segunda-feira, 28 de setembro de 2020

MICROANTOLOGIA PENELOPEANA DE POESIA LUSÓFONA


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UMA PEQUENA ALDEIA
Cecília Meireles (Brasil, 1901-1964)

No canto do galo há uma pequena aldeia
de mulheres risonhas e pobres
que trabalham em casa de pedra
com belos braços brancos
e olhos cor de lágrima.
São umas corajosas mulheres
que tecem em teares antigos,
são umas Penélopes obscuras
em suas casas de pedra
com fogões de pedra
nestes tempos de pedra.
Elas, porém, cantam com frescura,
a leveza, a graça, a alegria generosa
da água das cascatas,
que corre de dentro do mundo
pelo mundo
para fora do mundo.
No canto do galo há, de repente,
essa pequena aldeia,
com essas belas mulheres,
essas boas deusas escondidas,
essas criaturas lendárias
que trabalham e cantam
e morrem.
O amor é uma roseira à sua porta,
o sonho é um barco no mar,
a vida é uma brasa na lareira,
um pano que nasce, fio a fio.
A morte é um dia santo
para sempre no céu.
*
O TEMPO E A FÁBULA
Henriqueta Lisboa (Brasil, 1901-1985)
De que miraculoso arco-íris
os dedos ágeis de Penélope
teriam recolhido o zéfiro?
Porém o zéfiro que esgarça
a flor de espuma nos recifes
carrega o pólen de outra flor.
Perde-se em mares sem memória
todo o velame ao vendaval.
Mas salva-se o ânimo do nauta.
Cavalos árdegos dos montes,
ontem dormidos nas planícies,
rompem as rédeas à miragem.
E no evolver de novos signos,
com as orvalhadas já destelam
brandos casulos de ouro e azul.
Destece, ó noite, por que o dia
teça com virginais matizes
a fábula da mesma fábula.
*
PENÉLOPE
Sophia de Mello Breyner Andresen (Portugal, 1919-2004)
Desfaço durante a noite o meu caminho.
Tudo quanto teci não é verdade,
Mas tempo, para ocupar o tempo morto,
E cada dia me afasto e cada noite me aproximo.
*

PENÉLOPE
Lara de Lemos (Brasil, 1925–2010)

No tear pequeno
teço os fios
da minha vida
teço o tédio.

No tear do tempo
teço teia in-
consistente
teço o verso.

No tear do Universo
teço o verbo
solitário
teço o poema.

No tear do medo
teço o pano
derradeiro
teço o sudário

*

A NÉO-PENÉLOPE
Ana Hatherly (Portugal, 1929-2015)
Não tece a tela
Não fia o fio
Não espera
Por nenhum Ulisses
Às portas do sangue
O herói adormecido
Agora está deitado
Ao Polifemo abraçado
Seu próprio satélite forçado
Há um intervalo nímio
Nas coisas
Que entre si independem
*
PENÉLOPE
Maria Lúcia Alvim (Brasil, 1932)
Tudo que vi
àquele bordado
prendi
Tudo que sei
ficou de lado
passei
Tudo que sinto
é simulado
minto
Tudo que penso
é mastigado
infenso
Tudo que sonho
é emaranhado
bisonho
Tudo que amei
foi adiado
cansei
Tudo que fiz
desfiz por querer
*
SOU AMAZONA E PENÉLOPE
Maria Teresa Horta (Portugal, 1937)
Sou Amazona e Penélope
desfazendo nó e laço
a desmanchar, a tecer
a destecer o que faço.
*
PENÉLOPE
Myriam Fraga (Brasil, 1937)
Hoje desfiz o último ponto,
A trama do bordado.
No palácio deserto ladra
O cão.
Um sibilo de flechas
Devolve-me o passado.
Com os olhos da memória
Vejo o arco
Que se encurva,
A força que o distende.
Reconheço no silêncio
A paz que me faltava,
(No mármore da entrada
Agonizam os pretendentes).
O ciclo está completo
A espera acabada.
Quando Ulisses chegar
A sopa estará fria.
*

TALVEZ PENÉLOPE
Lélia Coelho Frota (Brasil, 1938-2010)
Ah o amor da Grécia o branco
imaculado amor das ilhas
que pervagam no mar violeta
a desfazer-se a refazer-se –
espumas,
peixes, sargaços, conchas, abismos,
Ulisses!
Onde viajas, encantado, retido,
ó esperado desaparecido?
Ó nunca visto, ó viajante rijo,
do mar guerreiro, de ondas em riste, onde
teu rosto ignorado persiste?
Na nostálgica superfície
ecoa um nome e o edifício
das águas reboa, desaba
pelas angras do esquecimento.
Que sereia te seduziu
para assim me deixares, só,
na mesa vazia, na ceia
às escuras, entre conchas
murmurejantes?
Ou serei eu a sereia
que se põe entre nós, de permeio
e desfaço tua chegada
quando de longe, na amurada,
vês o meu vestido vermelho
que a brancura da praia incendeia?
Serei eu quem de ti me afasta
e que a trama das ondas desata
quando a meus pés resvala, súplice,
a marola da tua fragata?

