Mostrando postagens com marcador poesia brasileira. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador poesia brasileira. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 27 de março de 2019

"Contra o desperdício de poetas", seguido de uma seleção de poemas de Alberto da Costa e Silva

O poeta mineiro Adão Ventura (1946-2004)


Nós todos amamos citar pelos ensaiozinhos ou abanar em cafeterias por aí o grande livro de Roman Jakobson, A Geração que Desperdiçou Seus Poetas (1930). E lamentamos os desperdícios do passado. Mas quantos de nós fazemos algo contra os desperdícios de hoje?

Estamos certos de não estar entre os esbanjadores, certos de que não seguimos modas ou a imprensa. E como se clama por aí contra o sistema que invisibiliza escritores por questões extraliterárias, mas em geral apenas para conquistar o seu próprio espaço ao sol. Garimpar e resgatar os mortos soterrados dá trabalho demais! O que se quer é ver os próprios espirros e cólicas alçados a grande literatura pela Folha de São Paulo, O Globo, a Piauí e o Suplemento Pernambuco.

Foi uma alegria ver Hilda Hilst e Roberto Piva virarem moda, desde que sejam lidos, pois ainda que por motivos escusos podem se tornar anticorpos poéticos no sistema imunológico da língua. Me alegrou imensamente a acolhida que teve o livro de Hilda Machado, e foi bom participar com poetas de minha geração da reapreciação do trabalho desse grande poeta que é Leonardo Fróes, ainda vivo, ainda entre nós.

Mas quando vamos gritar até começarem a ler e celebrar Henriqueta Lisboa, Maria Ângela Alvim, Lúcio Cardoso, Adão Ventura, Marly de Oliveira, Carlos Pena Filho, Stela do Patrocínio, Orlando Parolini, Laís Corrêa de Araújo, Paulo Colina, Max Martins, Mariajosé de Carvalho e Arnaldo Xavier devidamente, estes mortos soterrados? E há os vivos, os que são difíceis de fazer moda.


A poeta capixaba Marly de Oliveira (1935-2007)


Passei ontem o dia lendo um poeta que ganhou o Prêmio Camões em 2014 e mesmo assim é raramente citado: Alberto da Costa e Silva (São Paulo, 1931). Que inteligência e exuberância de linguagem! Além disso, trata-se de um intelectual de peso, o autor de trabalhos seminais sobre a relação entre o Brasil e a África. Não estou acusando. Eu próprio só comecei a lê-lo com mais atenção no ano passado.



E há outros vivos dos quais precisamos formar nossa própria opinião, não apenas herdar os silêncios do passado, como o frei Bruno Palma, Olga Savary, Horácio Costa, Miriam Alves, Sérgio Sampaio ou Jomard Muniz de Britto. Dedique parte de sua energia AO TRABALHO DOS OUTROS. É comunitário o esforço. Queridos, o ecossistema da literatura brasileira é tão mais interessante do que o zoológico que é mostrado nas páginas dos jornais.


-- Ricardo Domeneck, 27 de março de 2019.

*

POEMAS DE ALBERTO DA COSTA E SILVA

A BILHA

Assim o barro, em tuas mãos pequenas
e machucadas, ergue um voo, povo:
é um ai de terra, sem nenhum tormento,
um ai de rir e flora, de macio coito
de porcos, quase asa de garça, quase
paina de jatobá, esta moringa aberta
ao frescor que há no sol, charque, avoante,
forma de prenha mulher, quartinha, pote.

Inverso estio moldas em terra e água,
cor de palha e de mel, meu povo, sem distâncias
de serras com que sonhas junto ao cacto,
mas que entorna a noite de seu bojo.

Se o colas ao rosto, vêm as brisas
dos regatos e à boca chegam barro
e ondas de um rio que são choros de parto,
breve esperar, sentido amor, memória
da meninice em tuas mãos que moldam
casa, banco, alguidar, bilros, cancela,
anjos toscos, na fome de teu corpo.

*

RITO DE INICIAÇÃO

§ meu pai dizia as mangas que enverdeçam
   para que o sal lhes dê um novo gosto
   cortava o sol em fatias o sumo o rosto
   sujava de luar de mate ou pouca
   luz que fundeia na sombra da jaqueira
   chegava à carne do fruto à rude juba
   que arma em fera a pele do caroço

§ à margem do curral mergulho aberto
   do tamarindo meu pai dizia fazes
   o desgosto compões cada segredo
   a cresciúma os ninhos nos alpendres
   o adeus com flores os ombros dos mendigos
   a sustentar a curva porta os cegos
   a cavalo e os porcos nos açougues

§ o azul é rouco e teu meu pai dizia
   este silêncio de viração furtada
   outras monções com cheiro de goiaba

§ sabor só soturno soterrado
   dá a manga o trotar o alaúde
   me pai dizia o sol é sal e o solo
   nada cultiva em nós nem a descalça
   morte rastro leve na farinha.

*

SONETO

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde,
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sobre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sobre o vermelho poente desse jarro...

E a substância mais tímida do sonho,
nas mãos do artesão, faz de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

*
A RICARDO REIS, NO MAR DA GALILEIA

Só dizem os deuses o que logo esquecem,
mas o jogo do céu é amplo e reto,
e cada lance é um coração aberto:

nele não dorme o que se fez desperto,
o eterno é agora e em si mesmo morre,
nunca houve rumo e todo sempre é incerto.

             — Não creio, e rezo.

