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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

O baú de ossos e de espantos da poesia brasileira [com poemas de Pio Vargas]

A Literatura Brasileira tem dois livros importantes com a palavra "baú" nos títulos. Um deles é o primeiro volume das memórias do mineiro Pedro Nava (1903–1984), seu Baú de ossos (1972). O outro é o volume de poemas do gaúcho Mário Quintana (1906–1994), seu Baú de espantos (1986). Minha memória invocou esses títulos hoje quando eu pensava sobre o trabalho de pesquisa para desenterrar certos autores que, por motivos vários – políticos, regionais – não alcançam atenção nacional. Somos uma República que ainda não fez jus a seu nome, seja como república em si, ou no adjetivo que a segue no nome oficial do país, federativa. 




Digo tudo isso para fazer agora meu joguinho de palavras: será decisão nossa, de críticos, editores, escritores e leitores, se a Literatura Brasileira será um baú de ossos ou de espantos. O trabalho é coletivo. Alguns poetas e críticos apreciam-se escrita de certos autores e buscam chamar a atenção dos concidadãos. Vocês me perdoem, mas eu sou extremamente sentimental com algumas dessas palavras: república, federação, concidadão. Essas coisas importam. 

E o esforço de compartilhamento se dá em vários níveis. Foi graças à publicação inicial de dois poemas de Hilda Machado (1951–2007) na revista Inimigo Rumor que meu périplo em busca de mais material levaria à publicação de 'Nuvens' em 2018 pela Editora 34. Foi graças à descoberta e atenção de Guilherme Gontijo Flores, ao ler com acuidade crítica o volume Vivenda de Maria Lúcia Alvim, que pude me unir a ele e à Relicário Edições para que todos nós agora tenhamos essa belezura que é Batendo pasto. E graças ainda a Paulo Henriques Britto, que guardara o manuscrito. E serei eternamente grato à Ciclo Contínuo Editorial  por nos trazer de volta a poesia de Paulo Colina. 

E há outras figuras tão interessantes das culturas brasileiras que mereceriam mais de nossa atenção. Porque nossas vidas seriam menos miseráveis com os poemas e contos destes... ah, a palavra de novo ... concidadãos. Não importa se os autores têm obras monumentais de 20 volumes. Um belo livro não é já uma grande contribuição à pólis? Um belo poema apenas já não é isso? 

Há os casos de poetas que são respeitados, premiados, mas estranhamente não são lidos, não comparecem nas conversas apaixonadas e bêbadas de boteco (elas também contam), nas epígrafes, nas homenagens. E nem mesmo o nascimento em estados que monopolizam a atenção nacional por vezes ajuda, bastaria pensarmos nos casos de Hilda Hilst e Roberto Piva, ignorados por tanto tempo. Ou pensem nesse caso: não é fascinante que São Paulo tenha gerado, nascidos no mesmo ano de 1931, dois poetas tão diversos quanto Augusto de Campos e Alberto da Costa e Silva, ambos vivos e prestes a completar 90 anos? Por que um intelectual do porte de Alberto da Costa e Silva, com poemas que me parecem deslumbrantes, não aparece com mais frequência em nossas conversas?




Mas há sim os problemas de desequilíbrio regional, e muito disso se dá por grandes jornais de circulação nacional se esconderem sob a égide de "jornal local", com os nomes de suas sedes estaduais ou municipais nos seus nomes, mas que então ignoram por completo as RESPONSABILIDADES REPUBLICANAS E FEDERATIVAS que incorrem no momento em que passam a ter circulação nacional.

Esta semana tive duas descobertas, uma foi fruto de partilha republicana do bem comum quando Leonardo Gandolfi chamou minha atenção para o trabalho do baiano Jônatas Conceição da Silva (1952-2009). A outra foi por esforços pessoais de pesquisa sobre a poesia produzida no Centro-Oeste, esta que talvez seja a região mais verdadeiramente ignorada do país, ao lado do Norte. E aqui chego ao motivo dessa postagem: chamar a atenção de vocês, meus queridos concidadãos, para a poesia deste jovem goiano, Pio Vargas (1964-1991). Nascido na pequena Iporá e morto com apenas 26 anos por uma overdose na também pequena Turvelândia, sua poesia ficou por aí nos baús de ossos e espantos. Nem mesmo nossa ansiedade hagiográfica por nossos meninos e meninas mortas da Poesia Brasileira o deu um público maior.

