quarta-feira, 27 de março de 2019

"Contra o desperdício de poetas", seguido de uma seleção de poemas de Alberto da Costa e Silva

O poeta mineiro Adão Ventura (1946-2004)


Nós todos amamos citar pelos ensaiozinhos ou abanar em cafeterias por aí o grande livro de Roman Jakobson, A Geração que Desperdiçou Seus Poetas (1930). E lamentamos os desperdícios do passado. Mas quantos de nós fazemos algo contra os desperdícios de hoje?

Estamos certos de não estar entre os esbanjadores, certos de que não seguimos modas ou a imprensa. E como se clama por aí contra o sistema que invisibiliza escritores por questões extraliterárias, mas em geral apenas para conquistar o seu próprio espaço ao sol. Garimpar e resgatar os mortos soterrados dá trabalho demais! O que se quer é ver os próprios espirros e cólicas alçados a grande literatura pela Folha de São Paulo, O Globo, a Piauí e o Suplemento Pernambuco.

Foi uma alegria ver Hilda Hilst e Roberto Piva virarem moda, desde que sejam lidos, pois ainda que por motivos escusos podem se tornar anticorpos poéticos no sistema imunológico da língua. Me alegrou imensamente a acolhida que teve o livro de Hilda Machado, e foi bom participar com poetas de minha geração da reapreciação do trabalho desse grande poeta que é Leonardo Fróes, ainda vivo, ainda entre nós.

Mas quando vamos gritar até começarem a ler e celebrar Henriqueta Lisboa, Maria Ângela Alvim, Lúcio Cardoso, Adão Ventura, Marly de Oliveira, Carlos Pena Filho, Stela do Patrocínio, Orlando Parolini, Laís Corrêa de Araújo, Paulo Colina, Max Martins, Mariajosé de Carvalho e Arnaldo Xavier devidamente, estes mortos soterrados? E há os vivos, os que são difíceis de fazer moda.


A poeta capixaba Marly de Oliveira (1935-2007)


Passei ontem o dia lendo um poeta que ganhou o Prêmio Camões em 2014 e mesmo assim é raramente citado: Alberto da Costa e Silva (São Paulo, 1931). Que inteligência e exuberância de linguagem! Além disso, trata-se de um intelectual de peso, o autor de trabalhos seminais sobre a relação entre o Brasil e a África. Não estou acusando. Eu próprio só comecei a lê-lo com mais atenção no ano passado.



E há outros vivos dos quais precisamos formar nossa própria opinião, não apenas herdar os silêncios do passado, como o frei Bruno Palma, Olga Savary, Horácio Costa, Miriam Alves, Sérgio Sampaio ou Jomard Muniz de Britto. Dedique parte de sua energia AO TRABALHO DOS OUTROS. É comunitário o esforço. Queridos, o ecossistema da literatura brasileira é tão mais interessante do que o zoológico que é mostrado nas páginas dos jornais.


-- Ricardo Domeneck, 27 de março de 2019.

*

POEMAS DE ALBERTO DA COSTA E SILVA

A BILHA

Assim o barro, em tuas mãos pequenas
e machucadas, ergue um voo, povo:
é um ai de terra, sem nenhum tormento,
um ai de rir e flora, de macio coito
de porcos, quase asa de garça, quase
paina de jatobá, esta moringa aberta
ao frescor que há no sol, charque, avoante,
forma de prenha mulher, quartinha, pote.

Inverso estio moldas em terra e água,
cor de palha e de mel, meu povo, sem distâncias
de serras com que sonhas junto ao cacto,
mas que entorna a noite de seu bojo.

Se o colas ao rosto, vêm as brisas
dos regatos e à boca chegam barro
e ondas de um rio que são choros de parto,
breve esperar, sentido amor, memória
da meninice em tuas mãos que moldam
casa, banco, alguidar, bilros, cancela,
anjos toscos, na fome de teu corpo.

*

RITO DE INICIAÇÃO

§ meu pai dizia as mangas que enverdeçam
   para que o sal lhes dê um novo gosto
   cortava o sol em fatias o sumo o rosto
   sujava de luar de mate ou pouca
   luz que fundeia na sombra da jaqueira
   chegava à carne do fruto à rude juba
   que arma em fera a pele do caroço

§ à margem do curral mergulho aberto
   do tamarindo meu pai dizia fazes
   o desgosto compões cada segredo
   a cresciúma os ninhos nos alpendres
   o adeus com flores os ombros dos mendigos
   a sustentar a curva porta os cegos
   a cavalo e os porcos nos açougues

§ o azul é rouco e teu meu pai dizia
   este silêncio de viração furtada
   outras monções com cheiro de goiaba

§ sabor só soturno soterrado
   dá a manga o trotar o alaúde
   me pai dizia o sol é sal e o solo
   nada cultiva em nós nem a descalça
   morte rastro leve na farinha.

*

SONETO

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde,
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sobre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sobre o vermelho poente desse jarro...

E a substância mais tímida do sonho,
nas mãos do artesão, faz de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

*
A RICARDO REIS, NO MAR DA GALILEIA

Só dizem os deuses o que logo esquecem,
mas o jogo do céu é amplo e reto,
e cada lance é um coração aberto:

nele não dorme o que se fez desperto,
o eterno é agora e em si mesmo morre,
nunca houve rumo e todo sempre é incerto.

             — Não creio, e rezo.

*

SONETO A VERA

Na relva iluminada pelos pássaros,
reclinas o teu corpo. Separada
dos dois lados da noite, quando o sol
recolhe ou desenrola as suas velas,

do touro ao meio-dia, e das fases
da lua, e do que muda e se disfarça,
e da grama e das aves que ali pastam,
respiras, te espreguiças, alinhavas

o teu ser contra o céu, enquanto passam
o chuviscar, o abrir do sol, os galgos
do verão e do inverno, as estações

da manga e do caju. E vais, deitada,
como um barco na praia, alheia ao tempo
a se bordar no bastidor da tarde.

*

A TRAVESSIA DO RIO VOLTA

concentrados e sós num ar de sumaúmas
mandiocais e córregos íamos na balsa
como quem vai para a horta como vão para o coro
meninas que louvassem a alva renda dos den
dezeiros e lavouras cruas de calor

um repouso de cana se a polpa cobrisse
de uma gordura casta essa cachaça triste
que sugamos do coco em outro dia de
lagosta e palavras algumas sobre a morte

mas agora é a magra companhia desse sujo branco
da roupa dos pobres e da lepra corrroendo
o encaixe das unhas o joelho e os lábios
mordidos num pranto de pálpebras sem espe
rança de chão sem manta e mãos de amor
para lavar o rosto de quem sozinho e rouco
e míope em nada toca

vamos num chevrolé e as longas pirogas
vão passado por nós e as folhas das mangueiras
e há quase uma recusa de beber o ar sem ser
num respirar de pranto pois tudo perdeu
essa infância sem nádegas e de umbigo herniado
(leve capim que uma boca insaciável rumina) tão pros
trada que se alimenta de um roçar com o rosto a terra
e que num gesto de cego a afinar o violino
me oferece frutas como se as colhesse
como quem recebe.

*

O AMOR AOS SESSENTA

Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.
Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos
contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda
que se fecha no espaço deste sol às estrelas
e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.



Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo a 12 de maio de 1931. É um diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e atual orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi distinguido com o Prémio Camões de 2014.

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