segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Oito poetas mineiros, estando em solo mineiro



                               Oito poetas mineiros, estando em solo mineiro


Soneto V
Cláudio Manuel da Costa

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.

§

Grafito numa cadeira 
Murilo Mendes

Cadeira operada dos braços
Fundamental que nem osso

Não poltrona com pés de metal
Knoll
Ou projetada por um sub-Moholy Nagy
Com nota didascálica

Antes cadeira no duro
Cadeira de madeira
Anônima
Inânime
Unânime
Cadeira quadrúpede

Não aguardas
Nenhuma "iluminação" particular
Nem assento e clavícula de nenhuma deusa
Que te percutisse — gong —
Nem de nenhum Van Gogh
Que súbito te tornasse
Eterna

§

O enterrado vivo
Carlos Drummond de Andrade

É sempre no passado aquele orgasmo,
É sempre no presente aquele duplo,
É sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra,
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre no meu lábio a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim o inimigo
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

§

De súbito cessou a vida
Henriqueta Lisboa


De súbito cessou a vida.
Foram simples palavras breves.
Tudo continuou como estava.

O mesmo teto, o mesmo vento,
o mesmo espaço, os mesmos gestos,
Porém como que eternizados.

Unção, calor, surpresa, risos
tudo eram chapas fotográficas
há muito tempo reveladas.

Todas as cousas tinham sido
e se mantinham sem reserva
numa sucessão automática.

Passos caminhavam no assoalho,
talheres batiam nos dentes,
janelas se abriam, fechavam.

Vinham noites e vinham luas,
madrugadas com sino e chuva.
Sapatos iam na enxurrada.

Meninas chegavam gritando.
Nasciam flores de esmeralda
no asfalto! mas sem esperança.

Jornais prometiam com zelo
em grandes tópicos vermelhos
o fim de uma guerra. Guerra?...

Os que não sabiam falavam.
Quem não sentia tinha o pranto.
(O pranto era ainda o recurso
de velhas cousas coniventes.)

Nem o menor sinal de vida.
Tão-só no fundo espelho a face
lívida, a face lívida.


§

patrulha ideológica
Affonso Ávila


te alerta poeta que a p/i te espreita
         desestruturou o discurso e embaralhou as letras
te aleart paeto que o pc te recrimina
         barroquizou a linguagem e descurou da doutrina
te alaert peota que o sni te investiga
                   parodiou o sistema e ironizou a política
te alaret poate que o women´slib te corta o genitálio
         glosou o objetou sexual e teve orgasmo solitário
te alerat peato que a puc te escanteia
         foi tema de mestrado e não quis compor  mesa
te areta petoa que a cb não te reedita
         gastou muito papel e ouço sangue na tinta
te alrate petao que a abl te indexa
                   fez enxertos de inglês e sujou a água léxica
te arealt patoe que a cnbb te exorciza
         macarronizou o latim e não aprendeu a nova missa
te alatre potae que o esquadrão te desova
                   traficou palavrinha e não destruiu a prova
te atrela ptoea que o doicodi te herzoga
         suspeito sem suspeição e enforcado sem corda

i must be gone and live                          or stay and die


§

Paupéria revisitada
Ricardo Aleixo

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
na companhia das traças
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

§

Aula
Edimilson de Almeida Pereira

Fala de vendedor ambulante
é signo em rotação. A gente
lança no ar o que tem de ser
dito e colhe — nem sempre —
o fruto de algo vendido.
Repetimos as falas aceitas
para garantir a venda, mas
o risco do improviso é o que
há. Três por dois, duas por
uma — essa sintaxe apraz.
A gente lança no ar. Se der
ritmo ganhamos a feira, se
não, fazemos fina de baile.

§


Aparador
Ana Martins Marques

Sonho que estou de volta
ao primeiro apartamento
quando éramos jovens e tínhamos
muito menos coisas
e nem sabíamos que já éramos
felizes como pensávamos que seríamos
estás na minha memória
jovem e alegre como numa fotografia
talvez ainda mais jovem e mais alegre
mais jovem do que jamais foste
e mais alegre
usas uma presilha
no cabelo castanho e comprido
invejo a presilha
que está tão mais próxima do que eu
do teu pensamento
e dos teus cabelos
da tua cabeça de cabelo e pensamento
e invejo a fotografia
que se parece tanto contigo
talvez mais ainda do que tu mesma
ouço as juntas que estalam
como portas batendo
sou hoje uma chaleira, uma pá, uns óculos
esquecidos sobre o aparador
sou o aparador
esquecido de mim mesmo
sobre o aparador está tua fotografia
que nos sobreviverá


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