Caríssimo Pier Paolo,
faz hoje quarenta anos que massacraram o seu corpo naquela praia de Óstia, que visitei no ano passado, caminhando entre as ervas-daninhas que crescem no local onde ergueram um monumento feio. Teria sido mais bonito ver vaga-lumes sobrevoando o ponto onde seu corpo caiu e foi então pisoteado por um carro, tal como um elefante, automóvel que assim se fez ainda mais forte símbolo da industrialização e do capitalismo insanos que destruíram o seu país e vêm levando os vaga-lumes à extinção. Esta manhã, reli o seu texto “A desaparição dos vaga-lumes”, no qual você nos deu outro daqueles diagnóticos e prognósticos lúcidos de um processo que se havia iniciado em suas décadas de vida e vem se completando nas décadas da minha. Nem por um segundo compartilhamos o oxigênio do século, mas compartilhamos sim a falta de oxigênio que vem mirrando os cérebros dos seus conterrâneos e dos meus.
Ao ler seu texto sobre a degradação espiritual da Itália, como não pensar na degradação espiritual do Brasil, aonde tantos conterrâneos seus emigraram, entre eles a família de minha avó materna, italianos ruivos de Campobasso, no Molise? E a cada instância de “democratas cristãos” a comparecer em seu texto, como não pensar no governo dos democratas cristãos alemães que vem desgovernando e destruindo a tessitura humana do continente europeu? Ou nesta tentativa de transformar o Brasil também em uma democracia cristã ainda mais fajuta, apoiada no desconhecimento massivo das massas de racistas e militaristas que vivem no país, sem saber sequer o que “democracia” ou “cristandade” deveriam e poderiam realmente significar?
Os vácuos humanos do seu tempo chamavam-se Aldo Moro, Giovanni Leone e Giulio Andreotti, entre outros. O que você teria dito de um vácuo humano como Silvio Berlusconi? Você teria se interessado por vácuos humanos como Dilma Rousseff, Renan Calheiros e Eduardo Cunha, ou aquele que sequer consegue erguer-se a vácuo, sendo já uma subcategoria qualquer, candidato a vácuo, chamado Aécio Neves? Quando você foi morto em 1975, muitos eram também mortos e desaparecidos no Brasil por um vácuo humano como aquele Ernesto Geisel (doce como um pastor alemão policial), que sucedera o vácuo humano de nome auspiciosamente italiano, Emílio Garrastazu Médici, doce, enfim, como um Médici. E, de um Médici, saberia você o que esperar. E o que dizer deste pseudo-galã da política brasileira hodierna, também de sobrenome Moro?
Mas o vocabulário do meu tempo não mudou muito em relação ao seu, Pier Paolo. Ainda gritam “comunista!” a quem quer que deseje simplesmente que esta guerra de todos contra todos acabe. Gritam “obsceno!” a qualquer um que decida apoderar-se do próprio corpo. Em meu país, o vocabulário parece ter voltado no tempo, para os idos de 1964. Muitos entenderão esta carta, mas não há o que dizer aos outros, talvez poucos ou muitos, que gritarão “comunista!” e “esquerdista!”, com suas gargantas que não parecem mais ter qualquer ligação com o cérebro. Ou, na sua gritaria sempre dualista, a sensação de que o lado direito e esquerdo de seus cérebros tampouco se comunicam. Haverá talvez ainda aqueles, pseudo-eruditos, que falarão em “civilização grego-romana-cristã” e outros disparates, sem entender que vivemos ainda sob a violência de religiões de Estado impostas a uma população plural, que adora deuses e deusas distintas, quando talvez devessem todos retornar à deusa da fertilidade, a Mãe-Terra, Gaia, a mãe de todos os vaga-lumes.
E seguem impondo leis injustas e desrespeitando as passagens justas de Constituições, dos dois lados do Atlântico, como no seu tempo. Seguem massacrando corpos como o seu, destroçando homossexuais, mulheres, negros, índios. São perigosos os vácuos humanos, os que estão no poder e os que os apóiam com seus gritos roucos, saídos de suas gargantas acéfalas. Para eles, democracia é veramente “a ditadura da maioria”, não o sistema que nos iludimos em crer que poderia ter sido o que salvaguardaria os direitos de todos. Seguem eles, Pier Paolo, querendo controlar os corpos de mulheres e homossexuais como se eles próprios não tivessem corpos. Não os ocupa, seus corpos? Quanto tempo dedicado a controlar as mucosas alheias, chamando os outros de obscenos, quando obscenos são eles, homens como Eduardo Cunha, hoje no Congresso do meu país. Obscenos são estes vácuos humanos.
