segunda-feira, 4 de maio de 2009

Sim ao crônico dia

Quando o debate contemporâneo aborda a historicidade do fazer poético, é bastante comum que se mencione a famosa querelle des anciens et des modernes, debate travado entre os literatos da Academia Francesa, no século XVII. O poeta Érico Nogueira, em seu artigo "Encore la querelle des anciens et des modernes", respondendo ao meu "O que é est-É-tica", chega a chamar nosso debate atual de "reedição" da polêmica. Não é a primeira vez que a "querela" surge neste contexto, debate em que tenho tentado participar ativamente. Eu mesmo, no ensaio "De figurinos possíveis em um cenário em construção", discuto e questiono o influente texto de Haroldo de Campos da década de 80, base teórica fundamental para os poetas brasileiros que têm defendido e criado sob a égide da "trans-historicidade", intitulado "Da morte da arte à constelação: o poema pós-utópico", no qual Campos toma a discussão de Hans Robert Jauss sobre a querela e sobre o conceito de modernidade como exemplo de "diacronia" crítico-histórica nos estudos literários. Voltarei à minha crítica ao ensaio de Haroldo de Campos, que passei a chamar de "manifesto", mais tarde.

Segundo Fredric Jameson, no interessante A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present, a querela francesa entre os defensores dos parâmetros depreendidos dos clássicos e os defensores do recontextualizar constante do moderno teria sido o primeiro momento em que a estética literária se viu confrontada pela questão de sua historicidade. Mais uma vez, o debate sobre diacronia e sincronia históricas na crítica literária parece fazer-se incontornável.

Jameson inicia sua discussão sobre o conceito de modernidade, assim, justamente afirmando sua "antiguidade", propondo que a dualidade entre modernus e antiquas começaria a ganhar seu tom antitético a partir dos escritos de Cassiodoro (490 - 581 a.C.), iniciando então a distinção entre novus e modernus, da qual herdamos uma das questões que parecem nos ocupar em nosso debate atual: se o novo e o moderno pressupõem-se. Não é necessário, eu creio, mencionar aqui o motto modernista de Pound: Make It New.

Na discussão empreendida por Jameson, o mesmo texto de Jauss discutido por Haroldo de Campos volta a aparecer, no entanto, não como exemplo para a instituição da dicotomia fictícia entre alguma noção pura de diacronia e sincronia, mas para questionar, precisamente, a possibilidade de instituir tais categorias antitéticas absolutas. Discutindo as noções de "cíclico" e "tipológico" no estudo de Jauss sobre o conceito de modernidade, Jameson escreve:

"... when we look at the opposition more closely, its two poles seem to vanish into each other; and the cyclical proves to be fully as typological, in this sense, as the typological is cyclical. The distinction is therefore to be reformulated in another, less evident way: in reality, it involves a kind of Gestalt alternation between two forms of perception of the same object, the same moment in historical time. It seems to me that the first perceptual organization (the one identified as `cyclical´) is better described as an awareness of history invested in the feeling of a radical break; the `typological´ form consists rather in the attention to a whole period, and the sense that our (`modern´) period is somehow analogous to this or that period in the past. A shift of attention must be registered in passing from one perspective to the other, however complementary they may seem to be: to feel our own moment as a whole new period in its own right is not exactly the same as focusing on the dramatic way in which its originality is set off against an immediate past."
Fredric Jameson, A Singular Modernity: Essay on the Ontology of the Present (London: Verso, 2002)

Uma das melhores formulações que eu, pessoalmente, já li sobre a impossibilidade da instituição das categorias de diacronia e sincronia como antíteses absolutas está no livro Infância e História, de Giorgio Agamben. Elaborando seus conceitos de "ritual" e "jogo", Agamben os apresenta, em suas palavras, como máquinas para a transformação de diacronia em sincronia e vice-versa. É o ínício de seu argumento em defesa de uma visão que apresente diacronia e sincronia como focos, entre os quais as sociedades humanas constróem suas curvas hiperbólicas. Ele escreve:

"Se as sociedades humanas apresentam-se nesta luz como um único sistema atravessado por duas tendências opostas, um deles operando para transformar diacronia em sincronia e o outro impelido ao movimento contrário, o resultado final do jogo entre estas tendências - o que é produzido pelo sistema, pela sociedade humana - é em todo caso uma margem diferencial: história; em outras palavras, o tempo humano."
Giorgio Agamben, Infância e história.

