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segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Caríssimo Pier Paolo: uma carta ao vaga-lume no quadragésimo aniversário do seu assassinato






                  Caríssimo Pier Paolo,

faz hoje quarenta anos que massacraram o seu corpo naquela praia de Óstia, que visitei no ano passado, caminhando entre as ervas-daninhas que crescem no local onde ergueram um monumento feio. Teria sido mais bonito ver vaga-lumes sobrevoando o ponto onde seu corpo caiu e foi então pisoteado por um carro, tal como um elefante, automóvel que assim se fez ainda mais forte símbolo da industrialização e do capitalismo insanos que destruíram o seu país e vêm levando os vaga-lumes à extinção. Esta manhã, reli o seu texto “A desaparição dos vaga-lumes”, no qual você nos deu outro daqueles diagnóticos e prognósticos lúcidos de um processo que se havia iniciado em suas décadas de vida e vem se completando nas décadas da minha. Nem por um segundo compartilhamos o oxigênio do século, mas compartilhamos sim a falta de oxigênio que vem mirrando os cérebros dos seus conterrâneos e dos meus.

Ao ler seu texto sobre a degradação espiritual da Itália, como não pensar na degradação espiritual do Brasil, aonde tantos conterrâneos seus emigraram, entre eles a família de minha avó materna, italianos ruivos de Campobasso, no Molise? E a cada instância de “democratas cristãos” a comparecer em seu texto, como não pensar no governo dos democratas cristãos alemães que vem desgovernando e destruindo a tessitura humana do continente europeu? Ou nesta tentativa de transformar o Brasil também em uma democracia cristã ainda mais fajuta, apoiada no desconhecimento massivo das massas de racistas e militaristas que vivem no país, sem saber sequer o que “democracia” ou “cristandade” deveriam e poderiam realmente significar?

Os vácuos humanos do seu tempo chamavam-se Aldo Moro, Giovanni Leone e Giulio Andreotti, entre outros. O que você teria dito de um vácuo humano como Silvio Berlusconi? Você teria se interessado por vácuos humanos como Dilma Rousseff, Renan Calheiros e Eduardo Cunha, ou aquele que sequer consegue erguer-se a vácuo, sendo já uma subcategoria qualquer, candidato a vácuo, chamado Aécio Neves? Quando você foi morto em 1975, muitos eram também mortos e desaparecidos no Brasil por um vácuo humano como aquele Ernesto Geisel (doce como um pastor alemão policial), que sucedera o vácuo humano de nome auspiciosamente italiano, Emílio Garrastazu Médici, doce, enfim, como um Médici. E, de um Médici, saberia você o que esperar. E o que dizer deste pseudo-galã da política brasileira hodierna, também de sobrenome Moro?

Mas o vocabulário do meu tempo não mudou muito em relação ao seu, Pier Paolo. Ainda gritam “comunista!” a quem quer que deseje simplesmente que esta guerra de todos contra todos acabe. Gritam “obsceno!” a qualquer um que decida apoderar-se do próprio corpo. Em meu país, o vocabulário parece ter voltado no tempo, para os idos de 1964. Muitos entenderão esta carta, mas não há o que dizer aos outros, talvez poucos ou muitos, que gritarão “comunista!” e “esquerdista!”, com suas gargantas que não parecem mais ter qualquer ligação com o cérebro. Ou, na sua gritaria sempre dualista, a sensação de que o lado direito e esquerdo de seus cérebros tampouco se comunicam. Haverá talvez ainda aqueles, pseudo-eruditos, que falarão em “civilização grego-romana-cristã” e outros disparates, sem entender que vivemos ainda sob a violência de religiões de Estado impostas a uma população plural, que adora deuses e deusas distintas, quando talvez devessem todos retornar à deusa da fertilidade, a Mãe-Terra, Gaia, a mãe de todos os vaga-lumes.

E seguem impondo leis injustas e desrespeitando as passagens justas de Constituições, dos dois lados do Atlântico, como no seu tempo. Seguem massacrando corpos como o seu, destroçando homossexuais, mulheres, negros, índios. São perigosos os vácuos humanos, os que estão no poder e os que os apóiam com seus gritos roucos, saídos de suas gargantas acéfalas. Para eles, democracia é veramente “a ditadura da maioria”, não o sistema que nos iludimos em crer que poderia ter sido o que salvaguardaria os direitos de todos. Seguem eles, Pier Paolo, querendo controlar os corpos de mulheres e homossexuais como se eles próprios não tivessem corpos. Não os ocupa, seus corpos? Quanto tempo dedicado a controlar as mucosas alheias, chamando os outros de obscenos, quando obscenos são eles, homens como Eduardo Cunha, hoje no Congresso do meu país. Obscenos são estes vácuos humanos.

