sábado, 5 de setembro de 2015

Após visitar a casa de Paul Celan, em Czernowitz

Esta manhã, visitei o jardim da casa onde Paul Celan nasceu, em Czernowitz, na Ucrânia. Terra de fronteiras fluidas, a cidade pertencia ao Reino da Romênia à época. Li Celan pela primeira vez quando tinha cerca de 20 anos. Há muito tempo venho querendo escrever um ensaio sobre a estranha fortuna crítica do poeta na Alemanha e fora dela. Na verdade, a estranheza vem justamente da comparação entre como Celan é lido dentro do seu espaço linguístico e fora dele. Mas, por ora, estou sob o impacto de ter visitado sua casa, sua rua, e ouvido seus tradutores russo (Mark Belorusetz, que também traduziu meus poemas para o festival onde estou) e ucraniano (Petro Rychlo), lendo poemas do livro Die Niemandsrose (1963), em alemão, ucraniano e russo. Rychlo acaba de publicar sua tradução ucraniana integral, em volume bilíngue, deste livro decisivo na obra de Celan.


Decidi então preparar uma postagem dedicada a Celan na Modo de Usar & Co., com minha tradução para o "Todesfugue". Tenho uma tradução também para o "Engführung", mas esta ainda não ouso mostrar. Traduzir Celan é responsabilidade tamanha. Na minha tradução para "Todesfugue", da qual já publiquei um par de versões em locais diversos, tento apontar para outros possíveis caminhos, pois que o poema já foi recepcionado algumas vezes em nossa língua.

No entanto, procurando uma fotografia de Celan para a postagem na Modo, deparei-me uma vez mais com aquela bela foto do poeta aos 18 anos, em uma fotografia de escola, antes da Catástrofe, fotografia que sempre me tocou muito, pela beleza do jovem poeta, sua aparente alegria, o futuro, o futuro prometido. 



Um Celan feliz, ainda com os pais. Em casa. Em sua cidade natal. A sinagoga ainda estava de pé, como sinagoga. Foi então que me lembrei de um poema que escrevi em 2003, quando estava apaixonado por outro rapaz judeu (alemão, mas também de origem ucraniana). Lembrei-me que, ao entrar na Torre do Holocausto no Museu projetado por Liebeskind, chorei pensando que aquele menino, que eu amava, teria encontrado o mesmo destino 60 anos antes. Não é querer personalizar uma tragédia que jamais poderei verdadeiramente compreender. Nenhum de nós o pode. Apenas os sobreviventes. Mas era, parecia-me, a única maneira de não deixar a Catástrofe no campo do abstrato, dos números, das estatísticas. E foi mais forte que eu.

Reproduzo-o abaixo. Foi publicado em meu primeiro livro, Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005).


Na contingência de suas mãos

a quem mais
importaria que as mãos
de Philipp Naujoks
                pareçam-se
com as de Paul Celan
em uma foto aos 18 anos
senão a mim que as
amo feitas em sua forma
corporal de coisas
naturais busco dar-lhes
um significado para
que passem a existir
e digo: “eu
vejo nelas o partir
do pão de minhas
expectativas” e quando
elas em acidentes
deliberados tocam-me
sei do sangue correndo
para irrigar obediente
minha pele
sob o jugo destas
mesmas
               mãos
cujas feições e textura
reconheço entre as
centenas já vividas
a ponto de revê-las
nas mãos deste
                          morto
que escreveu “esta mão
que beijei alumia-se
às bocas” e murmurar
para mim mesmo na
escuridão da gengiva
a semelhança de unhas
dedos carpos oito
                          ossos
dispostos
em duas fileiras
e fechar os olhos e cerrar
os dentes e pensar quando
novamente se contingências
excedem sua escala de
permanência e atrevem-se
a querer mais como todos
nós dizemos mais cedo
ou mais tarde não
queria que acabasse
mas o tempo
todo a água entornando
de um copo para
o rio e o braço
levando o copo de
volta à água provam que
continente e conteúdo
em certos momentos
confundem-se
(o prazer descarta-os)
para nossa vitória

§

in Carta aos anfíbios (Rio de Janeiro: Editora Bem-Te-Vi, 2005).

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