Caetano Romão (Ribeirão Preto, 1997)
MAU-MAU E A MEDICINA
i.
mau-mau na outra ponta do sofá
sentado feito um buda
cheio de farelo no colo
me faz recomendações
a calvíce a rinite a nicotina
de perna cruzada
comendo biscoito de maisena
prescreve xaropes medicinas
conhece bem minhas manias
mau-mau é bom
só o sapato no estofado desmente
logo ele que diz
não pisa com o pé no sofá
mau-mau hoje está terrível
muito sabido
toma meu pulso
cheira minhas partes
desconfiado
querendo saber
de onde eu vim
ii.
a partir de agora
se faz necessário
certo recuo
não tão brusco:
mau-mau estralando meu dedão
do pé esquerdo
me elogia dizendo
você parece ser simples
tento responder
mordo a língua na pontinha
me espremo contra o sofá
agudo de aflição
sua fala cirúrgica
limpa os óculos
na borda da cueca
pra ver de perto
pra ver melhor
mau-mau que
me conta verdades
como se catasse pulgas
diz assim
como um doutor
me dá o outro pé
iii.
recuar
como um ossinho volta ao lugar
depois que puxa
sei de gente que estralava
os lugares mais improváveis
escápula cotovelo bacia
isso pra não falar do resto
quem estrala o corpo
teima com o corpo
quer prolongar o corpo
está de mal com o corpo
como se padecesse
de um soluço no osso
digo já chega pro mau-mau
esse sou eu encolhendo as pernas
eu que muitas vezes sinto cócegas
em lugares indevidos
esquecendo as coxas
em lugares indevidos
gargalho quando não quero
confundindo com bitucas
minhas unhas cortadas no chão
iv.
gente que pigarreia antes de falar
mau-mau é desses
como se trouxesse notícias muito novas
o rapaz é profissional
mau-mau corrige minhas lições
e meus ossos
v.
faz de conta que ele
guardasse um estetoscópio
ao redor do pescoço
a brincadeira é essa
quem tira a roupa sou eu
quem fica vestido é ele
conhecemos bem
os papéis
eu digo é aqui que me dói
já ele apalpa outro canto
assim vai
decifra meus centímetros
os pentelhos
todos no mesmo lugar
fica pasmo quando tusso
interroga anota cutuca
caxumbas catarros
insinua o caso é grave
entre nós alguma malícia
de ciência ou suborno
diz que tenho dor de dentes
no coração
não acredito
não peço a receita
não pago a consulta
– Caetano Romão
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NOTA: este poema foi publicado no primeiro número impresso da revista Peixe-boi, mas ali apareceu com outras quebras de linha.
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