Para mim, trata-se de um dos grandes poemas do nosso tempo. Merece um ensaio alentado, mas como o incluí no dossiê de poesia brasileira contemporânea que estou organizando para uma revista do âmbito germânico, terei que enfrentá-lo em breve.
KUZUELA
André Capilé
ó pássaro verdadeiro
ó pássaro sincero
papagaio ê!
seja bem vindo
gostamos de recebê-lo
mas não nos garantimos boas novas
os maridos ainda recusam a voz das esposas
os pais renunciam a voz de seus filhos
nossos avós saíram da raiz faz tempo
mas o tronco resiste apesar dos inventos
esta é a terra e o que se tornou
veja
estamos sempre prontos a nos repetir
viemos a esta terra
comemos desse esterco
em um mundo
que não devia ser tão espalhado
em um mundo
que se distrai por trair ser pacífico
em um mundo
que é apenas um lugar de mercado
uê papagaio uê!
será possível que se instale um vau
que se preciso atravessemos juntos?
e o que virá depois do salto, o óbvio?
de um lesa-majestade ouvi a prece
nem todos voltarão pra casa um dia
até que dê ciência a concha ao molde
é o estéril que engravida o caracol
viemos até aqui
agora chamamos de casa
ó há terra para todos
talvez devesse um elogio
que te fizesse mais feliz
ó há terra para todos
e me escutasse o que rezava
e respondesse cada reza
ó há terra para todos
é de lá meu papagaio
uê que espalha o mundo no lajedo
tão grande, tão poderoso
que não pode vencê-lo a calma
a violência de teu silêncio
quem ousar eiá eu vos digo
enxaguará as mãos pra comer terra
quem ousar eiá eu vos digo
entrará pelo duto ó cu dos céus
e quem ousar eiá que aproxime
mil e um passos contados pra trás
hoje não vou ousar ser tão rude com ele
são mais de mil passos à frente do rei
ó colorido com a tintura do açafrão
patrono dos tapetes sem tamanho
esta terra deve ser pacífica
esta terra deve ser prolífica
a terra deve ser boa pra nós
a terra deve nos favorecer
não botamos nossos ovos pra guerra
nós que somos testemunhas do luto
não merecemos castigo
não devemos ser roubados
papagaio ê!
venha ouvir nossas súplicas
papagaio ê!
prestamos homenagens ao senhor
ó pássaro verdadeiro
ó pássaro sincero
seja bem vindo
gostamos de recebê-lo
não ouça amanhã nossos gritos
não nos garantimos boas novas
*
in Muimbu (Juiz de Fora: Macondo Edições, 2019)
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