicas 
e às academias de ginástica 
pertence a implementação 
do Mens sana in corpore sano.

As visitas à sorveteria
que antes fora uma pizzaria
e antes, uma lanchonete, 
apenas mudam as paredes,
que não trazem 
nem fotografia nem pintura
de tradições centenárias.

O espaço público 
— nem Ágora nem Eclésia —
incita variações 
— agora aos sussurros —
dos ressentimentos velhos,
das irritações pequenas
que se acumulam
e latejam como pústulas.

As frustrações do pai,
as frustrações da mãe,
e assim, em escadinha,
as frustrações nascentes 
da prole toda, em perdas
crescentes.

À mesa 
reina nossa mesma 
falta de assunto da janta
ou o assunto repetido 
à exaustão. As dívidas 
com Deus e com César.

E sim, o silêncio 
sobre os únicos assuntos
que quiçá nos salvassem.
Quem-nos-dera, num instante 
de lucidez repentina,
aguássemos agora
os sorvetes, as pizzas, os lanches 
com lágrimas, esgoelando juntos
na sarjeta. Mas o que diriam
os vizinhos?

Nas capitais
lacrimeja a intelligentsia 
— o povo! o povo! — 
enquanto o mofo e o musgo
cobrem aos poucos 
a nossa não-boca, a nossa não-alma.

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domingo, 6 de junho de 2021

Friederike Mayröcker (Áustria, 1924-2021)


 

ELEGIA QUASE UMA ODE COMO RITO FUNERÁRIO PARA FRIEDERIKE MAYRÖCKER

havia de ser assim 
também aqui nessa terra
senhora friederike mayröcker
dos rouxinóis e dos lobos
e nessa língua adotiva 
que a morte chega 
com os cartões de visita
como antes na língua 
da terra da língua natal 
onde há quase vinte anos 
também perdi a chance
de conhecer a outra outra
contemporânea tua 
sob o nome dado
à pronúncia e ao prenúncio 
senhora hilda hilst 
das mulas e dos porcos

morrem as matriarcas
as matriarcas morrem
e eu filho de úteros
e eu filho de urros
me curvo em ação 
de graças a essas mães
com o saldo de brás cubas
que nos ensinam o beabá
e também a estas mães
que nos ensinam o zeuzú

e é assim na tua língua materna
senhora friederike mayröcker
que primeiro chega a notícia
da morte no dia da tua morte 
e é na minha língua materna
que começo assim começo
essa elegia quase uma ode
na tua terra onde há tempos 
foste nomeada canonizada
a grande dama da língua
essa forma de em vida 
dar-te menos bálsamo
do que te embalsamar

com tua flora ensandecida 
a brotar da tua cabeça 
com outras pirotecnias
que verdejam então flavescem 
tílias ligustros plátanos aceres
teu gosto por metáforas 
que crescem como crescem
naturais das plantas seus nomes
ciladas para teus tradutores 
tal qual aquele wolfsmilch 
num poema todo lupino 
que certa vez me desmamou
sendo tanto leite-de-loba
quanto cabeça-de-medusa

qual afinal tua área de broca 
sempre foi um mamífero 
de dentes afiadíssimos
a amamentar uns órfãos
novos rômulos e remos
um medusário teu crânio
e nós sabemos que materna 
e madrasta é toda língua

mas neste primeiro dia
da tua ausência-morte
meus olhos vão propositais
além do parapeito da janela
aquém do umbral das montanhas 
meu horizonte de sarça
onde arde o oxigênio
e sopram a trombeta do sol
as andorinhas-dos-beirais
como jatos de vento fresco 
em suas aéreas manobras
sua defesa anti-falconiforme

e tanto as andorinhas-dos-beirais 
nas garras dos falcões-peregrinos
quanto os falcões-peregrinos
nas garras dos mochos-orelhudos
são fenômenos da natureza
e os guindastes amarelos
que ora giram como girafas
no meio da cidade de Graz
e os aviões que a sobrevoam
são fenômenos da natureza
como teus poemas faunoflorais
e a fauna de faunos em todo poema
são fenômenos da natureza
como os brotos das begônias
e os estames das tulipas
são fenômenos da natureza
como as ninhadas da codorniz
e as proles do camundongo
são fenômenos da natureza
como os gritos da criança no quintal
e ao longe as buzinas dos carros
são fenômenos da natureza
como os bolores que ora crescem 
no rosto da rosa no rosto do teu rosto
são fenômenos da natureza
são naturezas do fenômeno

*

Ricardo Domeneck, Graz, Áustria, 4-6 de junho de 2021.

