"São Jorge e o Dragão", Hans von Kulmbach (circa 1510).
Epístola dos dragões aos sãos
Enviaram-nos,
os narradores e publicitários,
the spin doctors das mil doutrinas,
em expedição a uma guerra santa
– diziam pelos alto-falantes:
que se mate o dragão
ou se mate o soldado,
são generosas com seus Sãos
as milícias inanes da sanidade,
e nós, mamífero e réptil,
já não sabemos ao certo
o que e o quem,
desde então há só esse balé,
esse tango, esse quebra-nozes
de quebrados nós, essa paixão
de fogo e lança, queimaduras
de terceiro grau e penetração,
esse amor-ódio
entre o homem e o dragão,
o medo mútuo e o terror recíproco
de vencer a batalha
e derrotar quem nos dá razão
de viver, e assim tornarmo-nos
supérfluos, sós ao sol,
virar efígie! balela de baleia branca,
romance de unicórnios
e pinóquios, moeda de troca,
não! não ser história
para boi e vaca e bezerro
dormirem se não dormimos
nós mesmos
há tanto tempo de martírio,
enrodilhados um no outro
já não sabemos
quem é quem, o que é o quê,
São Dragão e Jorge!
quem, o que
ao contemplar nossa iconografia
poderá veramente dizer
se nos digladiamos
ou fazemos amor,
nesta civilização risível
que exige de nós que cumpramos
nossos papeis na trama,
na qual ninguém mais vê a diferença
entre as comédias românticas e os filmes de terror,
o amoroso garfo e o amoroso lança-chamas
aqui e acolá seguimos, abraçados
por metros de tela e litros de óleo
nessa batalha para edificação
da canalha, nessa cama sublunar
sofrendo a cada século
mais incisiva nossa crise de identidade
tão particular, meu nome, nosso nome,
que nome,
São Drão,
São Drorge,
São Jargão,
mamífero e réptil,
homem e lagarto
sãos.
Berlim, abril de 2018.
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