Pio Vargas (Goiás, 1964-1991)

Sua poesia foi porém editada por Carlos Willian Leite, e o poeta dá nome à biblioteca do Centro Cultural Marieta Telles Machado em Goiânia. Num artigo para a revista 'Bula', na qual há um par de outros textos sobre o goiano, C. W. Leite cita uma declaração de Paulo Leminski sobre o poeta: “Pio Vargas tem um ‘eu’ coletivo tão forte que chego a vê-lo muitos. De sua poesia consigo extrair a certeza do que digo, insistente: há uma geração recente que usa e abusa da modernidade, fazendo dela o principal elemento a interferir na criação. Este Pio Vargas me trouxe uma poesia fascinante que não se atrela a falsos modelos de invenção, mas flutua, inventiva, com os mais amplos e possíveis signos do fazer poético.”

Pio Vargas publicou os livros Anatomia do gesto (1989) e Os novelos do acaso (1991). Nos poemas que encontrei na rede e que reúno e compartilho aqui, percebo um jovem poeta de talento inegável, com belos poemas, imagens fortes, uma musicalidade potente. Se também percebo em certos momentos algo de juvenil no gosto augusto-angelical por um vocabulário científico e certas palavras talvez grandiloqüentes demais, mesmo essas se transformam em música nas mãos desse jovem bastante habilidoso.




PIO VARGAS (Goiás, 1964–1991)

DESPERTÁCULO

Es­tou pron­to
pa­ra a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do:

bo­tei vi­gia nos sen­ti­dos
e ilu­di com com­pri­mi­dos
ou­tros se­res a meu bor­do.
Aban­do­nei o ví­cio
de es­tar sem­pre
a so­le­trar ru­í­nas,
dei li­ber­da­de a meus de­ten­tos
mi­nha pres­sa di­lu­iu nos pas­sos len­tos
e ras­guei
meu ca­len­dá­rio de ro­ti­nas.

In­ver­ti a or­dem.

Já não saio por aí
a de­vo­rar com­pro­mis­sos,
to­mei pos­se no go­ver­no de mi mes­mo
e der­ro­tei os meus omis­sos.

Ven­ci a ba­ta­lhas
de ter que es­tar sem­pre por per­to,
às ve­zes voo pa­ra den­tro
do meu so­nho a céu aber­to.

Es­tou pron­to:

eu já con­cor­do
com a guer­ra que en­con­tro
quan­do acor­do.

*

OS SONS DO OFÍCIO 

É por­que re­co­lho o vá­rio
no avi­á­rio das vér­te­bras
e me há um si­lo de cé­lu­las
e me há um qua­se-aquá­rio,
que o po­e­ma se me che­ga,
es­tu­á­rio.

Que me im­por­ta
a si­na ju­gu­lar das fa­ses,
a vi­da con­ju­gal das fra­ses
e o sem­blan­te cí­ni­co
das fe­zes,
se não fa­ço po­e­mas
co­mo quem de­fen­de tes­es.

Fa­ço po­e­mas
pa­ra que pas­sem os di­as
e pas­cem os re­ba­nhos
e os oce­a­nos pas­mem
an­te o nau­frá­gio
de to­das as da­tas
no ca­len­dá­rio-la­nho.

Ou se­ja, fa­ço-os
co­mo quem vi­ce­ja
os la­ços do ar­re­mes­so
co­mo quem vis­lum­bra
si­lên­cio nos en­tu­lhos
e apren­deu a es­tru­tu­ra ide­al
pa­ra mon­tar ba­ru­lhos
sob a lín­gua mais ba­nal.

Fa­ço-os
co­mo quem lam­be oá­sis no pla­nal­to,
dei­xa­do pe­las ba­ses
de um sim­ples so­bres­sal­to.

É co­mo se o ego
cou­bes­se in­tei­ro
na de­ter­mi­na­ção de um pre­go
que me fi­xa exí­li­os sob a car­ne
mas que tam­bém acio­na
os ga­ti­lhos do alar­me.