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quinta-feira, 29 de abril de 2021

Leitura em Curitiba em novembro de 2019 [com Dirceu Villa] em gravação da Catatau Filmes

 


Esta filmagem de Gregório Camilo e da Catatau Filmes foi feita durante uma leitura em Curitiba, Paraná, na Mímesis Conexões Artísticas em novembro de 2019, um mês antes de eclodir na China o vírus que tornaria impossíveis noites como essa. 

Na mesma noite leram também Dirceu Villa, que me convidou para o evento e tem sua leitura também registrada no filme, e Jussara Salazar. Meu agradecimento à Catatau Filmes, que mantém seu trabalho cinematográfico bem rente dos poetas.

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sábado, 24 de abril de 2021

EXALÇAÇÃO DE MAXIMIN, MÁXIMO-ALFA

Há uma semana, topei com Maximin pós mais-de-ano sem ver a geringonça. Não havia mudado o contador de vantagens. E como eu sou ridícula, mal o vi e já borbulhou outra ode na boca.

EXALÇAÇÃO DE MAXIMIN, MÁXIMO-ALFA

Bem sei, Maximin, que és campeão 
em tudo, sobre todos.

Quando chegas, o peito-balão 
qual galo-de-briga, os outros 
machos 
se contorcem no salão, prontos 
à escaramuça.

Boquiaberto, assisto à violência lactante 
dos cachorros jovens.

Hermafrodisíaca e viagrátis
é a vigia desses rituais 
de recorrente eleição à chefia da matilha
e eu sou a Xerazade 
desse rodízio 
dos reis de uma-só-noite.

Levo à orelha o telescópio, 
ergo aos olhos a corneta acústica. 
À vossa santidade, Maximin, faço  
de padê minhas oferendas.

Tu então fazes o exórdio 
do épico-de-ti-mesmo,
hino das vantagens que cantas, 
encomiástico 
de tuas próprias falcatruas. 

Se não existisses, eu
teria que te inventar como te invento.

Canta-te a ti mesmo, ó grão-tão
Maximin, eu te escuto. 
Que proezas relatas hoje à Eclesia? 

Sim, é óbvio que a Chomolungma 
e o Aconcágua tu já escalaste. 
Cruzaste o Mar Cáspio e Egeu a nado, 
também o Titicaca e o Tanganica. 
Foste antes de Peary ao Polo Norte,
ao Polo Sul antes de Amundsen.

Grandes são teus feitos, Maximin.
Agora escala-me e cruza-me,
finca a haste da tua bandeira 
nos meus poros Norte e Sul.

Faz de mim sobre este colchão de molas 
a Rosa-dos-Ventos.

Sou o último Oceano e Deserto 
que sobrepões e sobrepujas,
ó Argonauta-dos-vaus-de-córrego,
ó Cantagalo, ó mentiroso-mor,
teu é meu louvor compulsório,
ainda que não me engambeles.

Ninguém te cultua como a ti cultuo.
Ninguém me cutuca como a mim cutucas.

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quinta-feira, 22 de abril de 2021

[fragmento]

 creem-se órfãs
a calicarpa e a grandiúva
ou chamam mãe
ao pássaro que no bucho
carregou a grã
-semente de suas frutas?

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domingo, 21 de março de 2021

BICHANO





BICHANO

a Frederico Klumb


O jaguar não torna supérflua a suçuarana
que não torna supérflua a jaguatirica
que não torna supérfluo o jaguarundi
que não torna supérfluo o maracajá.

Outra opinião a respeito 
têm com certeza têm
as antas e capivaras,
os veados e cutias,
todas as queixadas
do mundo-mundo.

Nem qualquer um deles torna 
dispensável ou prescindível
esse bichano doméstico
aninhado no seu colo,

como se dentre suas pernas
fosse dar um bote algo vivo,
algo feroz, algo volitivo.