*

SONETO A VERA

Na relva iluminada pelos pássaros,
reclinas o teu corpo. Separada
dos dois lados da noite, quando o sol
recolhe ou desenrola as suas velas,

do touro ao meio-dia, e das fases
da lua, e do que muda e se disfarça,
e da grama e das aves que ali pastam,
respiras, te espreguiças, alinhavas

o teu ser contra o céu, enquanto passam
o chuviscar, o abrir do sol, os galgos
do verão e do inverno, as estações

da manga e do caju. E vais, deitada,
como um barco na praia, alheia ao tempo
a se bordar no bastidor da tarde.

*

A TRAVESSIA DO RIO VOLTA

concentrados e sós num ar de sumaúmas
mandiocais e córregos íamos na balsa
como quem vai para a horta como vão para o coro
meninas que louvassem a alva renda dos den
dezeiros e lavouras cruas de calor

um repouso de cana se a polpa cobrisse
de uma gordura casta essa cachaça triste
que sugamos do coco em outro dia de
lagosta e palavras algumas sobre a morte

mas agora é a magra companhia desse sujo branco
da roupa dos pobres e da lepra corrroendo
o encaixe das unhas o joelho e os lábios
mordidos num pranto de pálpebras sem espe
rança de chão sem manta e mãos de amor
para lavar o rosto de quem sozinho e rouco
e míope em nada toca

vamos num chevrolé e as longas pirogas
vão passado por nós e as folhas das mangueiras
e há quase uma recusa de beber o ar sem ser
num respirar de pranto pois tudo perdeu
essa infância sem nádegas e de umbigo herniado
(leve capim que uma boca insaciável rumina) tão pros
trada que se alimenta de um roçar com o rosto a terra
e que num gesto de cego a afinar o violino
me oferece frutas como se as colhesse
como quem recebe.

*

O AMOR AOS SESSENTA

Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.
Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos remos
contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda
que se fecha no espaço deste sol às estrelas
e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.



Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo a 12 de maio de 1931. É um diplomata, poeta, ensaísta, memorialista e historiador brasileiro, membro da Academia Brasileira de Letras e atual orador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Foi distinguido com o Prémio Camões de 2014.

.
.
.

sábado, 31 de janeiro de 2015

Dois poemas de Ítalo Diblasi e sua leitura de um poema de Roberto Piva para o "Empreste sua voz a um poeta morto"


Conheci Ítalo no ano passado, em minha última passagem pelo Rio de Janeiro. Passamos uma tarde e noite percorrendo livrarias do centro da cidade, e caminhando pelo Jardim Botânico, onde nos embebedamos. Já publiquei na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co. e espalhei pelas redes sociais este seu ótimo poema satírico, que reposto abaixo, agora aqui, ao lado de outro do seu livro de estreia, no qual vem trabalhando. O vídeo é de sua participação no projeto Empreste sua voz a um poeta morto.

Informações bioblio: Ítalo Diblasi é um poeta brasileiro, inédito em livro, nascido no Rio de Janeiro em 1988. Prepara no momento sua primeira coletânea, que será intitulada O Limite da Navalha.

DOIS POEMAS DE ÍTALO DIBLASI

Gaia Ciência 

é proibido
cuspir
no prato

é proibido
dormir
no asfalto

é proibido
trepar
no mato

é permitido
açoitar
as massas

é permitido
erigir
as farsas

é permitido
morrer
às traças

paremos, portanto, de fingir
que Nietzsche estava errado
quando enlouqueceu às portas
de explicar esse caralho


§

A urgência

No último vagão
de um noturno qualquer
rumo a lugar nenhum
o indomável riso
de uma puta alucinada
que quer saber
o que diabos escrevo
a uma hora dessas
e pede lugar num poema
que a mantenha viva
até a semana que vem
e eu estou com ela
para uma última valsa
antes do fim

§

Diblasi empresta a Piva sua voz no projeto da Modo de Usar & Co.

Ítalo Diblasi lê um poema do livro Ciclones (1997), de Roberto Piva.

[Este paraíso é assim]
Roberto Piva

Este paraíso é assim:
repleto de raças respiratórias.
Nuvens, periquitos, uvas negras
à beira do deboche.

Este paraíso é assim:
relâmpagos & doces de leite,
punhal escapando da bainha
de vértebras.
Menino-acauã dançando
ao sol estrangeiro.

Este paraíso é assim:
folhas de mamona, submarinos
viajando no próprio sangue.
Leveza. Flores frenéticas.
Batuque sussurrando:
também eu
atravessei o inferno.

.
.
.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Glória nas alturas pelos sebos do Rio de Janeiro! Vejam o que encontrei! Stela do Patrocínio!




Ainda era Rio de Janeiro, Botafogo
Eu me confundi comendo pão
Eu perdi o óculos
Ele ficou com o óculos
Passou a língua no óculos para tratar o óculos com a língua
Ela na vigilância do pão sem poder ter o pão
Essa troca de sabedoria de ideia de esperteza
Dia tarde noite janeiro fevereiro dezembro
Fico pastando no pasto à vontade
Um homem chamado cavalo é o meu nome
O bom pastor dá a vida pelas ovelhas

Stela do Patrocínio, in Reino dos bichos e outros animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2001). Organização Viviane Mosé.

