Texto em que o poeta tropical permite-se sonhar com a temperança
a Maria Conti
Quiçá pudesse até ser feliz
vivendo um quarto de solteiro
num hotel de cidadela suíça,
como Zofingen, no Aargau,
iria então para a cama às nove
da noite, e, acordando às sete
da manhã, desceria para o café
gratuito com Robert Walser
debaixo do braço, pensando
em como a poesia moderna
de um país tão ordeiro fora
toda fundada por loucos
enclausurados em hospícios,
e ainda, por pequeno o país,
muitas vezes no mesmo,
insciente de como porventura
era a desventura do desjejum
de Berberat, e de Hamo,
e de Wölfli, e de Walser
na Clínica de Waldau,
aqui onde os sinos
marcam as horas precisas
como a certeza da morte,
eu caminharia pelas ruelas
chamadas aqui de Gassen,
vestindo meu terno puído
agora que chegou a terna
idade dos ternos, o tabaco
na boca, traquéia, pulmões,
paralelepípedos matutinos
tão-só meus e das senhoras
com seus cães, eu andaria
até a Central Ferroviária
em busca de água
e o Neue Zürcher Zeitung,
sonhando com o destino
dos neutros, aqui,
num quarto de hotel
de solteiro na Suíça,
oxalá saciadas todas
as necessidades, já
que a cada dia mais
certo de que após
uma vida toda
em que pagamos
tão caro por Eros,
há-que se aceitar
que logo chegará
a idade a se pagar
caro por sexo,
e perdoem-me
os conterrâneos
por tal fantasia:
nascido em país
de extremos,
trópico de morticínios
de um mapa em forma
de hematoma,
é tão-só natural
que às vezes, de manhã,
sonhe-se
com a temperança.
--- Ricardo Domeneck – Quarto 215 do Hotel Zofingen – Zofingen, Aargau, Suíça – manhã de 20 de outubro de 2013.
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Um comentário:
gostei, o Ricardo, gostei muito.
Regina, suiça, morando no centro de Zurique, ontem e hoje em excurção à Zofingen, coisa mais exótica do que viajar à São Paulo
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