Após outra conversa em que Louis McGuire e eu falhamos em adivinhar a senha
Outra manhã
tardia, destas manhãs
que vêm tarde
por nossa recusa
em permitir que o sol
dê fim à noite,
manhãs tardias de noites
temporãs, aguadas a vinho
em nossos milagres minúsculos
ao transtornar em vinho a água
em meio à poeira
de nossos quartos
com aluguéis atrasados
e pós de toda ordem
sobre os móveis
quando na penumbra gratuita
de nossas cortinas puídas
chegamos, em nossos colóquios
de bêbados honestos,
não a um cerne
mas a um consenso
de verdade, uma crença
qualquer nossa,
debates repetitivos
no roteiro trivial de novela
em que as reviravoltas
dos beijos na testa
são
as facas nas costas,
e tentamos fixá-la,
essa verdade a varejo,
torná-la uma coisa
que se pega com as mãos,
como estes isqueiros,
estes cinzeiros que transbordam
enquanto esvaziam-se os cálices,
se ao menos
encontrássemos a sequência,
a sequência certa de palavras,
artigo que siga substantivo e verbo,
que é o dizível que nos importa,
uma sentença feito reza
que a torne reiterável
amanhã e depois de amanhã,
tão reiterável quanto este sol
que arde fora das cortinas puídas,
a sequência de palavras
que faça deste consenso
de verdade temporária
uma parte da penumbra
e a ilumine,
enquanto engatamos
a noite à manhã e a manhã à tarde,
intuindo
que deste acordo
talvez
dependa a inauguração
de um calendário novo,
e bracejamos ao falar
um ao outro
“eu sei o que você
quer dizer”
na barafunda de vocábulos
que desperdiçamos
com a boca nessa busca,
mesmo sabendo não
haver sem
o dizer o saber,
nessa emergência
de compreensão qualquer
da catástrofe
individual e coletiva
que parece iminente,
e desejamo-nos ao fim
sorte
ao sentirmos o pó
acalmar-se no sangue
e resta tão-só a poeira
a irritar as narinas, os pulmões,
quiçá em vez próxima
quando engatemos vez outra
a noite à manhã e à tarde
e notemos essa verdade pairar
no ar feito a gripe
que tão frequente nos acomete
e nos deitemos na cama
com os ácaros
e busquemos de novo
feito porcos num abatedouro
esta pérola
inteligente e inteligível
que sempre nos elide,
no chão lúcido
da manhã que não cessa
de nos querer moer,
esta senha que se esgueira
e escapule, código
que abra a saída
dos fundos
ou detenha
estas engrenagens, leitões
bêbados, honestos,
guinchando meias-verdades
sobre o pó
(publicado originalmente na revista portuguesa
Enfermaria 6. E, na
Modo, meu amigo
Louis McGuire)
§
Texto em que o poeta se dá ares para justificar a lambança da existência
Se naquela manhã
em que acordamos juntos
sobre aqueles lençóis
impecáveis, ainda moços,
alguma canção escolhida
a dedo, perfeita,
houvesse soado no quarto,
como se vinda de cada
parede e, inaudível para nós,
emocionara uma plateia
que nos era invisível,
mas assistia a cada movimento
nosso, pernas entrelaçadas,
dentes nos dentes;
ou se naquela tarde
em que você anunciou
que desejava a solteirice
e me deixou plantado
naquele ponto de bonde
sozinho, algum
movimento originalíssimo
de câmera enquadrasse
tensões de músculos isolados,
em mim, em você, um lábio
se contraindo, cento e vinte e três
fios de cabelo móveis
ao vento, e então
três ou quatro pessoas
numa plateia para nós inodora
soltassem um ai baixinho,
contraindo os mesmos músculos;
ou se agora mesmo
enquanto escrevo sozinho
estas linhas
a uma mesa de café,
alguém reconhecesse
numa tela
este cliché de filmes:
o escritor sozinho à mesa do café,
e tal imagem entusiasmasse
algum adolescente
que sonha ser também um dia
o escritor sozinho à mesa do café,
interpretado por algum famoso
e/ou canastrão
num filme qualquer
que outra vez revisitasse
a imagem gasta
do escritor sozinho à mesa do café;
mas éramos só nós dois
sobre aqueles lençóis,
sem plateia,
éramos só nós dois
naquele ponto de bonde,
sem plateia,
sou eu só
à mesa deste café
escrevendo estas linhas
e dando-me ares
como se houvesse câmeras
focando minhas mãos e rosto
ao chegar ao fim deste poema,
tentando justificar esta lambança
com uma plateia
que só existe na minha cabeça.
(publicado originalmente na revista brasileira
Escamandro)
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