.
.
.



quarta-feira, 10 de julho de 2013

Um poema de Rubens Akira Kuana (Videira, Santa Catarina, 1992).




acidentes domésticos envolvendo toalha
Rubens Akira Kuana

o mistério ainda é maior
quando a descamação completa
eu me fecho

a porta da lavanderia
 completa
bato três vezes mais

fica mais fácil te explicar
o porquê das cortinas
estarem todas no chão

é que eu esqueci

o salto dos sapatos
os noticiários esportivos
argumentavam
Borges era bulímico e não sabia
minha genealogia
o remédio

são as opções
quando eu jogo um pano de prato em cima

quando eu jogo um pano de prato
o mistério ainda é maior

em cima

da minha última carta de amor
restou uma passagem não-autobiográfica
é a primeira que eu levaria
caso alguém consertasse o gelo
e aceitasse o troco
com amor até

logo muito
obrigado sinceramente
por favor

.
.
.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Um poema de Solano Trindade (1908 - 1974).






Olorum Ekê

Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu sou poeta do povo
Olorum Ekê

A minha bandeira
É de cor de sangue
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Da cor da revolução
Olorum Ekê

Meus avós foram escravos
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Eu ainda escravo sou
Olorum Ekê
Olorum Ekê
Os meus filhos não serão
Olorum Ekê
Olorum Ekê



Solano Trindade (1908 - 1974)

.
.
.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Recomendação: a antologia "Poesia (Im)Popular Brasileira". E dois poemas de Stela do Patrocínio.



"Poesia (Im)PopularBrasileira é uma antologia que reúne poemas de alguns importantes poetas brasileiros menos conhecidos do público, ou que, por maior ou menor tempo, ficaram ou estão deslocados em relação aos cânones vigentes, mas que, ao mesmo tempo, foram ou são influenciados por elementos da cultura e da fala populares. São eles: Aldo Fortes, Edgard Braga, Gregório de Matos, Joaquim Cardozo, Max Martins, Omar Khouri, Pagu, Qorpo-Santo, Sapateiro Silva, Sebastião Nunes, Sebastião Uchoa Leite, Sousândrade, Stela do Patrocínio e Torquato Neto. O livro está organizado da seguinte forma: cada um dos poetas é apresentado por um autor convidado, o qual também selecionou uma pequena antologia de seus poemas."

Discuti alguns dos autores incluídos na antologia na Modo de Usar & Co.:


Patrícia Galvão
Joaquim Cardozo
Max Martins
o enormíssimo Sapateiro Silva
Sebastião Nunes
Torquato Neto

Trata-se de uma iniciativa excepcional. É um início e dos bons. Os esforços poderiam continuar, pensando aqui em outros autores, como Luiz Gama, Pedro Kilkerry, Hilda Machado, Orlando Parolini, Maria Ângela Alvim, Raul Fiker, Henriqueta Lisboa – essa representante maior de uma verdadeira poésie pure brasileira que ainda espera o respeito de grande modernista que foi –, ou ainda Francisca Júlia, Marcelo Gama, Isabel Câmara, Edimilson de Almeida Pereira e outros.

Omar Khouri está entre os poetas convidados pela curadoria da Modo de Usar & Co. para o Festival Internacional de Artes de Tiradentes este ano, e terá poemas inéditos no quarto número impresso da revista, a ser lançado durante o festival, entre 12 e 22 de setembro, em Tiradentes, Minas Gerais.

Mas esta antologia me parece a maior contribuição antológica neste ano de tantas antologias, justamente por seu caráter de intervenção no cânone, quesito em que algumas outras antologias têm falhado justamente por sua ânsia canônica. Voltarei a esta questão em breve.

A inclusão de Stela do Patrocínio é uma contribuição excelente, por exemplo, para chacoalhar e embaralhar nosso cânone engessado.




Stela do Patrocínio nasceu em 1941, e viveu, desde 1962, internada na Colônia Juliano Moreira, assim como Arthur Bispo do Rosário (1911 - 1989). Sua fala poética chegou a nós transcrita de fitas cassetes por Viviane Mosé, que organizou essa textualidade no volume Reino dos bichos e dos animais é o meu nome (Rio de Janeiro: Azougue, 2002).



O trabalho de Stela do Patrocínio, em sua fala poética, chamou a atenção de vários artistas, como Georgette Fadel, Juliana Amaral e Lincoln Antonio, que encenaram com seus textos o espetáculo "Entrevista com Stela do Patrocínio" (São Paulo, 2005), e o documentarista Márcio de Andrade, que preparou o documentário Stela do Patrocínio - A mulher que falava coisas. Num país como o Brasil, machista e racista, não é de admirar que a poesia de uma mulher negra e tida como louca não tenha tido mais atenção, com sua textualiade que por vezes nos leva a uma forma de logopeia pelo viés da loucura.

Não sou eu que gosto de nascer
Eles é que me botam para nascer todo dia
E sempre que eu morro me ressuscitam
Me encarnam me desencarnam me reencarnam
Me formam em menos de um segundo
Se eu sumir desaparecer eles me procuram onde eu estiver
Pra estar olhando pro gás pras paredes pro teto
Ou pra cabeça deles e pro corpo deles

(Stela do Patrocínio, em diagramação de sua fala por Viviane Mosé)

Suas enumerações e anáforas por vezes nos remetem à poesia urgente de Patrícia Galvão. Nos Estados Unidos, soube-se valorizar a contribuição de uma poeta como Hannah Weiner (1928 - 1997), que fez de sua condição psíquica a forma do seu pensar. No segundo número impresso da Modo de Usar & Co., incluímos uma tradução para poema da norte-americana.


