sábado, 31 de maio de 2008

Poesia em fuga da Alcatraz de papel: parte 2


("Lo ferm voler qu´el cor m´intra", de Arnaut Daniel, interpretada por Thomas Binkley e o Studio der Fruehen Musik)

Performance moderna para um poema provençal, sem acompanhá-la de seu texto original occitano ou qualquer tradução, material encontrável na teia mundial de computadores (e, no Brasil, a partir do trabalho primoroso de divulgação empreendido por Augusto de Campos), buscando não contribuir para certa “distorção e cerceamento literários” por que passou o trabalho poético dos trovadores, num processo cultural em que a escrita sobrepôe-se ao oral a partir do Renascimento, levando-nos a privilegiar certos aspectos do trabalho poético em detrimento de outros, e que levou a Literatura a se tornar o único reservatório respeitável para a poesia, devido às possibilidades de divulgação e armazenamento do arcabouço lingüístico e, “portanto”, poético, que o papel apresentou por séculos.

Assim, no caso específico dos trovadores, foram estudados por muito tempo apenas seus textos sobreviventes em manuscritos por ter-se perdido ou desconhecer a notação musical de seus poemas, o que viria a gerar características muito específicas para o trabalho poético, transformando-o a ponto de nos esquecermos que em outros momentos a poesia significou algo distinto do meramente literário. É um milagre histórico que a acumulação dos esforços de pesquisa e estudos críticos de homens e mulheres apaixonados pela poesia dos trovadores, unidos às possibilidades tecnológicas da era digital, possam levar a prática poética de hoje a uma redescoberta da saúde luzidia do medievo. É apenas natural que, nas mãos de poetas, estas novas tecnologias levem a experimentos que são, em muitos casos, simplesmente um retorno e redescoberta de aspectos do trabalho poético que apenas permaneceram dormentes ou desprestigiados em meio à cultura que elegeu a literatura, este cômodo solitário da casa da poesia, como único espaço habitável para o poeta de respeito.

É neste processo que as características completas do trabalho poético de alguém como Arnaut Daniel, que nele funcionavam com o propósito de gerar e garantir uma PERFORMANCE TESA, passam a ser lidas por nossa cultura literária como ESCRITA CONCRETA, um de seus aspectos parciais, privilegiado como único. Sei que isto pode facilmente ser lido como mera tentativa de polemizar, mas creio que as implicações de tal processo têm conseqüências incontornáveis para o trabalho poético contemporâneo, apenas vislumbradas na escolha entre adjetivos como “teso” ou “concreto” (ainda que seja apenas saudável lembrarmo-nos que, ao dizer “poesia concreta”, este “concreta” é um adjetivo).

Não há motivos para erguer novas trincheiras entre o oral e o escrito ou reabrir debates considerados por muitos como encerrados. Penso na advertência de Paul Zumthor:

“Tanto não se pode mais definir a oralidade removendo certas características da escrita quanto reduzir a escrita a uma transposição do oral.”

As novas configurações poéticas contemporâneas, que voltaram a privilegiar aspectos da poesia esquecidos ou por muito tempo desrespeitados, vão muito além da questiúncula brasileira sobre a inclusão ou exclusão de letristas de música popular no famigerado e moribundo cânone, que ainda segue parâmetros críticos dos séculos XVIII e XIX. Não quero apenas aferrar ainda mais as disputas de prestígio cultural entre letristas e escritores. A escolha de um trabalho de Arnaut Daniel é também pontual para participar deste debate por ser um exemplo de poeta-performer que não descuidava da escrita, a garantia para atingir sua poesia-performance tesa, densa e concreta: escolha seu adjetivo favorito e compreenda as conseqüências. Após séculos de prática da poesia como “produto da escrita”, não deixará de ser traumático para os poetas contemporâneos meditarem sobre a proposição, segundo Zumthor, de que o uso da escrita “implies a disjunction between thought and action, a deep-seated nominalism, related to a weakening of language qua language, the predominance of a linear conception of time and a cumulative notion of space, individualism, rationalism, bureaucracy.”

È incrível, no entanto, que poetas contemporâneos sigam respeitando um sistema poético-literário monológico e unívoco, que limita o trabalho do poeta a apenas um dos seus muitos campos de atuação possíveis, que poderiam ser fincados numa tradição muito mais pluralista do que imaginamos. A própria pergunta, no caso do debate brasileiro, se “letras-de-música” são “poesia”, já denuncia o erro que se instala no debate a partir da própria pergunta, desde o princípio. Pois, ao perguntar se uma letra-de-música é um poema, o que se está realmente a perguntar não é sequer se uma letra-de-música FUNCIONA como poema (tal qual o conhecemos filtrado por uma cultura que privilegia a escrita), mas se letras-de-música podem ser considerados trabalhos válidos da Literatura, pergunta que eu pessoalmente começaria a responder a partir de minha crença firme de que a literatura é apenas um dos campos de ação da poesia, e não o contrário.