*

SUCESSÃO

Depois que eu voltar
de dentro das molduras
apago os meus retratos
invento outras figuras

convoco os meus fantasmas
convido mil demônios
e dou posse a todos eles
no governo dos neurônios.

*

ODE ANALGÉSICA

I

a pátria é o embaixo das roupas.

é lá que dói e se desfazem
as linhas mínimas do ventre
o lacre avesso do silêncio
e o destino de selo intêmpere.

é lá o magazine de medos
onde quem sabe há calado
na caricatura de seus becos
ou no domicílio de seus fados.

II

eu não sei o que floresce
no abandono das pedras
e não me ocorre saber
que objetos compõem
as neuronias vitrines
da dor e suas glebas.

há mais de sabor
em não saber
e mais de ardor
em não urdir
o que vai pelas covas
do promontório,
o que fica de espanto
nesse alento provisório.

não me ocorre o que fenece
nestes dias rotundos.
o possível deus que me parece
é outro — a réplica do fundo.
ao milagre de ser vário,
o abismo : albergue estacionário.

*

CONCEPÇÃO TUMULAR PARA QUE NINGUÉM ALEGUE IGNORÂNCIA 

Quando eu morrer
escrevam no meu túmulo:
aqui dorme pio
que era poeta nas horas vagas.
O que distanciou de tudo
pra continuar mudo
com suas amarras

Aqui dorme alguém
que era de todos
e pertenceu a ninguém
que imaginava muito
mas só tinha um corpo
que casualmente se tem
que fazia poemas
só para esquecer os dilemas
do que era um e quis ser cem.

Pensando bem
escrevam mais:
aqui dorme pio
o que em sendo um
foi quase mil.

*

O FOGO NAS VÍSCERAS 

I

pode haver o momento
de transportar o súbito fogo
sem haver a ruptura
de gesto e culpa,
flancos do mesmo jogo.

o tédio se derrama
em todas as direções
e como flagelo
é incenso nos sentidos
ou fragmento de opções?
pode haver
o súbito fogo
em sendo mero silêncio.
O tédio é bélico:
Ogiava de alvo pênsil.

II

o que pode haver
de humano no sentimento
senão a inquietação?
todo o resto
é crochê de desejo
desenhando caminhos
na hipótese da emoção.

se o flagrante
é uma colisão de evidências
pode haver o momento
de transportar o súbito fogo
no porão de fugas pensas.

III

o fogo e o tédio
são produtos sem mídia,
salvo suas cores
pródigas e ingênuas
no painel de dores tíbias.

pode haver o momento
de palavras ajustáveis
em cada frase,

o momento de sombras
em transparente corpoquase
sem que isto denuncie
ruptura de gesto e culpa,
extremos de mesma base.

IV

cada um se mata
o suficiente
para continuar vivo.

cada um possui
a duopção de fogo e tédio,
esses alheios do alívio.

contudo,
na dor e seu compêndio,
resta saber
quem existirá depois do incêncio.

*

ANALEPSIA DO ABISMO

I

enterro vivo meu gesto.

até aqui trouxe dias e palavras
         como signos ambíguos
         débeis mapas
         argumentos evasivos
         o resumo inconcluso
do que julguei abismo
                   e superfície.

habita o âmago
no mais raso da face:
         por isso trago à tona,
         elo de sangue e aspereza,
         a pugna de meus retratos
                   atônitos.

II

mantenho obtuso meu traço.

a memória constrói
espúmeos fantasmas
com os quais divirto
o inverno de meu plasma.

esse cotidiano agrário
foi o que sobrou como futuro
o meu sangue sem calvário
regando vales no escuro.

III

interno e vasto é meu grito.

até aqui trouxe dois olhos
e a visão cíclope dos pesadelos
como quem espalhou lâmina e dilúvio
para envenenar
o próprio espelho
ou se ferir em gumes turvos.

viver é um risco
na ordem dos calendários.

por isso abrigo incerto mangue,
condomínio de alheios viventes,
para manter a humanidade mesma
nos outros eus mais diferentes.