*

PENÉLOPE
Orides Fontela (Brasil, 1940-1998)
O que faço des
faço
o que vivo des
vivo
o que amo des
amo
(meu “sim” traz o “não”
no seio).
*
LINHA AZUL
Yêda Schmaltz (Brasil, 1941-2003)
De joelhos
eu bordava
a barra da noite
com o meu branco
alinhavo.
O teu olho
se debruçava
para a manhã
que eu, sem saber,
costurava.
E as nossas mãos
buscavam, sem sentir,
o nó que a linha
branca tramava.
Então,
pelo enredo da trama,
eu costurei
a minha boca
na tua boca
- um poeta me ama –
e a linha ficou azul,
cor de maçã.
*
LONJURA
Vera Duarte (Cabo Verde, 1952)
O amor morreu com Julieta
e Romeu nunca existiu
No prosaico quotidiano
teimosamente aguardo
contudo
em meu banco junto ao cais
qual Penélope desenganada
a chegada do amor
num Ulisses navegador
ou Passo-amor reinventado.
*
NAVEGA-ME A ALMA UMA ILHA
Ana Mafalda Leite (Moçambique, 1956)
navega-me a alma uma ilha
o espírito antigo de um barco em viagem
penélope de m’siro enfeitada
olha o minarete mais alto
do horizonte
e medita sobre as ruínas do cais
o porto ancorado do sonho
por entre os seus dedos deslizam
fios de missanga
fios de prata
fios de ouro
ourivesaria atenta do silêncio
seu rosto voltado a oriente
o linho enrolado no corpo
navega-Ihe pelos dedos
a demorada monção
o súbito vento
*

FIA ESTA CANTIGA
Jussara Salazar (Brasil, 1959)

FIA ESTA CANTIGA desfia depois
tecer e trançar
fia esta cantiga
no tear. Em silêncio como tuas tias
que teu pai foi pra roça vestido de noivo
e nunca voltou
Fia esta cantiga
como tua mãe um dia sem alarde desatou
e teceu
um coração escarlate no peito de jesus
Fia esta cantiga
e se vires a vida
fia bem depressa fia
Fia
esta cantiga pra passar
*

PENÉLOPE
Adília Lopes (Portugal, 1960)

1
Penélope
é uma aranha
que faz
uma teia
a teia é a Odisseia
de Penélope
2
Penélope está
sempre
sentada
3
Ulisses é abstracto
Penélope é concreta
a teia é abstracta
e concreta
4
Penélope casa-se
com Homero
Ulisses fica a ver
navios