Nos desenhos animados
da infância aprendemos
que o cão é a razão de 
ser do gato que é 
a razão de ser 
do rato.

Alimentar é o nome dessa cadeia. 
Social é o nome dessa pirâmide.

Aquele amor de 2019 não tornou supérfluo 
aquele amor de 2012 não tornou supérfluo 
aquele amor de 2007 não tornou supérfluo 
aquele amor do ano 2000.

Não me diga não que a suçuarana 
é o puma, o cougar, a onça-parda.
Deixemos esquecidos os amores 
de outro milênio, as suçuaranas,
sua predação, suas queixadas.

Caminhe até mim e arreganhe
suas garras e mandíbulas,
sua boca e sua língua,
sua úvula e garganta,
esôfago e buchada.

Um peixe enorme
já serviu de hotel
a um profeta, que 
um gato grande
seja a quitinete
de um poeta.

*

Berlim, 15/16 de março de 2021.

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segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

MARIA LÚCIA ALVIM VIAJA PARA A TERRA SEM MALES

Maria Lúcia Alvim, Hotel São Luiz, Juiz de Fora, Minas Gerais, 2013.


MARIA LÚCIA ALVIM VIAJA PARA A TERRA SEM MALES

Maria da terra de várias Marias,
aparecidas e desaparecidas,
Maria da casa de outra Maria,
que apareceu mais cedo
e mais cedo desapareceu

às vezes nem quero saber
se o grande poeta estava certo
sobre os gregos antigos
e sua recusa de necrológios,
só o inquérito por sua paixão,
a paixão do recém-morto,
a paixão do há-pouco-vivo,
tinha?

nem
nosso costume da guarnição
do cadáver para eventual ressurreição,
os velórios herdados dos ibéricos,
a península do palimpsesto abraâmico

nem
se meus mortos
tornam-se guardiães
ao redor do terreiro e sua terra,
se metamorformoseiam-se
em espectros alados,
se migram para um reino
inimigo do reino dos vivos

o que importa
a você agora um
Ave, Maria
se por anos o que ocupou
sua visão e garganta
foram os garnizés
e o Pavão
agora também morto

difícil dizer
o que dizem de nós
nossos ritos
à hora da morte

arqueólogos
estudam por décadas
para depreender de restos
a vida de espécies extintas,
de crânios e úmeros,
de fêmures e tíbias,
de minúsculos carpos e metacarpos,
ou diálogos amorosos
inferidos
de um fragílimo osso hioide,
e leem neles sinais como a búzios

aqui uma ferramenta
depositada no túmulo,
ali a cor do ocre
tingindo rubra o branco do cálcio,
e a insinuação do afeto pelo morto,
dos vivos
agora também extintos

mas me comociona ao extremo
quando ouço num documentário
um desses velhos arqueólogos
que ainda se excitam com o pó
de onde viemos e ao qual voltamos,
dizer:

olhem, notem
esse osso
com uma fratura calcificada,
esse esqueleto em frangalhos,
notem essa peça quebrada
mas remendada,
percebam esse doente
tratado há milênios,
alguém dele fez-se
de enfermeiro,
por ele também se caçou
mastodontes,
também dele foi o usufruto
da coleta cuidadosa
de frutas comestíveis

é assim, Maria,
milênios mais tarde
depreendemos
de ossos
fraturados e remendados
a existência de algum amor
entre gente morta
há milênios

talvez um dia
meu próprio esqueleto
seja analisado
e outra cultura
ou outra espécie
veja minha ulna
fraturada e remendada
durante minha adolescência
e alguém diga:

vejam,
notem,
não eram tão egoístas
aqueles antigos
que viveram durante as pragas
e a sexta grande extinção,
este aqui foi alimentado
enquanto remendava-se
a sua ulna fraturada
para que sobrevivesse

sempre foram estranhos
nossos ritos
com os doentes de amor
e os mortos das mil moléstias:

aquela mulher congelada no Altai
e enterrada com seis cavalos,
aquele homem na Escócia
enterrado dentro de um barco
pesadíssimo
que teve que ser arrastado
desde as águas

ou você agora
cremada
como se incineram as matas
da Zona da Mata
onde os bacorinhos
ainda são feridos
de morte
para alimentar a República
que deu as costas a você
enquanto você respondia
com canções
de fazer ninar
os morcegos
e os pombos
e os pavões

mas sabemos bem,
Maria das Marias
aparecidas,
desaparecidas,
que nossas palavras
mesmo se cantadas
a plenos pulmões,
não se fossilizam,
e, no entanto,
cá estamos,
cantando,
do centro
do coração
das taquaras
recheadas
de som.

