quarta-feira, 23 de março de 2022

Régis Mikail [Quero me enterrar aos monges]

 



[Quero me enterrar aos monges]


Quero me enterrar aos monges, sentir o cheiro da bata, da inhaca e da sandália surrada, engolir balidos couros, da crosta ao calcanhar, a cada passo os dedos alargados afundando minhoquinhas; 

persigo cada uma, 

dedinhos de pés e fios encaracolados a terra seca tamisada

sálvia murta penugem e caramujos na cóclea de ouvidos hirsutos

o Monte Athos do agreste acantos e espinhosas 

suculentas

a silhueta dissipa míope a muxiba 

fimose da cobra esturricada.

 

O Aprendiz de Feiticeiro desejava a picada selvagem e a catinga das virilhas dos anacoretas, a quem décadas austeras proibiram abluções de qualquer sorte, por medo do desejo.

 

E esse deus sujo se revela mais puro que qualquer assepsia pregressa.

 

Nem mesmo um herói sob o Sol de Satã existe; verdade, já não mais está. Mas creio nele, sim, este é o prodígio, 

um homem de fé que não seja o idiota, 

um pé-de-cabra não brilhante nem paspalho 

abobado iluminado

com o diabo trava batalha  

não como aqueles 

das histórias da carochinha 

fiapos nas tripas de novelos em bofes regadas.

 

Não existem separadamente: Deus e diabo habitam 

tentam as mesmas pessoas 

nos mesmos lugares.

 

            Apenas nunca vou conhecê-los, nem a um nem a outro. Cedo fui mutilado do divino, cegado, ensurdecido, emudecido, por Deus intocado,

exposto aos olfatos mais elaboradamente simples

melhor teria sido anosmia da napa morta

o cheiro de couro mofado

dejeta assepsia

 

ao corpo inerme proibida qualquer relação mística

      palavra tão puída, e não prostituída; 

as putas estão com Deus – 

            

e o gosto de cada som – ínfimo, é verdade, – não deixa de tocar o êxtase, como estelares 

pretendem 

poetastros 

veem poeira morta

acho que a eles amo. 

Resta apreciar como categoria lá do marfim entalhada, uma torre, o javali castrado, sublime onania,

a santa furada no pelo, do monge pelado o escalpo

ao longe, um navio a afundar.

 

Castigo? O regozijo é gozo lapado na arte.

 

Só fui entender, com muito retardo, que o pincel – e tão somente o pincel manejado por Deus –, é para ser sentido a cada golpe de tinta encharcado; e que na ponta cabeluda o pintor pode esboçar um jumento.

Sem Arte, pode-se chegar a Deus,

sem nome nem forma nem ideia

Ele é tudo e tudo é Ele 

E Deus sendo demônio é caminho pedregoso a mula empaca 

defronte 

falo de serpente

por isso mais fácil. 

 

Senda a pé, descalço, Deus habita a beleza árida do estéril e até mesmo a urucubaca. 

 

Não se avexasse tanto com a Luz, a melatonina se assemelharia a Ele. O repouso promissor dos anjos custa caro, liberto do tempo e do vencimento, 

 

que nem pacto com diabo

se um dia é atormentado 

o hormônio recompensa 

espelho a contrario 

e as preocupações se deformam de ponta cabeça. 


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Régis Mikail é um escritor e tradutor brasileiro, nascido em São Paulo em 1982. Publicou o romance Onofre (Editora Deep, 2021).


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