Texto de Hannah Weiner (1928 - 1997)


Lembro-me aqui da asserção de Sérgio Buarque de Holanda sobre a poesia de Dante Milano, ao dizer que "seu pensamento é de fato sua forma". No caso de poetas como Stela do Patrocínio ou Hannah Weiner, seu pensamento é toda a sua forma.

Imagino que Viviane Mosé tenha se guiado pela marcação oral dos sintagmas que se escandiam da boca da poeta Stela do Patrocínio para marcar suas quebras-de-linha, o que em certos textos nos remete à poética de Murilo Mendes.



É dito: pelo chão você não pode ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque lugar da cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo

(Stela do Patrocínio, em diagramação de sua fala por Viviane Mosé)


.
.
.


sexta-feira, 13 de julho de 2012

Dois poemas recentes de Angélica Freitas


mijo
(um poema urgente)


1.

uma mulher não deve mijar
deve fazer xixi

2.

uma mulher faz xixi
não mija
mas em banheiros públicos
a mulher acaba que mija

3.

uma mulher faz xixi
porque é mais sexy
mas quando é incontinente
a questão se torna irrelevante

4.

conheço uma mulher
que mijava
mas dizia por aí
que fazia xixi

5.

mijei no balde
foi libertador
mijei no balde
dentro do elevador
mijei com vontade
sim senhor
hoje
sou outra mulher

6.

xixi, mijo, urina: como queira chamar
se tiver nojo e a água acabar
se quiser viver vai ter que tomar
mijo. se quiser pode dizer
xixi ou guaraná

mas continua sendo mijo

7.

nisso tudo eu pensava
a caminho do banheiro
após ter lido uma frase
do marcelo rubens paiva
será que ele mija, o marcelo?
com certeza deve mijar
mirando as estrelas, será?
fazendo desenhos no ar?

(quem se importa?
eu não me importo)


8.

outra questão a se especular
quando acontece dormindo
é xixi ou mijo?
dependerá do fluxo?
da quantidade?
qual o critério?
outra coisa que direi
como aviso ou comentário:
mija-se desperto ou dormindo
peidar só se pode acordado


março de 2011
provavelmente


§

Micro-ondas

explicar o brasil a um extraterrestre:
tua cara numa bandeira. te saberiam líder
e te dariam cabo: parte suja
da conquista.
mas já foi, de outra maneira: vista aérea
da amazônia, vinte e tantas
hidrelétricas
pros teus ovos fritos no micro-ondas.
e te dariam cabo: parte certa
da conquista.
e se vieram mesmo
pra conhecer as cataratas?
ou pra aprender com a nata
como se faz uma democracia?
as naves tapam o céu completamente.
todos os escritórios
e todas as lojas de comidas rápidas
decretam fim de expediente.
baratas e ratos
fugiram antes.
é natal, carnaval, páscoa
nossa senhora aparecida e juízo final
tudo ao mesmo tempo.
amantes se comem pela última vez.
caixas eletrônicos vomitam a seco.
o supermercado era um cemitério!
os shoppings, os engarrafamentos!
explicar o casamento igualitário
a uma iguana, explicar
alianças políticas a um gato, explicar
mudanças climáticas
a uma tartaruga de aquário.
já está. agora espera.
toma um activia.
mora na filosofia. imagina!
num país tropical. péssimo!
não rio mais. trágico!
piores que gafanhotos
suas maravilhas hidrelétricas serão
vistas, em chamas, de sírius:
“o meu país era uma pamonha
que um alien esfomeado
pôs no micro-ondas.”
queime-se.
é um epitáfio possível.

Angélica Freitas, 2012. Publicado originalmente no blogue da Cosac Naify. A editora paulistana lançará, no segundo semestre, o segundo livro da poeta e coeditora da Modo de Usar & Co., intitulado um útero é do tamanho de um punho.


.
.
.


quinta-feira, 14 de junho de 2012

Da "Janela do caos", de Murilo Mendes

O pequeno ensaio abaixo foi originalmente publicado na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., em novembro de 2011. Há tempos queria reproduzir estas linhas de pensamento sobre O Mestre aqui. Aos que não o haviam visto e a quem mais possa interessar.


Da "Janela do caos", de Murilo Mendes




O mestre Murilo Mendes (1901 - 1975 e então a eternidade)


Publicado originalmente em Poesia Liberdade (1947), lançado na França já em 1949 em um volume com seis litografias de Francis Picabia e traduzido para o italiano por ninguém menos que Giuseppe Ungaretti, "Janela do caos" é um dos poemas imprescindíveis da poesia brasileira e em língua portuguesa, ainda que tenha encontrado acolhida parca no cânone, na bibliografia crítica e nas listagens dos gigantes, cujas vagas são em geral ocupadas por outros textos muito merecedores do espaço, como "A Máquina do Mundo" de Drummond, "Uma Faca Só Lâmina" de Cabral, ou, em casos raros, o "Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão" de Oswald de Andrade, talvez o poema que mais se lhe assemelhe em escopo, escolhas e contexto histórico. É claro que críticos muito bons se ocuparam dele e de seu autor, como Murilo Marcondes de Moura no excelente Murilo Mendes: a poesia como totalidade (São Paulo: Edusp, 1995). Vale também lembrar, entre outros, o livro de Júlio Castañon Guimarães, Territórios/Conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo Mendes (Rio de Janeiro: Imago, 1993). Mas a importância deste texto pediria muito mais festança crítica e tentativas de emulação pupilar.