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sábado, 16 de janeiro de 2021

Mais dois poemas para as 'Odes a Maximin'

Mais dois poemas para as 'Odes a Maximin'. Se você tem o livro, sinta-se à vontade para manuscrever estes no volume. Se não o tem, ora, está na hora de comprá-lo para aquela amiga assanhada nesse Natal.



EXORTAÇÃO A MAXIMIN PARA QUE NÃO SEJA SÁDICO FEITO O CUPIDO

Maximin, larga desse látego.
Dá-nos um só bom exemplo
para que o cupido fanático
derrube por algumas horas
o arco e flecha de brinquedo.
Dê paz aos tolos do planeta.
Olha o estado dessa carcaça,
alvo para treino de arqueiros.
Tudo lateja. Põe o teu dedo
numa dessas minhas feridas
que fulgem como lantejoulas.
Faz como Tomé fez a Cristo.
Aproxima tua pele de azulejo,
move os teus dedos grossos
como troncos de peroba-rosa
e aperta aqui. Não é chacra,
é minha doença de mil chagas.
Não aquela do bicho-barbeiro.
A que causas, bicho barbado.

*

TEXTO NO QUAL O POETA INTERPELA MAXIMIN COMO ABŪ NUWĀS NA CAÇA À RAPOSA

Vez tanta, Maximin, tu me escapas.
De novo, de novo, e de novo.

Te rodeio pelas ruas como vira-lata
à espera de carne sem ossos.

Te sobrevoo como pássaro na mata
à espera da páscoa em ovos.

Mas na noite em que já me inflamava,
gozo em Gomorra qual o fogo. 

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quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

SEIS CANÇÕES PARA A CONCHA

 1.

Deitamos em forma de concha
e as curvas de nossas colunas,
com essa minha pança ao meio,
soletram SOS a Deus e a drones.
Na pele não há qualquer corte
mas, como a alfaiate ou médico,
algo em nós implora por sutura.

2.

Não nos importa o tal Aristófanes,
suas lorotas num velho banquete.
Nós quase já somos aquela bolota
de quatro braços, quatro pernas,
como no leito do mar os polvos,
enfurnados aqui, em sua quitinete.

3.

Um pedaço de nós entra no outro, 
como o anzol na boca do peixe,
como a flecha na carne da onça.
Quisera fôssemos aptos à osmose.
Ainda lateja em nós o descorçôo 
de não amanhecermos siameses.

4.

Meu dedo se acopla ao côncavo 
do seu umbigo. É um molusco
que busca esconderijo num coco.
Fisgada que enrijece um músculo.
Satélites de satélites, em órbita 
de si, a rotação de nossas bundas.

5.

Inspeciono em seu braço direito,
qual cratera de meteoro na lua 
cheia, sua cicatriz de uma vacina.
É uma Lagoa Rodrigo de Freitas
cheia do seu suor e minha saliva.

6.

Como a Maomé veio a montanha,
até mim há-de vir o seu bíceps.
Minha testa, sobrancelhas e nariz 
celebram bodas, glória!, aleluia!, 
com sua cerviz, cangote e nuca.

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segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

AS TABUADAS E OS COLETIVOS



Na escola o que eu mais detestava
era a repetição diária das tabuadas.
Ali começava a confeccionar 
meu próprio espelho,
a dizer: este sou eu, o das palavras, 
não o dos números.

Rejeitava aquela reiteração 
das certezas pétreas, rígidas 
como a gravidade,
a mais detestada de todas as leis
por qualquer criança.

Nos sonhos raros 
em que podíamos voar
quebrávamos também essa lei,
pequenos mutantes caboclos,
mulas aladas sem cabeça.
Pégaso-Pangaré.