Foram trinta e três os processos por obscenidade contra você. E você respondia sempre que obsceno é o poder, e obsceno segue sendo, moribundamente obsceno o poder dos mortos-vivos que nos governam, dos que gritam em seu apoio, e também dos que apenas querem ter no poder os mortos-vivos de suas preferências. E pouquíssimos são os que compreendem o que poderia ser a democracia ou o que poderia ser a cristandade, como você as compreendeu, respectivamente, em poemas como “O PCI aos jovens” e em filmes como O Evangelho segundo Mateus.

Não foi à toa que seu último filme baseou-se no Marquês de Sade. Salò. Salò ontem e Salò hoje. Você sabia que a obscenidade do poder-consumo já havia cegado e lobotomizado a grande maioria. Mas que palavra bonita, lucciola, Pier Paolo! Procurei-a hoje em várias línguas e é sempre linda: em Portugal dizem pirilampo, no Japão, hotaru; na Jamaica, dizem blinkie, e na Espanha, luciérnaga; no País Basco, dizem ipurtargi, e na Malásia, kunang-kunang; em uma das línguas da Índia, dizem minnaminungu, e, em afrikaans, vuurvliegie; os finlandeses a chamam de tulikärpänen, e os índios da Nação Pottawatomi a chamam de wau-wau-too-sa. Na Alemanha, onde vivo, chamam-na sempre no diminutivo, Glühwürmchen, como uma minhoquinha que brilha. Estarão brilhando ainda no subterrâneo, é isso que insinuam os alemães? No Brasil dos falsos democratas e falsos cristãos, a chamamos de vaga-lume. Quero acreditar que estão vagando, e voltarão.


seu Ricardo, 2 de novembro de 2015,
escrevendo da Alemanha dos Democratas Cristãos, 
na língua do país dominado por aqueles que não são nem democratas nem cristãos.

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quinta-feira, 6 de março de 2014

Por ocasião do nonagésimo-segundo aniversário de Pier Paolo Pasolini, que não houve

especial para a Modo de Usar & Co., 05 de março de 2014.


Hoje, Pier Paolo Pasolini teria completado 92 anos, ainda estivesse vivo. Não houvesse sido massacrado naquela praia de Óstia na noite de 2 de novembro de 1975. Tivesse sobrevivido a outras violências. É apenas especulação, sei bem, imaginar se Pasolini ainda estaria entre nós hoje, tivesse sido dado a ele o direito de morrer, como dizemos no Brasil, de velhice. Sua lucidez poderia ser, hoje, não uma luz na escuridão, como gostamos de dizer sobre guias, mas talvez uma sombra para o aparente excesso de claridade, nesses tempos em que presenciamos nova escalada nas bipolarizações que se alardeou como mortas na década de 90. Pasolini parecia saber navegar entre duas margens. Contraste, essa era a habilidade luminar de sua inteligência, para percebermos melhor os contornos do que, sendo ameaças, possuem quinas, cantos. Esta não é uma postagem comum. A biografia de Pasolini é conhecida, seria fácil obter os títulos de seus livros. Este texto é uma homenagem, um lamento, ou outra coisa inútil qualquer à qual vocês talvez queiram dar o nome.

Eu penso no discurso de Alberto Moravia no velório de Pasolini, em sua fúria e indignação e sinto, quase 40 anos depois de sua morte, algo dela. Talvez seja apenas imaginação. Há uma passagem no ensaio "Lírica e sociedade", de Adorno, em que ele diz, de certa forma, que compreende o porquê os esbirros de Franco precisaram assassinar Lorca. Adorno queria-o como exemplo em sua defesa de uma lírica que ataca e se torna perigosa pela negação do mundo ao redor. Que acusa pela ausência. Que se faz insuportável para o poder por abster-se de participar da divisão dos despojos, que sempre foi coisa dos vencedores sobre os vencidos. Por mais que aquilo me emocionasse como jovem poeta aprendiz, sabia que aquilo turvava a imagem de Lorca e sua participação completa na comunidade de seu tempo: com sua poesia, com seu teatro... com seu próprio corpo de homem que negava a violência do patriarca. A violência do vencedor.