E, ainda nas palavras de Agamben, vem formulado com clareza meridiana algo do que me tem ocupado em todo o meu trabalho crítico, em minha tentativa de borrar certas dicotomias: "Mas a instância precisa como uma interseção de diacronia e sincronia (a presença absoluta) é um mero mito, de que a metafísica ocidental lança mão para garantir a continuação de sua própria concepção dual do tempo. Não se trata apenas - como Jakobson demonstrou para a linguística - de que sincronia não pode ser identificada com o estático ou diacronia com o dinâmico, mas que o evento puro (diacronia absoluta) e a pura estrutura (sincronia absoluta) não existem. Todo evento histórico representa uma margem diferencial entre diacronia e sincronia, instituindo uma relação de significado entre elas."

Da maneira como este debate tem sido travado no Brasil, diacronia passa a ser identificada com o processo histórico linear, enquanto críticos e poetas associam a sincronia com uma espécie de fuga ou abolição da história, sendo que esta história só pode existir como jogo entre as duas tendências perceptivas. Reside aí uma das falácias do ensaio/manifesto de Haroldo de Campos e da maneira como ele passou a ser usado por poetas interessados em reiterar a ideologia modernista da autonomia do poético: subrepticiamente transformar o conceito de sincronia no de trans-historicidade, que passa a ser oposto, de forma dualista, ao de diacronia, como categorias absolutas. É divertido observar que o próprio texto de Haroldo de Campos, em sua narrativa histórica, poderia ser tomado como exemplo de uma visão crítica de tendência diacrônica, em sua argumentação de que até certo momento (os anos 60) toda a poesia seguia uma única ideologia, e que, a partir de um determinado momento, que ele chama de colapso da ideologia utópica nos anos 60, toda a poesia passa a, homogeneamente, seguir outra tendência.

Ainda que quiséssemos, não nos seria possível escrever crítica literária puramente diacrônica. Há dois únicos seres capazes de escrever uma história da Literatura a partir da diacronia: Deus e Funes, o memorioso. O que nos resta é a sincronia tal qual esta se manifesta na crítica literária: a seleção que cada geração permite-se fazer daquilo que lhe parece útil e necessário na tradição, no passado. A maneira como cada momento presente parece poder escolher seu passado, como as práticas artísticas de uma época retrabalham os conceitos de outros tempos, lançando-os ao foco de outras luzes. Já propus que a diacronia passa a fortalecer-se, na relação com nossa seleção sincrônica da tradição, quando uma seleção passada se engessa e passa a ser tomada como lei.

Aqui entra a discussão também política da questão, pois se nos resta simplesmente a possibilidade de seleção, somos imediatamente obrigados a perguntar sobre os mecanismos de poder que regem esta seleção para a narrativa histórica, fazendo com que entendamos a sincronia de uma forma menos ingênua, pois seleção e instituição implicam hegemonia.

No entanto, para os defensores de parâmetros universais e eternos, é justamente difícil aceitar o que há de transitório nestes parâmetros est-É-ticos. Pois, se a sincronia nos permitisse algum tipo de fuga da História, seria na destruição do cânone como herança transmissível em pedra-lei, propondo o esquecimento constante e recriação a cada geração. Porém, os neoclassicistas sonham com o movimento impossível e contraditório de parâmetros que, ao mesmo tempo, possam estabelecer e abolir a História.

Em seu artigo, Érico Nogueira afirma que a própria querelle des anciens et des modernes francesa não seria a primeira edição de nosso debate, mencionando Platão e sua crítica à paidéia homérica, assim como os poemas de Hesíodo. Se o nascimento do debate deu-se com Platão ou Hesíodo será uma questão de perspectiva, mas o debate certamente parece ter se transformado e repetido ao longo dos tempos, pois não poderíamos ver algo desta "polêmica" em Calímaco e sua crítica ao uso dos parâmetros épicos de Homero como antiquados para a sua própria época (o século IV a.C.)? Tal querela não renasce 3 séculos depois, com os neoteroi, dos quais apenas a obra de Catulo sobrevive, em sua querela com Cícero e com os classicistas de seu tempo?

Essas querelas, porém, de maneira nenhuma significaram para Calímaco ou Catulo o abandono completo da tradição. Quanto aos contextos históricos que transformam e condicionam o debate a cada reedição, é interessante notar que Catulo escreve sua lírica altamente individual, com uma poética baseada no quotidiano de sua vida em Roma e Verona, nos últimos anos da República. Com o surgimento do Império e seus delírios absolutistas de eternidade, a poesia que passa a ser apreciada e praticada é a de Virgílio, com sua épica antiquada, e o (belíssimo) retorno ao tempo mítico em Ovídio.