Hoje o coração está repleto
de adições e subtrações, 
multiplicações e divisões.

Está bem. 
1 + 1 são 2
e 1 x 1 é 1.
As compras, as dívidas, as eleições 
provaram seus números e porcentagens 
de forma bastante empírica.

Mas a idade 
também demonstrou outras coisas:
que UM mais UM são 
tantas vezes só isso:
esse ao lado deste, inconciliáveis.
Tão adicionáveis quanto admissíveis,
sem a metamorfose de cada UM
num único pato na lagoa.

E dois patos na lagoa são já um bando?
À matemática, língua certeira,
preferia as ambiguidades da língua incerta,
topônimos como Bonito e Gostoso.
Seria Bonito realmente bonito?
E Gostoso, deveras gostoso?

Os coletivos eram um prazer estranho,
repetia-os e não atentava 
às advertências da professora
contra meus pleonasmos,
afinal a alcateia só podia ser de lobos,
o arquipélago só podia ser de ilhas
e o cardume, só de peixes.

Mas havia o prazer da confusão
e um porco em sua vara
tanto podia ser 
um ser roliço e feliz entre os seus
quanto um cadáver assando no fogo.
Os porcos nas varas!

Havia essa liberdade da palavra
contra os números
e repetia só para mim mesmo,
não como quem comete uma gafe
mas como quem sussurra um feitiço:

matilha de meninos,
arquipélago de namorados,
cardume de amigos,

e éramos então por um segundo
corpos esfomeados 
mas livres no mato (lobos),
separados e cercados
mas pertencentes (ilhas),
submersos mas vivos
pontos móveis de prata (peixes).

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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

PEQUENO EXERCÍCIO DE ORNITOLOGIA HAGIOGRÁFICA



de santos e sábios
os céus
têm os seus sabiás
e assuns.

só as aves sãs
são os anjos
que nos cabem,
nos sabem.

na igreja homens
egressos do barro
de novo são barro
cozido e pintado.

mas de Pedro 
vejo o velho 
vivo de cabeça
para baixo,

de Sebastião
vejo o jovem 
que era são 
antes das setas

e Francisco todo,
são e sanado,
canta ao lobo 
-guará e suindara.

São Barro,
rogai por nós,
somos só 
roupa e borra.

o que difere
seu João 
de 
São João?

o que difere
‘ave, Maria’ 
de 
‘vai, Maria’?

o cardeal 
a quem peço 
a bença 
é o pássaro,

o sol no mar
é meu Lázaro
e é você o sal 
da minha terra.

seja sã, Maria,
seja são, João,
nessa febre 
terçã do chão 

enquanto 
no céu, suave 
e só,
vai a ave.

*

Imagem: quatro trabalhos do holandês Albert Eckhout (1610–1665) para a ornitologia brasileira.

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domingo, 29 de novembro de 2020

Quatro poemas novos para o livro 'Odes a Maximin' (2018)


Meu livro 'Odes a Maximin' foi lançado pela Garupa Edições em 2018, com desenhos do artista alemão David Schiesser. Nos últimos 2 anos, acabei por escrever quatro outros poemas que numa futura edição passarão a fazer parte do livro. Eles seguem abaixo.


A CADEIA ALIMENTAR DE MAXIMIN

Pena, rapaz, é não pertencermos
à tradição semítica para que louve
tuas pernas como as da gazela.
Se não há tais bichos no território,
não é rijo o cervo-do-pantanal?
Cairá mal comparar esse teu torso
maciço à musculatura das antas?
Se não como leão, pois qual onça
rondas meu habitat. Eu, capivara
a latir de amor seu destino de presa
nas águas onde, sardento, pairas.

*

MAXIMIN ENTRE OS MINOANOS

Nu, deitado nessa cama com lençol claro,
não sei, Maximin, se és o touro alvo
de Possêidon para Minos, ou o Minotauro.
Eu me mantenho jocastamente coesa:
sou o útero que pariu tua cabeça bovídea
e a que usufruiu o sêmen quadrúpede,
graças a Dédalo arriada numa vaca lígnea.
Zoofílica saciei em coito esse deleite.
Mas uma novidade sei trazermos ao mito:
és livre. Sou eu a detenta do labirinto.