IV

mantenho obscura entrega.
pouco importa
um punhado de vales
para o adejo da carne.

é bem outra
a personagem que me assombra:
         a dor em vestes dúbias
         no endereço noturno
         da face plúmbea.

*

ÁSPERAS ASPAS

nenhuma treva me basta
se me desaba o teto a casa
meu ventre em viagem casta
e meu voo de corpo sem asa

minhas vírgulas como degraus
a entalhar ásperas aspas
o texto-hangar de minhas naus
o nu teclado de outras harpas

o império de meus ampares
nos tantos poros térmicos
os sinais que somam seres
nos andares epidérmicos



VAGA LITÚRGICA 

o volume da chuva
é que decifra o dilúvio
como no corpo eflúvio
é âmbar a dúvida

a porta que mais vence
é a que aberta permanece
e o corpo que mais sente
é nem sempre o que adoece

.
.
.

quarta-feira, 27 de março de 2019

"Contra o desperdício de poetas", seguido de uma seleção de poemas de Alberto da Costa e Silva

O poeta mineiro Adão Ventura (1946-2004)


Nós todos amamos citar pelos ensaiozinhos ou abanar em cafeterias por aí o grande livro de Roman Jakobson, A Geração que Desperdiçou Seus Poetas (1930). E lamentamos os desperdícios do passado. Mas quantos de nós fazemos algo contra os desperdícios de hoje?

Estamos certos de não estar entre os esbanjadores, certos de que não seguimos modas ou a imprensa. E como se clama por aí contra o sistema que invisibiliza escritores por questões extraliterárias, mas em geral apenas para conquistar o seu próprio espaço ao sol. Garimpar e resgatar os mortos soterrados dá trabalho demais! O que se quer é ver os próprios espirros e cólicas alçados a grande literatura pela Folha de São Paulo, O Globo, a Piauí e o Suplemento Pernambuco.

Foi uma alegria ver Hilda Hilst e Roberto Piva virarem moda, desde que sejam lidos, pois ainda que por motivos escusos podem se tornar anticorpos poéticos no sistema imunológico da língua. Me alegrou imensamente a acolhida que teve o livro de Hilda Machado, e foi bom participar com poetas de minha geração da reapreciação do trabalho desse grande poeta que é Leonardo Fróes, ainda vivo, ainda entre nós.

Mas quando vamos gritar até começarem a ler e celebrar Henriqueta Lisboa, Maria Ângela Alvim, Lúcio Cardoso, Adão Ventura, Marly de Oliveira, Carlos Pena Filho, Stela do Patrocínio, Orlando Parolini, Laís Corrêa de Araújo, Paulo Colina, Max Martins, Mariajosé de Carvalho e Arnaldo Xavier devidamente, estes mortos soterrados? E há os vivos, os que são difíceis de fazer moda.


A poeta capixaba Marly de Oliveira (1935-2007)


Passei ontem o dia lendo um poeta que ganhou o Prêmio Camões em 2014 e mesmo assim é raramente citado: Alberto da Costa e Silva (São Paulo, 1931). Que inteligência e exuberância de linguagem! Além disso, trata-se de um intelectual de peso, o autor de trabalhos seminais sobre a relação entre o Brasil e a África. Não estou acusando. Eu próprio só comecei a lê-lo com mais atenção no ano passado.



E há outros vivos dos quais precisamos formar nossa própria opinião, não apenas herdar os silêncios do passado, como o frei Bruno Palma, Olga Savary, Horácio Costa, Miriam Alves, Sérgio Sampaio ou Jomard Muniz de Britto. Dedique parte de sua energia AO TRABALHO DOS OUTROS. É comunitário o esforço. Queridos, o ecossistema da literatura brasileira é tão mais interessante do que o zoológico que é mostrado nas páginas dos jornais.


-- Ricardo Domeneck, 27 de março de 2019.

*

POEMAS DE ALBERTO DA COSTA E SILVA

A BILHA

Assim o barro, em tuas mãos pequenas
e machucadas, ergue um voo, povo:
é um ai de terra, sem nenhum tormento,
um ai de rir e flora, de macio coito
de porcos, quase asa de garça, quase
paina de jatobá, esta moringa aberta
ao frescor que há no sol, charque, avoante,
forma de prenha mulher, quartinha, pote.