Em termos de fanopeia, talvez nenhum poeta brasileiro se compare a Murilo Mendes, maestria reconhecida por João Cabral de Melo Neto, que declarou haver aprendido com o mestre de Juiz de Fora a sempre dar precedência à imagem sobre a ideia (cito de memória). Em língua portuguesa, encontramos tamanha ousadia metafórica em poucos poetas, como Fernando Pessoa e Herberto Helder. Mas, a meu ver, tal uso da fanopeia como instância da hierofania ocorre em poucos poetas espalhados pela modernidade ocidental. O tipo de beleza que sinto em versos como "O céu cai das pombas. / Ecos de uma banda de música / Voam da casa dos expostos" ou aquela quinta parte, em que o mestre Murilo Mendes diz-nos que "Nenhum som de flauta, / Nem mesmo um templo grego / Sobre colina azul / Decidiria o gesto recuperador. / Fome, litoral sem coros, / Duro parto da morte. / A terra abre-se em sangue, / Abandona o branco Abel / Oculto de Deus", faz-me pensar na potência imagética de certos versos do Pessoa do "coração como balde despejado" ou, ousaria dizer, em momentos em que a fanopeia também manifesta-se como instância de hierofania no Gerard Manley Hopkins de "The Wreck of the Deutschland", como "I am soft sift / In an hourglass—at the wall / Fast, but mined with a motion, a drift, / And it crowds and it combs to the fall; / I steady as a water in a well, to a poise, to a pane", mesmo que eu esteja ciente que Hopkins talvez seja um dos mestres insuperados (também Pessoa, em menor medida) da arte de conjugar, em equilíbrio quase sempre perfeito, fanopeia, melopeia e logopeia, quando Murilo Mendes foi em geral mestre supremo daquela primeira.


Sintaticamente, não consigo pensar em uso melhor e mais necessário do hipérbato que naquela última parte, a décima primeira, em que este assume caráter praticamente isomórfico, para usar abusadamente uma expressão cara a Augusto de Campos, que desempenha (como uma performance) a ideia-sensação de ascensão transcendente, ao deixar para o último verso aquele "Subindo vão", ao mesmo tempo que, de maneira gráfica, digamos, cria uma espécie de embate entre ascensão e queda ao fazer dele o ulterior e último dos versos. Há aqui uma relação interessante a ser pensada sobre os efeitos vocais e auditivos do poema quando é falado/ouvido e seus efeitos visuais quando é lido. Não seria impossível também pensar no verso final, a partir da quebra-de-linha, como uma espécie de sínquise a fazer de "vão" não um verbo, mas adjetivo, sem concordância direta com as linhas anteriores, doando certa desesperança ao poema não conhecêssemos a fé de seu autor.


Talvez mais condizente com o pensamento de Murilo Mendes seria a sugestão do poeta gaúcho Marcus Fabiano, em correspondência particular sobre esta possibilidade, a de ler "vão" nem como verbo nem como adjetivo, mas como substantivo, criando a imagem de ascensão por aquele "vão azul" que nos pareceria vazio apenas porque nós, segundo um verso do poema, "só vemos o céu pelo avesso". Pois, quase no extremo oposto de um poeta como Wallace Stevens, que escreveu que "Poetry / Exceeding music must take the place / Of empty heaven and its hymns, / Ourselves in poetry must take their place", Murilo Mendes não cria vazio o céu nem imaginaria que nós pudéssemos substituir o sagrado com a poesia, especialmente não colocando esta acima da música, já que M.M. era melomaníaco notório.

Estas possíveis leituras do último verso de "Janela do caos", de certa forma (trata-se aqui de sensação minha), talvez evoquem a sensibilidade e imagética mística anterior de poetas como Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, poetas que parecem presidir ou ao menos prenunciar a poesia mística brasileira moderna, a de Murilo Mendes e de seus excelentes companheiros Jorge de Lima, Cecília Meireles, Vinícius de Moraes (da primeira fase) e Henriqueta Lisboa. Entre os poetas do pós-guerra, poderíamos mencionar Hilda Hilst e Leonardo Fróes, todos estes, ao mesmo tempo, poetas muito distintos entre si.

Outro aspecto que seria importante discutir neste poema é a relação entre linguagem metafórica e linguagem metonímica em sua textualidade, pois Murilo Mendes mescla-as de forma inteligentíssima, apontando para advertências do próprio Jakobson sobre o perigo de estabelecermos fronteiras demarcadas demais entre as duas, assim como este poema é uma lição incontornável sobre o equívoco de certos poetas e críticos contemporâneos, que insistem em crer que a função poética da linguagem cancela as outras funções, como a referencial, quando nada disso pode ser comprovado nos grandes poemas de todos os tempos. A linguagem poética parece operar e funcionar, em seu material, forma, função e contexto, em "Janela do caos" e em tanta grande poesia, na fronteira entre transparência e não-transparência do signo, como insisto com frequência.