*

CARTA A MAXIMIN ESCRITA NA CAMA COMO SE ESTA FOSSE UM MONASTÉRIO 

Qual monge budista
com as mangas úmidas 
do samue no templo 
choraria por seu chigo

Maximin, eu te digo:

nessa tua longa ausência,
muitas vezes a raposa
já cruzou sozinha 
a lua no asfalto chuvoso.

*

MAXIMIN, ÚNICO

Com frequência,
habitantes minúsculos
do nosso planeta,
vírus e bactérias,
põem de joelhos
a nossa civilização.

Em meio ao pânico 
e ao isolamento
das mil pandemias,
Maximin, ajoelho-me
eu mesmo, e adoro
tua multicelularidade.

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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

ESPADACHINS


ESPADACHINS

                    a William Zeytounlian

Nada se reordenou no mundo
esta manhã em que eu descubro,
nesse desembainhar palavras de coisas,
que sempre chamei de peixe-espada 
o que outros chamam de espadarte.

Eles seguem inscientes do anzol,
essa outra arma nossa,
um deles assemelhando a espada 
com o corpo todo, o outro 
com o que lembra uma espada sobre a boca.

Contra dicionários e nossa indústria bélica
seguem por água doce e água salgada
o peixe-espada e o espadarte,
indiferentes ao que não seja tesão ou fome.

E na minha tesão e minha fome
vou também sendo catalogado no mundo,
em verossimilhanças e incongruências,
com a língua que também se usa
como anzol e como espada.

E se repito agora seus nomes
como quem decora as partes do corpo, 
é só para ordenar um pouco meu caos,
sem espada na boca além da língua,
como se assim os protegesse,
qual pudesse doar-lhes uma bainha:

este é o peixe-espada,
aquele é o espadarte,
e aqui está minha língua.
Nossa bainha é o mundo. 

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sexta-feira, 30 de outubro de 2020

CERTIDÃO DE OBSOLESCIMENTO

Você
merece um hino 
em sumério 
transcrito cuneiforme 
em argila.
Cartas com hieróglifos,
telefonemas em morse.
Que nossas conversas
sejam gravadas em cassetes
e nossas fotos
armazenadas em máquinas
antiquíssimas, disquetes
onde caberia uma só
de cada vez.
Nosso destino
é a obsolescência.
Primeiro, das tecnologias,
mais tarde até das palavras
que vão sendo esquecidas
ou como nós
sofrem a gastura do sentido.
Nascidos
neste século talvez
já busquem o dicionário
para entender mesmo
algumas dessas aqui usadas.
Com urucum ou outra tinta
qualquer quisera
deixar minha mão espalmada
impressa
na parede da sua cozinha.
Mas desmoronará o edifício.
Rapaz, abra a janela. Alto
como você é, estique ainda
mais o pescoço, aguce os olhos.
A fumaça que você vê no horizonte
talvez sejam meus sinais,
talvez sejam só os fogos
entre a Austrália e a Amazônia.

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sexta-feira, 25 de setembro de 2020

NANA, NENÊ

Nana, nenê. 

Tu estás no colo 
dessa Cuca que te gerou 
por nove meses. 

O teu papai, o Bicho Papão, 
está no trabalho 
de fazer roça do mundo. 

Não há monstro 
sob o berço, só há tu mesmo, 
monstruoso nele. 

As mães de outras espécies 
ninam seus filhotes 
te usando como assombração. 

O resto do planeta não dorme 
por medo de ti, 
e de papai, e de mamãe. 

Nana, nenê.

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terça-feira, 18 de agosto de 2020

ARE YOU GOING TO BEBEDOURO FAIR?

                a Ismar Tirelli Neto

Você irá nesse domingo à feira 
ao redor do Jardim Misterioso
em Bebedouro?

Mande notícias, se as pinhas 
estão maduras, se é tempo
de mangas, a rosa

ou a espada que corta o verão.
Se já bate ao sol a bandeira
da coração-de-boi.

Talvez possa resgatar um frango
das mãos vivas de uma avó
que o queira pirão

e entre as grades da prefeitura 
o solte a ciscar por uma hora
mais de vida e paúra.

