segunda-feira, 28 de março de 2022

João Lins Caldas (Rio Grande do Norte, 1888-1967)


Agradeço a Ayrton Alves Badriah por chamar minha atenção para o trabalho deste negligenciado modernista brasileiro. Alguns poucos poemas do autor foram reunidos no volume Poética (1975).



Começou a receber maior atenção crítica nas últimas décadas, e uma parte mais considerável de sua vasta obra foi editada no volume Poeira do céu e outros poemas (2009), organizado por Cássia de Fátima Matos dos Santos, que tem dedicado sua atenção crítica ao autor, como no texto “A ponte entre o arcaico e o moderno: leitura de um poema de João Lins Caldas”, ou sua tese de mestrado, "Vaga-lume na treva: a poesia de João Lins Caldas".

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POEMAS DE JOÃO LINS CALDAS


UMA ISABEL MORREU NO MUNDO

Uma Isabel morreu no mundo.
Tinha pai e mãe, irmãos e sobrinhos, aquele mundo de primos no mundo.
Avós enterrados, bisavós trepidantes nos cernes duros de árvores agigantadas.
Ascendentes outros na nervura de asas e barbatanas de peixes.
Isabel hoje estava cansada.
Remontava das suas origens a dias muito anteriores aos dias de Tebas,
Viveu de fresco os poemas de Homero,
A guerra de Tróia,
O passado de Sócrates,
E, caída Cartago, soldados ruivos, assalariados, mortos.
Não soube nada de sua crônica.
Era uma mulher, vestida de saia, os cabelos compridos
E se alimentava de pão, rapadura e mel.
Isabel tinha linhas nas mãos.
Uma sorte que estava escrita, diferente sem dúvida das outras sortes.
O destino de Isabel, o destino da vida como dos outros que carregam a morte.
Eu nunca vi Isabel.

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O SOMBRA
 
Esse homem infeliz e sacrificado,                     
Os dias de sol que passaram sobre a sua cabeça,
As noites de chuva e tempestade,
As suas horas de esperança,
As suas horas de desespero,
Onde está ele, onde estão dele todas as suas tempestades?
 
O coração que lhe pulsa acelerado
De sangue, veia e veia, do seu corpo,
Seus nervos retorcidos, abalados,
Grisalho o seu cabelo, o olhar na noite,
A noite na sua alma, demorada,
Onde estão ele, a tempestade e a noite?
 
Sonâmbulos os passos, carregados,
Algidas as mãos de trémula brancura,
Tudo nele a sombria claridade..
 
Vejo, com vê-lo, nada ver no mundo.
Vejo, com vê-lo, já não ver mais nada.
 
Esse homem que se abriu um sepulcro no mundo.
 
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A VIDA ESTÁ CHEIA DE TODOS OS ACABADOS MONSTROS

— O homem.

A vida está cheia de todas as famigeradas serpentes.

— O homem.

A vida corre parelha com todos os ventos e com todas as tempestades.

— O homem.

A vida marcha para a concretização de todas as ideias e de todos os pensamentos.

— Para onde marcha o homem.



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quarta-feira, 23 de março de 2022

Régis Mikail [Quero me enterrar aos monges]

 



[Quero me enterrar aos monges]


Quero me enterrar aos monges, sentir o cheiro da bata, da inhaca e da sandália surrada, engolir balidos couros, da crosta ao calcanhar, a cada passo os dedos alargados afundando minhoquinhas; 

persigo cada uma, 

dedinhos de pés e fios encaracolados a terra seca tamisada

sálvia murta penugem e caramujos na cóclea de ouvidos hirsutos

o Monte Athos do agreste acantos e espinhosas 

suculentas

a silhueta dissipa míope a muxiba 

fimose da cobra esturricada.

 

O Aprendiz de Feiticeiro desejava a picada selvagem e a catinga das virilhas dos anacoretas, a quem décadas austeras proibiram abluções de qualquer sorte, por medo do desejo.

 

E esse deus sujo se revela mais puro que qualquer assepsia pregressa.

 

Nem mesmo um herói sob o Sol de Satã existe; verdade, já não mais está. Mas creio nele, sim, este é o prodígio, 

um homem de fé que não seja o idiota, 

um pé-de-cabra não brilhante nem paspalho 

abobado iluminado

com o diabo trava batalha  

não como aqueles 

das histórias da carochinha 

fiapos nas tripas de novelos em bofes regadas.

 

Não existem separadamente: Deus e diabo habitam 

tentam as mesmas pessoas 

nos mesmos lugares.

 

            Apenas nunca vou conhecê-los, nem a um nem a outro. Cedo fui mutilado do divino, cegado, ensurdecido, emudecido, por Deus intocado,

exposto aos olfatos mais elaboradamente simples

melhor teria sido anosmia da napa morta

o cheiro de couro mofado

dejeta assepsia

 

ao corpo inerme proibida qualquer relação mística

      palavra tão puída, e não prostituída; 

as putas estão com Deus – 

            

e o gosto de cada som – ínfimo, é verdade, – não deixa de tocar o êxtase, como estelares 

pretendem 

poetastros 

veem poeira morta

acho que a eles amo. 

Resta apreciar como categoria lá do marfim entalhada, uma torre, o javali castrado, sublime onania,

a santa furada no pelo, do monge pelado o escalpo

ao longe, um navio a afundar.

 

Castigo? O regozijo é gozo lapado na arte.

 

Só fui entender, com muito retardo, que o pincel – e tão somente o pincel manejado por Deus –, é para ser sentido a cada golpe de tinta encharcado; e que na ponta cabeluda o pintor pode esboçar um jumento.

Sem Arte, pode-se chegar a Deus,

sem nome nem forma nem ideia

Ele é tudo e tudo é Ele 

E Deus sendo demônio é caminho pedregoso a mula empaca 

defronte 

falo de serpente

por isso mais fácil. 

 

Senda a pé, descalço, Deus habita a beleza árida do estéril e até mesmo a urucubaca. 

 

Não se avexasse tanto com a Luz, a melatonina se assemelharia a Ele. O repouso promissor dos anjos custa caro, liberto do tempo e do vencimento, 

 

que nem pacto com diabo

se um dia é atormentado 

o hormônio recompensa 

espelho a contrario 

e as preocupações se deformam de ponta cabeça. 


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Régis Mikail é um escritor e tradutor brasileiro, nascido em São Paulo em 1982. Publicou o romance Onofre (Editora Deep, 2021).


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