Inverso estio moldas em terra e água,
cor de palha e de mel, meu povo, sem distâncias
de serras com que sonhas junto ao cacto,
mas que entorna a noite de seu bojo.

Se o colas ao rosto, vêm as brisas
dos regatos e à boca chegam barro
e ondas de um rio que são choros de parto,
breve esperar, sentido amor, memória
da meninice em tuas mãos que moldam
casa, banco, alguidar, bilros, cancela,
anjos toscos, na fome de teu corpo.

*

RITO DE INICIAÇÃO

§ meu pai dizia as mangas que enverdeçam
   para que o sal lhes dê um novo gosto
   cortava o sol em fatias o sumo o rosto
   sujava de luar de mate ou pouca
   luz que fundeia na sombra da jaqueira
   chegava à carne do fruto à rude juba
   que arma em fera a pele do caroço

§ à margem do curral mergulho aberto
   do tamarindo meu pai dizia fazes
   o desgosto compões cada segredo
   a cresciúma os ninhos nos alpendres
   o adeus com flores os ombros dos mendigos
   a sustentar a curva porta os cegos
   a cavalo e os porcos nos açougues

§ o azul é rouco e teu meu pai dizia
   este silêncio de viração furtada
   outras monções com cheiro de goiaba

§ sabor só soturno soterrado
   dá a manga o trotar o alaúde
   me pai dizia o sol é sal e o solo
   nada cultiva em nós nem a descalça
   morte rastro leve na farinha.

*

SONETO

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde,
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sobre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sobre o vermelho poente desse jarro...

E a substância mais tímida do sonho,
nas mãos do artesão, faz de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

*
A RICARDO REIS, NO MAR DA GALILEIA

Só dizem os deuses o que logo esquecem,
mas o jogo do céu é amplo e reto,
e cada lance é um coração aberto:

nele não dorme o que se fez desperto,
o eterno é agora e em si mesmo morre,
nunca houve rumo e todo sempre é incerto.

             — Não creio, e rezo.

*

SONETO A VERA

Na relva iluminada pelos pássaros,
reclinas o teu corpo. Separada
dos dois lados da noite, quando o sol
recolhe ou desenrola as suas velas,

do touro ao meio-dia, e das fases
da lua, e do que muda e se disfarça,
e da grama e das aves que ali pastam,
respiras, te espreguiças, alinhavas

o teu ser contra o céu, enquanto passam
o chuviscar, o abrir do sol, os galgos
do verão e do inverno, as estações

da manga e do caju. E vais, deitada,
como um barco na praia, alheia ao tempo
a se bordar no bastidor da tarde.

*

A TRAVESSIA DO RIO VOLTA

concentrados e sós num ar de sumaúmas
mandiocais e córregos íamos na balsa
como quem vai para a horta como vão para o coro
meninas que louvassem a alva renda dos den
dezeiros e lavouras cruas de calor

um repouso de cana se a polpa cobrisse
de uma gordura casta essa cachaça triste
que sugamos do coco em outro dia de
lagosta e palavras algumas sobre a morte

mas agora é a magra companhia desse sujo branco
da roupa dos pobres e da lepra corrroendo
o encaixe das unhas o joelho e os lábios
mordidos num pranto de pálpebras sem espe
rança de chão sem manta e mãos de amor
para lavar o rosto de quem sozinho e rouco
e míope em nada toca

vamos num chevrolé e as longas pirogas
vão passado por nós e as folhas das mangueiras
e há quase uma recusa de beber o ar sem ser
num respirar de pranto pois tudo perdeu
essa infância sem nádegas e de umbigo herniado
(leve capim que uma boca insaciável rumina) tão pros
trada que se alimenta de um roçar com o rosto a terra
e que num gesto de cego a afinar o violino
me oferece frutas como se as colhesse
como quem recebe.

*

O AMOR AOS SESSENTA

Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.
Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos
contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda
que se fecha no espaço deste sol às estrelas
e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.



Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo a 12 de maio de 1931. É um diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e atual orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi distinguido com o Prémio Camões de 2014.

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