Na praça pergunte aos antigos
se é verdade que ali antes
fora um cemitério

e por isso o Misterioso do nome,
se só outra história de medo 
a crianças crédulas.

Note se todos contam as moedas,
se há poemas nas cédulas.
Talvez seja ainda 1985.

Procure então entre as galinhas 
medrosas um menino franzino
e medroso, muito quieto.

Diga-lhe que vai diminuir o medo.
E o pavor do revólver da vacina
e da verdade sobre si 

é completo e supérfluo exagero.
Que cisque como as galinhas
da alegria os grãos.

Que cresça como aquelas mangas:
espada, rosa, coração. Rasgue 
no dente o verão.

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segunda-feira, 11 de maio de 2020

As pausas do meio-dia e da meia-noite



As pausas do meio-dia e da meia-noite

         a Frederico Nercessian

atado
ao topo desse mastro
na rota
entre Ítaca e o Atol
das Rocas

sinto-me o periscópio
de um submarino
como se o tronco
de que o mastro foi feito
fosse um metrônomo
ou rede que balouça
à beira de barrancos
e abismos

sigo atordoando
o peito
contra as ondas
nesse afogamento
que de tão lento
quiçá evolva
guelras
e barbatanas

inclino
a cabeça e o torso
para que minha espinha
dorsal
herdada de um peixe
ora retorne
a sua origem horizontal

como se estende
um tapete
para uma prece
a Meca
ou a Terra
inclina-se em eixo
de anuência ao sol

e se eu estiver perdido
entre Itaparica e Ítaca
ou entre Ártico e Antártica

não quero nem o chororô
das falsas-orcas
que erguem suas cabeças
sobre o espelho da água
e então submergem
para entoar seu réquiem

nem observar o êxtase
dos peixes-bois
que boiam no sorriso
constante duma alegria herbívora
e então emergem
para baforar seu samba-enredo

cansa-me a flor noturna do cacto
que manda carunchos ao solo
por uma única madrugada
cansa-me o campo de girassóis
que dançam com juba loira
no meio-dia do sol da meia-noite

quero contraste nos meus olhos
para a sombra que se desenha
entre luz e obstáculo
como num piquenique
no eclipse minguante
e na lua crescente

sim e sim
que em minhas gaiolas
só cantem os pássaros
que cantam
logo antes do crepúsculo
logo depois da alvorada

como ao mirarmos o sol em cheio
fechamos os olhos
e na escuridão da noite sem lua
os arregalamos

*

Berlim, abril/maio de 2020

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terça-feira, 6 de agosto de 2019

Carta a André Capilé no fuzuê de um toró




Nessa cambada,
que parentesco fora do sangue
nos une, songos

que somos nessa terra grande
das mil zangas?
Zune ao redor o grão-muxoxo

de marimbondos,
enquanto nos emperiquitamos
nessa vida-a-jiló,

nossa pobreza nas quitandas,
nós, uns moleques.
Curingas em preto-e-branco.

E algum antepassado
meu terá ferido ancestral teu,
pele, couro e pelouro?

Bagunça o cochilo essa ideia,
me sinto qual titica
a pensar em crimes que herdei.

Ou jamais hemos nós
de saber em que parte da carne
carregamos o algoz?

O algoz-pai que agua
a nossa tinta, o dendê na ginga?
Dóem pés-na-bunda,

chafurdar qual minhoca na farofa
da dor nacional.
Doar nosso fubá, nossa canjica,

as babas do quiabo nas bibocas.
Nenhum cafuné
exigimos de cidadãos, só aluguel

para o cafofo pago, paz na roça.
O abuso da cachaça,
já sabemos, é culpa toda nossa.

Seguimos. Ninamos
traumas como a filhos que um dia
enfim se emancipem.

Examinamos sem dedo e aliança
o campo comum
da batalha, maxixe do cangaço.

Por ti às vezes me candomblo,
macotas no toró
de línguas-fantasma sem plural.

Nesse nosso dengue anti-capanga,
capenga, o samba nosso.
Parentes, até o beleléu, sem igual.