Foram trinta e três os processos por obscenidade contra você. E você respondia sempre que obsceno é o poder, e obsceno segue sendo, moribundamente obsceno o poder dos mortos-vivos que nos governam, dos que gritam em seu apoio, e também dos que apenas querem ter no poder os mortos-vivos de suas preferências. E pouquíssimos são os que compreendem o que poderia ser a democracia ou o que poderia ser a cristandade, como você as compreendeu, respectivamente, em poemas como “O PCI aos jovens” e em filmes como O Evangelho segundo Mateus.
Não foi à toa que seu último filme baseou-se no Marquês de Sade. Salò. Salò ontem e Salò hoje. Você sabia que a obscenidade do poder-consumo já havia cegado e lobotomizado a grande maioria. Mas que palavra bonita, lucciola, Pier Paolo! Procurei-a hoje em várias línguas e é sempre linda: em Portugal dizem pirilampo, no Japão, hotaru; na Jamaica, dizem blinkie, e na Espanha, luciérnaga; no País Basco, dizem ipurtargi, e na Malásia, kunang-kunang; em uma das línguas da Índia, dizem minnaminungu, e, em afrikaans, vuurvliegie; os finlandeses a chamam de tulikärpänen, e os índios da Nação Pottawatomi a chamam de wau-wau-too-sa. Na Alemanha, onde vivo, chamam-na sempre no diminutivo, Glühwürmchen, como uma minhoquinha que brilha. Estarão brilhando ainda no subterrâneo, é isso que insinuam os alemães? No Brasil dos falsos democratas e falsos cristãos, a chamamos de vaga-lume. Quero acreditar que estão vagando, e voltarão.
seu Ricardo, 2 de novembro de 2015,
escrevendo da Alemanha dos Democratas Cristãos,
na língua do país dominado por aqueles que não são nem democratas nem cristãos.
.
.
.
2 comentários:
que texto mais lindo, que homenagem mais linda.
Ô, eu nem sabia da data.
Lembro de quando vi um filme dele pela primeira vez. Foi Salò. Eu não sabia direito quem era Pasolini e vi o filme por uma simples recomendação de um conhecido, sendo que até achei meio too gruesome for my taste (lol), mas percebi desde o primeiro momento que se tratava de um trabalho feito por quem realmente entendia do assunto.
Logo eu me interessei pelos outros filmes, e fui assistindo cada um e adentrando num mundo riquíssimo, de uma beleza límpida e pura, daquelas que a gente costuma encontrar só na arte mais alta: nos velhos afrescos italianos, nos melhores cantos de Pound... Das peripécias medievais da trilogia da vida ao drama atual demasiado atual de Mamma Roma, eu me apaixonei por tudo. Como esquecer o inferno boschiano recriado no final dos Contos de Canterbury? Como esquecer aquele momento mágico em que Jesus cura o leproso e, de repente, o Requiem africano começa a tocar e nos transmite aquela sensação de uma glória tão alta que é como se nós mesmos houvéssemos sido curados? Como esquecer as atuações maravilhosas de Maria Callas e Anna Magnani? Como esquecer Totò e Ninetto Davoli, na companhia do corvo metafísico, andando vagarosamente naquela estrada, sempre pra frente? E os close-up's nos rostos dos atores, meu deus? Pasolini conseguia fazer até mesmo o mais velho, mais sujo e mais desdentado dentre os velhos sujos e desdentados parecer uma figura saída diretamente de uma pintura da Renascença, numa prova definitiva de que a beleza não precisa de rostinhos bonitos para existir.
E isso é só uma parte diminuta do mundo que ele criou, só a parte que eu conheço. Eu li poucos poemas, e nunca li os romances. Ainda não aprendi italiano, afinal. Por um lado isto é bom, pois significa que ainda tenho muito para mais para experimentar no que se refere à obra dele. :)
Bela carta, aliás. Essa humanidade que ele possuía, tão honesta e genuína, é algo que faz muita falta.
Por fim, deixo-vos com isto: https://www.youtube.com/watch?v=dFx6jyOZc0o.
Postar um comentário