Nestes nossos tempos de equívoco crítico desastrado que busca equivaler como se sinônimos, de forma confusa e desengonçada, conceitos como "pós-utópico", "trans-histórico" e "sincrônico", Murilo Mendes retorna como mestre supremo e indispensável. Pois é importante dizer que o "surreal" em Murilo Mendes talvez se manifeste com força real de escrita automática apenas em um livro como As Metamorfoses (1944), como Murilo Marcondes de Moura já argumentou, já que M.M. parece ter usado o surrealismo apenas para educar-se em sua futura maestria do que já foi chamado de "metáfora dissonante" e para a própria conjunção entre linguagem metafórica e metonímica que parece operar em um poema como "Janela do caos". Há pouquíssimo de "automático" na escrita do mestre mineiro. Um poema como "Janela do caos" apresenta-se consciente em cada filigrana de sua textualidade, atento à conjugação do temporal, secular e histórico como campos de ação do sagrado, daí o caráter hierofânico de sua fanopeia. Pois se ele está ligado, sim, a esta que foi uma das vanguardas mais utópicas do século XX, o surrealismo de Breton, Picabia e Éluard, entre outros, a poesia de Murilo Mendes, que foi chamado de "conciliador de contrários" por Manuel Bandeira, sempre demonstrou a consciência de que a defesa do utópico (que se manifesta em M.M. no bojo de sua crença inabalável na parúsia) precisa estar unida a um ataque ao distópico, pois ele sabia bem que a humanidade balança-se, em pêndulo, entre distopia e sua antesala.

Num momento em que liberdades civis estão claramente ameaçadas tanto em São Paulo como em São Petersburgo; com sangue jorrando no Egito e outros países árabes; prisioneiros políticos em prisões como Guantânamo e Guanajay; partidos de extrema direita vencendo eleições em países europeus e expulsão de estrangeiros de países como a França; sem mencionar as matanças por questões étnicas que nunca cessam, eu, pessoalmente, retorno uma vez mais a mestres como o Murilo Mendes de "Janela do caos" e o Oswald de Andrade de "Cântico dos cânticos para flauta e violão", estes brasileiros que sabiam que a poesia lírica sai e soa alienada tão-só dos e para os que têm panfletos inúteis ou cartões de crédito nas cavidades onde deveriam residir seus miocárdios e cérebros.


--- Ricardo Domeneck


§


O POEMA DO MESTRE MURILO MENDES


Janela do caos


1


Tudo se passa
Em Egitos de corredores aéreos
Em galerias sem lâmpadas
À espera de que Alguém
Desfira o violoncelo
- Ou teu coração?
Azul de guerra.


2


Telefonam embrulhos,
Telefonam lamentos,
Inúteis encontros,
Bocejos e remorsos.
Ah! Quem telefonaria o consolo
O puro orvalho
E a carruagem de cristal.


3


Tu não carregaste pianos
Nem carregaste pedras
Mas na tua alma subsiste
- Ninguém se recorda
E as praias antecedentes ouviram -
O canto dos carregadores de pianos,
O canto dos carregadores de pedras.



4


O céu cai das pombas.
Ecos de uma banda de música
Voam da casa dos expostos.
Não serás antepassado
Porque não tiveste filhos:
Sempre serás futuro para os poetas.
Ao longe o mar reduzido
Balindo inocente.


5


Harmonia do terror
Quando a alma destrói o perdão
E o ciclo das flores se fecha
No particular e no geral:
Nenhum som de flauta,
Nem mesmo um templo grego
Sobre colina azul
Decidiria o gesto recuperador.
Fome, litoral sem coros,
Duro parto da morte.
A terra abre-se em sangue,
Abandona o branco Abel
Oculto de Deus.


6


A infância vem da eternidade.
Depois só a morte magnífica
- Destruição da mordaça:
E talvez já a tivesses entrevisto
Quando brincavas com o pião
Ou quando desmontaste o besouro.
Entre duas eternidades
Balançam-se espantosas
Fome de amor e a música:
Rude doçura,
Última passagem livre.
Só vemos o céu pelo avesso.


7


Cai das sombras das pirâmides
Este desejo de obscuridade.
Enigma, inocência bárbara,
Pássaros galopando elementos
Do fundo céu
Irrompem nuvens eqüestres.
Onde estão os braços comunicantes
E os pára-quedistas da justiça?
Vultos encouraçados presidem
À sabotagem das harpas.


8


Que esperam todos?
O vento dos crimes noturnos
Destrói augustas colheitas,
Águas ásperas bravias
Fertilizam os cemitérios.
As mães despejam do ventre
Os fantasmas de outra guerra.
Nenhum sinal de aliança
Sobre a mesa aniquilada.
Ondas de púrpura,
Levantai-vos do homem.


9


Penacho da alma,
Antiga tradição futura:
?Se a alma não tem penacho
Resiste ao Destruidor?


10


A velocidade se opõe
À nudez essencial.
Para merecer o rompimento dos selos
É preciso trabalhar a coroa de espinhos.
Senão te abandonam por aí,
Sozinho, com os cadáveres de teus livros.



11


Pêndulo que marcas o compasso
Do desengano e solidão,
Cede o lugar aos tubos do órgão soberano
Que ultrapassa o tempo:
Pulsação da humanidade
Que desde a origem até o fim
Procura entre tédios e lágrimas.
Pela carne miserável,
Entre colares de sangue,
Entre incertezas e abismos,
Entre fadiga e prazer,
A bem-aventurança.
Além dos mares, além dos ares,
Desde as origens até o fim,
Além das lutas, embaladores,
Coros serenos de vozes mistas,
De funda esperança e branca harmonia
Subindo vão.



Murilo Mendes, Poesia Completa e Prosa, Nova Aguilar, 1994.


.
.
.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Alguns poemas brasileiros: "- você falou honey bunny, não falou?", de Érica Zíngano

Érica Zíngano

Encerro hoje a série de pequenas postagens sobre os poetas brasileiros convidados por minha curadoria para o Festival de Poesia de Berlim. Postei aqui poemas de Horácio Costa, Jussara Salazar, Ricardo Aleixo, Marcos Siscar e Dirceu Villa. Nesta postagem, um belo poema de Érica Zíngano, "- você falou honey bunny, não falou?", publicado originalmente no terceiro número impresso da Modo de Usar & Co. (Rio de Janeiro: Berinjela, 2011).