*

Berlim, 02 de agosto de 2019. Retrato de André Capilé por Vinicius Vargas.

segunda-feira, 29 de julho de 2019

“Carta à mais caçula [para ser lida por Maria Eduarda Domeneck Ramos quando chegar a hora]”




Chegada nessa gravidez tardia
da irmã caçula a esse rodízio de caçulas,
na casa onde já tombaram
a goiabeira, o coqueiro e o pé-de-acerola,
donde não mais se ouve
nem o bem-te-vi nem o fogo-apagou
e mesmo alguns humanos
jazem já no Cemitério São João Batista
da Paróquia de São João Batista
para a qual teu avô leiloou tantas leitoas,
bem-vinda a esse planeta delicioso e terrível,
bebezinha qual matriosca às avessas,
na qual a versão menor esconde a maior,
tendo já em si a mulher fortíssima que serás
pois assim foram tua bisavó, tua avó e tua mãe.

Não conhecerás alguns de nós,
a Dona Rosária das cidreiras e pirões,
a Dona Concheta da romãzeira e hortelã,
tampouco Seu João, o Garganta de Ouro.
Mesmo assim, bem-vinda à família penhorada.
Há muitos de nós ainda
para tentar te defender dos tropeços
que nós mesmos demos,
conselhos que por certo ignorarás
como ignoramos os que nos foram dados.

Aqui aprenderás entre as milhares de línguas
do planeta uma única língua específica
com as intonações particulares
desse país, região, comarca e casa
das terras da Vila de São Sebastião do Bebedor
cuja gleba foi paga a prestações de porcos
e a última com um cavalo de sela arriada,
onde temos dificuldade com plurais e pronomes
pois em nós mesmos jaz uma língua-fantasma.
Dou-te o primeiro conselho,
que só um Domeneck entenderá:
Não adianta ser uma boca-de-Leandro
nessa viagem Rua Campos Salles abaixo.
Há que se lutar e amar com o miocárdio
que nos foi dado. Este que te bate.

Nesse fim-de-mundo-grande sem porteiras
começarás a aprender certas coisas
importantes para a universalidade nacional
como a maneira com que cai a renda
das famílias conforme se distancia a rua
de suas casas do Lago de Bebedouro,
e como, apesar de bonita como um parque,
te será proibido entrar na Chácara Furquim
porque é propriedade privada
assim como não poderás colher laranja alguma
dos laranjais imensos que circundarão tua infância.
Ao Horto Florestal, serás avisada
nunca ir sozinha por ser menina, por ser mulher.
Desses perigos saberás a tempo.

Mas há prazeres de graça. Verás.
Tem o bumba-meu-boi e o circuladô-de-fulô,
o carnaval e a procissão e a eleição,
a chuva e o toró, tem as canções de fossa
para as paixonites agudas.
As dores de amor gostoso virão com o exército
de cigarras-do-cafeeiro que já nem sei
se ainda infernizam as primaveras.
Muita coisa já sumiu, escafedeu-se.

Tem os doces açucaradíssimos
pois se moveu por séculos o açúcar a colônia
por que não abusarmos dele hoje?
Muito sangue derramado por café e açúcar
corre agora em teu sangue adocicado
e verás em casa como o açúcar do café
ferve-se junto já de sua água.
Tem a Nossa Senhora negra e a Iemanjá branca
e mesmo teu avô, católico apostólico romano,
não deixava de fazer suas oferendas ao mar
depois de rezar seu terço.
Mas é possível que parte da família te alerte
sobre a interdição de imagens de barro.
E o mar é longe, mas tem dezembro. Tem janeiro.
Janeira-se muito por aqui,
como janeiraste em pleno julho.

Teu avô nasceu sob Getúlio Vargas.
Tua mãe e eu, teu tio, sob Ernesto Geisel.
Um dia aprenderás estes nomes.
Eles agora não te importam
como o leite e o colo.
Estes nomes são apenas as cólicas do futuro.
Por ora deixe conosco as dores de agora.
Cuide cicatrizar na barriga o cordão-umbilical
que secará e será enterrado no quintal.
Esta será tua primeira cicatriz.
Te desejo que teu tempo te seja mais leve
do que nos foi o nosso, e em meio
a alegria muita e alergia nenhuma
cresças para descobrir
as delícias-desgraças de tua terra,
as desgraças-delícias de sermos o que somos.

*

Berlim, 25 a 28 de julho de 2019

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