*

PENÉLOPE (I)
Ana Martins Marques (Brasil, 1977)
O que o dia tece,
a noite esquece.
O que o dia traça,
a noite esgarça.
De dia, tramas,
de noite, traças.
De dia, sedas,
de noite, perdas.
De dia, malhas,
de noite, falhas.
*
ODISSEU NEGRO
Lívia Natália (Brasil, 1979)
Cessou o tempo das frutas maduras
e lagartas estranhas comem o verde das folhas.
Tudo é bruto e das pedras cresceram raízes temporãs.
Esta estação de cores devassadas,
esta terra lacrimosa,
esta noite sem perfume de brisa
perdurará, matando em nossos dentes,
o hálito doce que nos dizia da vida na boca?
Vejo seu barco macio na pele das ondas,
e meus dedos seguem tecendo o
caminho.
Resta, em seus braços que navegam o tempo,
força pra ferir as Águas e voltar,
demudado,
para este reino que te aguarda,
após a travessia?
Seu leme vem cavando o percurso nas Correntezas.
Sei que chegarás, porque está escrito na carne do sonho.
E eu permaneço insone
bordando,
nas horas do dia,
todo o seu manto.
*
PENÉLOPE MENTIROSA
Mônica de Aquino (Brasil, 1979)
De noite desfaz, obediente
a fera que a carne abriga
e regressa à partida: a espera indefinida.
De dia, é outro o desejo
tece a mortalha com o silêncio
de ter de casar-se outra vez
(presa entre duas promessas)
mas Penélope mente: o que quer é a solidão.
A fidelidade é um cão.
*
NEUROLÓGICA
Tatiana Pequeno (Brasil, 1979)
um soco depois do almoço
certeira em minha casa só
disse alguma coisa sobre os
cactos que quis deixar no cor
redor da sacra vizinhança e
um corpo de homem avançou
rápido na contramão da zona
morte aparente contradição é
um soco depois do almoço
vindo à esquerda da cabeça
não sangrou nada apenas caí
e levantei rápido com um lá
pis-lazúli apontado para o
coração do tolo a me dizer
cuidados sobre a maneira de
escrever ou dizer seu nome
queria comungar do seu ódio
rasgar teu peito e descosturar
a cerzidura da tua pele mas
não sou como tu homem e
meus ódios eu bordo em rou
pas que não visto e guardo
no fundo das terras ardidas
onde cuspo sobre teu nome
e todas as tuas futuras tristes
esposas filhas gerações.
*
OS CABELOS DE PENÉLOPE
Érica Zíngano (Brasil, 1980)
os cabelos de penélope
seus fios crescem
e seu marido nunca aparece
que tristeza penélope sozinha
cosendo
chorando e chorando
e costurando e descosturando
o tempo
penélope não perde a cabeça
mas penélope arranca os cabelos
seus próprios cabelos
como se fosse um gato
psicopompo
que solta seus próprios pelos
penélope faz uma linha nova
todo dia uma linha diferente
com um fio de cabelo
novinho em folha
no meio da linha
penélope diz que é magia
a eletricidade dos cabelos
de noite quando descostura
penélope junta os fios
à meada
e vai dormir cansada
*
ATRIBUTOS
Juliana Krapp (Brasil, 1980)
Gostaria de ser uma mulher
que soubesse identificar um brocado
uma cerzidura um carmesim um
adorno
em matelassê
No comércio
a palavra aviamentos me lembra
de que há todo um reino de malícias
que desconheço
- penso
não em ilhós
mas em aves aquáticas
artefatos explosivos
Gostaria
de poder dizer: vamos desenlaçar
o cordão do meu quimono vamos
providenciar castanhas doces
para o grande banquete
e nos deitar sob o dossel à espreita
das comissuras
que ardem na pele
Porém
eu estou atada
ao mundo da sonolência
e das cintilações breves
da louça quebradiça e da mixórdia
- ao lugar
das mulheres e bichos
que se espatifam n’água
*
PENÉLOPE
Ana Freitas Reis (Portugal, 1981)
"Um fio invisível e tónico
pacientemente cose a rede
da nossa milenar resistência"
[Conceição Evaristo]
Se a Terra erguesse versos
como pontos cardeais
ancorados a um coração
de raios abertos,
vozes com sede
rompendo a ternura
a seda do eros falante
ou o céu da vénus filarmónica,
talvez aí soubéssemos explicar
o mistério.
Se a canção do Bowie pudesse ser repetida
como a fome da visão de um melro
o limoeiro que escuta junto e sério
o teu corpo aos palmos
e o amor por inteiro, ao invés
de interrompido,
seria impossível, saberias.
Porque, tal como o passo
de samba melancólico,
o mistério milenar,
de onde ainda sopram notas púrpuras,
de onde ainda soa o assobio escuro,
de onde vem o vento contorcido,
move a fita de sangue
nos nossos cabelos.
E seria necessário que o vulto,
que me assombra,
explodisse
e teríamos de ter tentado
o caminho de novo, orientados
e perdidos um dentro do outro.
Os olhos rangeriam nas costas da beleza
a aurora bater-nos-ia no rosto
e a manhã, nossa inimiga,
desde um fevereiro descampado,
seria a queda do anjo.
A série fôlego que sangra
e bafeja espinhos
traz o mistério
esse, o primeiro sol
como uma metralhadora,
a bandeja erguida,
a carne frita em manteiga derretida
entre braços fracturados.
Se o gaguejo que ainda sai
semelhante a um trovão
sorvesse a tua solidão, lentamente,
ao alto levaria as cinzas
e substituiríamos a luz dourada,
a janela sem cortinas,
o cheiro a hortelã,
a flor amarela,
o óleo de girassol dito em inglês,
as estrofes longas como espasmos.
Hoje sei que o mistério
arde quando é soprado.

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