Que significado tem essa repetição constante do debate, ao longo dos tempos, entre os defensores de parâmetros baseados nos resultados dos mestres do passado, e os que acreditam que as soluções apresentadas por esses mestres eleitos indicam caminhos para novas soluções, mas não necessariamente uma receita e bula para a perfeição?

O que parece ocorrer repetidamente é um debate entre duas tendências críticas:

§- de um lado, há os poetas que acreditam na autonomia do poético perante a História e suas convoluções recorrentes. Para estes poetas, a tradição seria uma espécie de caixa de ferramentas acumulativa, da qual o poeta pode tomar "formas" para seu uso pessoal, que se faz funcional em qualquer momento histórico, tendo sua validade estabelecida e seus parâmetros de qualidade assegurados pela maestria de poetas anteriores.

§- por outro lado, temos os poetas que acreditam que as formas acumuladas pela tradição seriam soluções apresentadas por poetas para problemas específicos e condicionados por seus momentos históricos, e que estas técnicas formais servem aos poetas contemporâneos (em cada momento, seja o último século antes de Cristo ou 2009) como processos e procedimentos, dos quais podem aprender se souberem a que perguntas estas formas apresentam-se como respostas, exigindo que dominem a forma e conheçam o contexto em que surgiram.

Portanto, aqui reside parte de minha discordância quanto à resposta de Érico Nogueira, por exemplo, mas também o ponto em que podemos procurar atingir maior clareza de propósitos. Voltemos ao seu texto:

"Mutatis mutandis, decrépito e sem propósito, hoje, é poema-piada, é vanguardismo besta, é poesia concreta après la lettre; e o difícil, hoje como sempre, é fazer algo que presta, algo realmente relevante AO MOMENTO EM QUE SE VIVE, quer se trate de um poema mais `antiquado´, ou mais `modernoso´.
Como o Borges de Formas de una leyenda, por fim, sou dos que pensam que as questões fundamentais, as que realmente importam, se repetem quase que sem mudança ao longo do tempo; e que a poesia, a despeito de uma ou outra variação de media e de técnica -- sempre superficial --, continua a ser da alçada do improvável, do maravilhoso. Portanto do aristocrático."

Érico Nogueira, "Encore la querelle des anciens et des modernes"

Há vários fatores em operação aqui. É interessante notarmos aquilo que chamo de "ideologia da percepção" em funcionamento, ao observarmos os exemplos de Érico Nogueira. Sendo Érico professor de Letras Clássicas e autor de uma coletânea como O Livro de Scardanelli, é natural que seus exemplos negativos sejam retirados dentre os que ele chama de "modernosos e vanguardistas", atacando também os praticantes do "poema-piada e poesia concreta après la lettre". Se eu estivesse escrevendo o texto, provavelmente citaria os produtores de sonetos petrarquistas em pleno século XXI ou algo do gênero. Mas isso não iria muito além do anedotário e não importa aqui. O ponto principal, e do qual não discordo, é que o difícil sempre foi e sempre será fazer algo relevante, algo que presta. Mas é justamente esta a discussão, o debate, a querela, que parece reiterar-se contínua e infindavelmente desde Platão, segundo Nogueira, passando por Calímaco, Catulo, ganhando corpo teórico entre os literatos franceses do século XVII: como saber o que presta? Como saber o que é relevante?

Voltamos aqui ao problema inicial. Para muitos poetas, basta voltarmos aos mestres do passado, aprender com eles suas técnicas, emulá-los. Para outros, não se trata de emulação, mas de aprendizagem de métodos.

Quem está com a razão?

Talvez seja possível apenas analisar casos específicos. É o que pretendo fazer na próxima postagem.

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2 comentários:

m. sagayama disse...

Domeneck

O debate está interessantíssimo.

Aproximo muito os pontos que defende neste ensaio à leitura que faço de seu poema de abertura da Carta aos Anfíbios.

Ao que me parece, a discussão pode ter ainda uma intersecção com a de Luis Dolhnikoff e Marcos Siscar. A noção da "cisma" e de "crise de verso como manipulação da tradição" parecem se encaixar bem aqui.

Vou tentar arrumar um tempinho pra mostrar alguma posição no meu blog.

Até mais!

Ricardo Domeneck disse...

Caro Mário,

há certamente pontos de contato entre os dois debates, que talvez sejam o mesmo.

Toda contribuição é bem-vinda!

Abraço,

Domeneck

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