Se algumas características da poesia podem gerar oposições ao se apresentarem em extremos opostos do espectro poético, manifestando-se nos prismas VISUAL ou SONORO, não se pode esquecer toda a liberdade existente nas gradações que os unem, além de lembrarmo-nos da passagem do ABC of Reading em que Pound relata a pergunta feita a ele por um músico: se não haveria um único poeta em que todas as características do “poético” se manifestam, como ele afirmava ver o “musical” em Bach. Pound responde que não, que tal poeta “completo” não existe. No entanto, acredito que as novas possibilidades da era digital podem levar o trabalho poético a retornar a uma harmonia e pluralidade apenas sonhadas pelos grupos no Brasil (Noigandres), Áustria (Grupo de Viena), Estados Unidos (Beats, Black Mountain, Ethnopoetics, Spicer Circle e New York School) ou França (Lettristes), que retomaram as estratégias das vanguardas, consideradas em muitos casos como destruidoras da tradição, mas que poderiam ser vistas como retornos a tradições esquecidas. Penso na relação da poesia dadaísta, por exemplo, com as fatrasies medievais francesas ou a poesia sonora do passado, tanto a dos trovadores quanto a tradição do port à beul ou mesmo da poesia xamânica. A descrição de Hugo Ball da noite de estréia de sua poesia fonética no Cabaret Voltaire, quando oralizou pela primeira vez seu poema Karawane, é interessante para esta discussão.

Infelizmente, não creio que isto vá acalmar as sereias histéricas que temem e profetizam a morte da poesia, preocupadas em proteger sua manifestação livresca, como se esta fosse a sua Ursprung/Gênesis. Ora, que se descabelem enquanto colamos nos muros da cidade o design de nossas intervenções verbais e cantamos, vocalizando com todo o corpo nossos poemas. Que espalhemos estes trabalhos em livros ou pela internet, sem esquecer: que sejam bem-escritos.

Terminando com mais palavras de Paul Zumthor:


“Each time, in fact, a part of a poetic communication passes from one register to another (oral/written), a radical but rarely perceptible mutation is produced at the linguistic level. A poem composed in writing but “performed” orally is thereby changed both in nature and in function to the same extent that an oral poem collected and disseminated by writing changes in the exact opposite fashion. It so happens that the mutation remains virtual, buried in the text like hidden riches all the more marvellous for being undiscovered: the feeling that while reading them with one´s own eyes, there is an intensity that urges them to be enunciated, that there is a full-bodied voice vibrating somewhere at the origins of their inscription.”
Paul Zumthor, “Oral Poetry: An Introduction”



ARNAUT DANIEL::::



Sabe-se que Arnaut Daniel nasceu no castelo de Ribérac, em Périgord entre 1150 e 1160 e morreu por volta de 1210, chegando a ser ainda em vida um dos poetas mais conhecidos de sua época e continente. Seu trabalho é considerado um dos exemplos mais perfeitos da poesia provençal que floresceu a partir de 1100 (em sua primeira manifestação conhecida por nós, na poesia de Guilherme da Aquitânia) e entra em declínio no século XIV, desaparecendo por volta de 1350, em meio à turbulência apocalíptica da Grande Peste que matou 75 milhões de pessoas entre 1347 e 1351, transformando estruturas socias e sacudindo em terremoto a cultura e o mundo europeus que geraram a poesia dos trovadores.

É mais provável que a poesia dos trovadores não tenha começado com Guilherme IX da Aquitânia (1071 – 1126), mas tenha neste período de pouco mais de dois séculos conhecido seu apogeu e extinção.

Um século após a morte de Arnaut Daniel, seu nome seguia vivo entre os poetas que herdaram sua tradição, quando Dante Alighieri o chama de „il miglior fabbro“ e quebra a unidade lingüística da Divina Comédia para permitir que Arnaut Daniel fale no purgatório, onde estava por seus pecados de luxúria, em sua própria língua, o occitano, chamado geralmente de provençal, irmanado ao catalao moderno e ainda falado pelos mais velhos em algumas de suas regiões européias de origem.

Apenas 18 de suas composições sobreviveram, mas Arnaut Daniel seria capaz de manter sua influência e mestrado sobre poetas do futuro a partir dos manuscritos de seus textos, chegando a poetas modernos de línguas e culturas distintas, como Ezra Pound, Joan Brossa e Augusto de Campos.

Um comentário:

júlia disse...

laura amara feito uma dança, má dama que me doma,

caí aqui não sei bem como, ricardo, prazer

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