Érica Zíngano nasceu em Fortaleza, no Ceará, em 1980. Publicou com as poetas Roberta Ferraz e Renata Huber a coletânea de autoria coletiva Fio, Fenda, Falésia (São Paulo, 2010). A autora vive hoje em Lisboa, onde desenvolve tese sobre a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931 - 2008) na Universidade Nova de Lisboa.

A parceira germânica de Érica Zíngano no Festival será a poeta Ann Cotten, nascida nos Estados Unidos em 1982, tendo crescido em Viena, na Áustria, onde desenvolveu trabalho acadêmico sobre o Grupo de Viena, e vivendo em Berlim desde 2006. Em 2007, a editora Suhrkamp publicou seu livro de estreia, Fremdwörterbuchsonette (Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2007), cuja recepção entusiástica pela crítica transformou-a numa das estrelas da jovem poesia em alemão.

A poesia lírica de Érica Zíngano me interessa muito, por vários aspectos. Por exemplo, seu trabalho com a colagem e apropriação de material alheio e muitas vezes "antilírico", como no texto "teoria dos gêneros" que pode ser lido na página dedicada a seu trabalho na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co., no qual transforma a descrição de uma bula de remédio, o Lyrika®, por suas implicações, em abordagem às possibilidades do trabalho lírico hoje. Ou em "problemas metafísicos", que apesar do título grandioso parte de um comercial de ovos para satirizar certas veleidades filosóficas na poesia. É trabalho que a une tanto aos poetas ligados à revista DADA como às técnicas da Internacional Situacionista no pós-guerra.

No entanto, no poema abaixo, Zíngano recorre ao verso curto e rápido para um texto conversacional de grande carga emotiva, usando um minimalismo que busca menos a concisão que a incisão. Lirismo com os pés no chão, o que me faz pensar em certa estrofe de Hadewijch de Antuérpia (1190 - 1240), cujo trabalho me foi generosamente apresentado por Zíngano em uma conversa em Lisboa – aqui em tradução de João Barrento: "Às vezes indulgentes e às vezes rudes, / às vezes tenebrosos e às vezes brilhantes: / ao liberar consolo, no medo coercitivo, / no aceitar e no dar, / devem aqueles que são / cavaleiros errantes no Amor / viver sempre aqui embaixo."



Érica Zíngano lê excertos do poema "- Você falou honey bunny, não falou?" na cidade do Porto, em vídeo de Patrícia Lino.

§

- você falou honey bunny, não falou?
Érica Zíngano

i.

repito comigo
como se fosse jovem
o menino
mas sua ranhura de dentes
de tripas e rins
ideias constantes
de fazer crescer hera
aos ouvidos
enquanto pergunto
quantas vezes
te tropeças os pés
ossos mal-equilibrados
ao fazer o caminho
entre o almoço
e a siesta
variamos as línguas
na cumplicidade de sermos
entendidos
ao repetir a palavra
amor
aquela velha casa
onde vinhas me visitar
antes mesmo de me conhecer
quando tentava
inutilmente
gravar 10 variações
por segundo de um sorriso meu
arrastando a impressão
de um cinema mudo
em cada expressão
espontânea
tínhamos o mesmo retrato
num fuso horário diferente
água e greenwich
atravessado
por leves movimentos
de bater de dedos
(armações possíveis
para driblar o coração
sempre em segredo)
e de novo insistes
na palavra
amor
sem significado
quando pronuncio
numa língua
estranha
Înainte de a te cunoaşte
veneam şi te sărutam la tine acasă

um pouco mais pra direita
de onde estás
essa imprecisão
de lugares
ao dizer glicério
ao invés de glicínias
azaléias
ou papoulas
bem abertas
como os olhos
que não chegam
a perceber
toda a umidade guardada
de onde escreves
dublando-te a ti mesmo
para tentar recuperar
aquela luz antiga
que dizias haver
entre nós

ii.

se insisto nisto -
pau de sebo
graxa pegada
nos dedos
subtração
em degredo
a saber quantos
anos se passaram
depois de duvidares
meu nome
uma oscilação
de zéfiros
a percorrer teus pensamentos
entre uma coca-cola
e um cigarro
é porque
meu bem
não há como explicar
o exato momento
em que soletramos
arpões
no lugar de harpias
esse mistério
das sincronias
que fazem com que
tua imagem se reflita
por sobre meu rosto
desfocado
cruzando em arco
a cidade

iii.

não posso
(e abre os olhos
interrompendo)
a palavra não pronuncia
e a boca ainda aberta
congelada
na duração do movimento
uma língua a querer
fazer graça
desmanchar depois
o que não consegue dizer
e ainda assim
sem saber
o quanto poderia esconder
em peixe, cicuta ou verniz
insiste
mais uma vez
por displicência
ou desejo
- levanta e volta
continua em treino
não aceita ser lesada
pela língua
mais de uma vez

iv.

não podemos ficar andando em círculos
quando temos um mapa na mão
para o carro e olha
em volta
essas linhas
que desenham sobrancelhas
nariz e boca - respiração
não podemos ficar andando em círculos
quando temos um mapa na mão
para o carro e olha
em volta
essas linhas
que desenham extremidades
e novos continentes
tudo reconhecido a olho nu
à primeira vista babe
como se não se tratasse mesmo
de uma língua-madre
irmão

v.

