quarta-feira, 21 de maio de 2014

Poemas antigos para amantes mais antigos ainda

Hoje, pela manhã, voltando para a minha casa depois de tomar o café-da-manhã na padaria berlinense favorita, vi um conjunto anatômico brilhando ao sol, sobre uma bicicleta, rápido, decidido, com saúde explodindo por cada poro, e meu corpo todo reconheceu aquele corpo, era ele, aquela tragédia de anos e anos atrás, Christopher. Ele não me viu. Mas eu o vi. E lembrei deste poema antigo, escrito para ele e sobre ele e, por que não?, com ele. Vai aqui, mais uma vez. Homenagem às catástrofes passadas. Ao fim, um dos meus vídeo-retratos, feito dele.


Texto em que o poeta dirige-se a um ex
e relata a seus leitores sobre Christopher,
his own private Hurricane Okeechobee


O plantão do Jornal da Globo
anunciava a morte das mortes
da Rapunzel das importâncias
e o bípede predileto impunha
suas lesões como lições.
Seu bíceps era um fórceps
na manteiga das minhas guelras.
É como se seu tubo de eustáquio
se posicionasse, ainda por cima,
na expectativa de um Thank You
por sua devastação em meu clima,
e eu temia, ao leme, que o próprio
meio-dia fosse a praga que assola
ao meio-dia. Há outros perigos
para um barco ao mar,
mais terríveis que o naufrágio.
Talvez o vício
do farol, demasiada confiança
nos botes, nas bússolas.
De sua testa à sua glande
e desta às falanges,
aquele cobre solar e uniforme,
como os pelos em suas pernas
distribuíam-se
feito um milharal
querendo esconder o milho.
A proporção entre seu nariz
e outros membros do império
em seu mapa de côncavos
e convexos era minha última
porção de simetria, Bauhaus
do meu lumpesinato físico.
Quando nascerá o comunismo
do proletariado amoroso?,
era o que simulavam murmurar,
revolucionárias, minhas mucosas,
estas cavidades hipócritas
em seus mal-dissimulados
delírios napoleônicos.
Eu queria ser seu dono e seu dog,
parceiro majoritário
do monopólio
que ele presidia.
Um feudo de fluidos
e de corpos. Suas fotos
até hoje me coçam.
Ele era um conjunto de carpos
e cilindros, e, se aos dezenove
fazia-me de vaso, aos vinte
e cinco era eu dejeto,
despejo.
Ele era uma alegria difícil,
um improviso
de rês pública.
Queria tudo,
a mim inclusive,
mas sem contrato exclusivo.
Redigia todas as cláusulas,
eu as aceitava, do sim tácito
ao silêncio tático,
qualquer manobra
que mantivesse seu corpo
aberto ao meu tato.
Quem jamais viveu o momento
que faz de migalhas
um banquete
que atire o primeiro tomate.
Ele, em minha boca,
foi o nascer-do-sal.
Quem me dera o tivesse
discernido a tempo
como o analgésico exato
para as minhas ilusões
de pertencer a alguma espécie
em extinção,
quando hoje sei ser eu praga.
Contudo, não me arrependo
de permitir aos meus dedos
aquela orgia típica
de gafanhotos
nos campos férteis
dos seus cabelos,
e, mesmo daninho,
dedico a ele hoje
este honorário
por seus extermínios.


Ricardo Domeneck, in Ciclo do Amante Substituível (Rio de Janeiro: 7Letras, 2012)

§


Ricardo Domeneck, "Retrato de Christopher" (2006)

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2 comentários:

Anônimo disse...

Ricardo, eu te amo, seu lindo, fofo!

Ricardo Domeneck disse...

Obrigado pela generosidade, querido.

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