arranja os livros
em lugares
por cores
cheiros
e pensamentos
abstratos
quer dizer
não se limita
a nomes ou números
também tem o estranho hábito
de procurar ligações
internas
entre as páginas
- por isso -
toma café abrindo
mais de três edições
ao mesmo tempo
sempre a página cinquenta
e sete porque desacredita
das verdades absolutas
que podem ser reveladas
por detalhes mínimos
mas repete os mesmos versos
há anos, como se nisso
houvesse
alguma garantia
anda distante de objetos
cortantes
por sentir choque
uma espécie que irrita
os mais próximos
mas mesmo assim
não desiste
cria gatos
porque não saberia viver
sem nada que lhe tirasse
a atenção
onde menos se espera
é como toda a gente
alegre-triste
ao mesmo tempo
mas só lava os cabelos
uma vez por semana
por hábito
de não ser contrariado


(publicado originalmente no terceiro número impresso da Modo de Usar & Co.)

.
.
.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Angélica Freitas.


Ontem foi aniversário de Angélica Freitas. Uso a ocasião para postar poemas e vídeos da poeta neste espaço, iluminando a existência dos leitores que por aqui hoje passarem. Já escrevi várias vezes sobre a autora – que está prestes a lançar o segundo livro –, creio que os visitantes mais frequentes sabem já o que penso sobre sua poesia. É apenas uma ocasião para revisitar seu trabalho, visitar esta minha companheira de longe, ao longe.



§


sereia a sério
Angélica Freitas

o cruel era que por mais bela
por mais que os rasgos ostentassem
fidelíssimas genéticas aristocráticas
e as mãos fossem hábeis
no manejo de bordados e frangos assados
e os cabelos atestassem
pentes de tartaruga e grande cuidado

a perplexidade seria sempre
com o rabo da sereia

não quero contar a história
depois de andersen & co
todos conhecem as agruras
primeiro o desejo impossível
pelo príncipe (boneco em traje de gala)
depois a consciência
de uma macumba poderosa

em troca deixa-se algo
a voz, o hímen elástico
a carteira de sócia do méditerranée

são duros os procedimentos

bípedes femininas se enganam
imputando a saltos altos
a dor mais acertada à altivez
pois
a sereia pisa em facas quando usa os pés

e quem a leva a sério?
melhor seria um final
em que voltasse ao rabo original
e jamais se depilasse

em vez do elefante dançando no cérebro
quando ela encontra o príncipe
e dos 36 dedos
que brotam quando ela estende a mão


§


às vezes nos reveses
penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: agüenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses


§


alguém quer saber o que é metonímia
abre uma página da wikipédia
se depara com um trecho de borges
em que a proa representa o navio

a parte pelo todo se chama sinédoque

a parte pelo todo em minha vida
este pedaço de tapeçaria
é representativo? não é representativo?

eu não queria saber o que era
metonímia, entrei na página errada
eu queria saber como se chegava
perguntei a um guarda

não queria fazer uma leitura
equivocada
mas leituras de poesia
são equivocadas

queria escrever um poema
bem contemporâneo
sem ter que trocar fluidos
com o contemporâneo

como Roland Barthes na cama
só com os clássicos


§


Dois excertos do poema O livro rosa do coração dos trouxas

I.

eu quando corto relações
corto relações.
não tem essa de
briga de torcida
todos os
sábados.
é a extinção do estádio.
vejo as forças
que atuam; a tesoura,
o papel,
a vontade de cortar.
tudo é provocação?
então embrulha
tua taquicardia
num sorvete de amêndoas,
reza que derreta.
quando lembro do
corte revivo a
ferida.
melhor não.
o corte é definitivo,
a dor retorna em forma
de milão madri
ou liverpool
quando convocada.
ricardo
lembra do teu passado
só se te dá
prazer.
how elizabeth
bennet of you.
mas tirar
deleite da perda,
convencer fulana
de que minha fraqueza
não oblitera?,
exigir um rio de janeiro
com gatos e livros,
legítima esposa?,
fico sonhando com
a viagem a um país onde a
língua seja vértebra
sobre vértebra,
palavras com j
antes do l,
e cacos gregos
que me devolvam
ao aluguel da casa.


IX.

o dia seguinte
na tua cama
de lençóis
zêlo com
circunflexo,
a dôr com
circunflexo,
porque é
antiga,
como o café pelé
todos a conhecem.







§


ítaca

se quiser empreender viagem a ítaca
ligue antes
porque parece que tudo em ítaca
está lotado
os bares os restaurantes
os hotéis baratos
os hotéis caros
ja não se pode viajar sem reservas
ao mar jônico
e mesmo a viagem
de dez horas parece dez anos
stop-overs no egito?
nem pensar
e os free-shops estão cheios
de cheiros que se podem comprar
com cartão de crédito.
toda a vida você quis
visitar a grécia
era um sonho de infância
concebido na adultez
itália, frança: adultério
(coisa de adultos?
não escuto resposta).
bem, se quiser vá a ítaca
peça que um primo
lhe empreste euros e vá a ítaca
é mais barato ir à ilha de comandatuba
mas dizem que o azul do mar
não é igual.
aproveite para mandar e-mails
dos cybercafés locais
quem manda postais?
mande fotos digitais.
torre no sol
leve hipoglós
em ítaca comprenderá
para que serve
a hipoglós.


.
.
.

Arquivo do blog