Pasolini é, na Itália, mais que o cineasta como é visto ao redor do mundo e mesmo no Brasil, poeta. Talvez seja apenas natural que a sua linguagem cinematográfica seja mais conhecida no mundo, já que a poesia segue nas margens do marginal. A lírica de Pasolini sonhava com uma terra de infância idealizada e perdida nFriûl, mas jamais se absteve de participar da vida de sua comunidade, os pés sobre as cinzas de Gramsci. O homem que os esbirros da direita italiana odiavam e precisaram matar atacava com sua poesia, seu cinema, seus romances, seus artigos... e seu corpo de homem que negava a violência do patriarca. A violência do vencedor. Nunca se abstendo, mas imiscuindo-se na vida de sua comunidade. Política.

Mahmoud Darwish falou certa vez sobre a história de Troia, contada por um poeta grego, por um poeta do povo vencedor. Aquele que divide entre si os despojos. Mas grande poeta que foi, tenha ou não sido um único homem, sente-se em Homero a tristeza em meio à divisão dos despojos. Assim como em Eurípides, As Troianas são as troianas mas são também as mulheres da ilha de Melos, devastada pelos atenienses no ano em que Eurípides escreveu As Troianas. A poeta canadense Anne Carson reuniu suas traduções para quatro tragédias de Eurípides num livro chamado Grief Lessons. Lições em luto? Lições em aflição? Minha mãe dizia: "Não peça paciência a Deus, que ele manda provação". Eu gostaria de um dia encenar As Troianas com soldados norte-americanos e mulheres afegãs. Mas, ora, por que não com soldados brasileiros e mulheres dos Munduruku? Por que não com policiais militares paulistanos e as mães negras da periferia? Por que não com machos violentos quaisquer e transsexuais tão despojados de direitos quanto as troianas?

Como para os gregos o espectro frio de Aquiles valia mais que o sangue quente de Polixena, também para os esbirros da direita italiana o espectro frio de sua masculinidade bélica valia mais que o sangue quente irrigando uma mente como a de Pier Paolo Pasolini. A História se repete ad nauseam. Quem dera tivesse realmente fim, como dizia a propaganda do fim de século.

Não quero generalizar sobre a natureza da poesia ou falar sobre o poeta usando um artigo definido, ah, sempre masculino. Mas os poetas que mais amo são aqueles que sempre se colocam, de uma maneira ou de outra, entre os povos menores. E se tenho hoje fome e, como poeta, tenho dois alugueis atrasados, ao menos os poetas ainda podem dizer que não estão dividindo os despojos com os vencedores. Não, isso não é uma apologia da pobreza ou a velha desculpa metafísica do poeta como outsider. Marina Tsvetáieva escreveu que todo poeta é um judeu, no tempo em que estes eram um povo menor. É melhor que um poeta esteja do lado dos povos menores de seu tempo. Que serão sempre subjugados. Pasolini escreveu: "Sexo, consolação da pobreza". Porque ele, poeta, sabia como os povos menores do território que hoje chamamos de Brasil que "o outro sempre chega". E eu gostaria de acreditar, como o Pasolini dos poemas amorosos, que nem sempre o outro chaga.


--- Ricardo Domeneck

§

POEMA DE PIER PAOLO PASOLINI

O sonho da razão

Jovem do rosto honesto
e puritano, também tu, da infância,
preservas além da pureza a vileza.
Tuas acusações te fazem mediador que leva
tua pureza - ardor de olhos azuis,
fronte viril, cabeleira inocente -
à chantagem: a relegar, com a grandeza
do menino, o diverso ao papel do renegado.

Não, não a esperança, mas o desespero!
Porque quem virá, no mundo melhor,
terá a experiência de uma vida inesperada.

E nós esperamos por nós, não por ele.
Para nos assegurar um álibi. E isto
também é justo, eu sei! Cada um
fixa o impulso em um símbolo,
para poder viver, para poder pensar.
O álibi da esperança confere grandeza,
acolhe na fila dos puros, daqueles
que, na vida, se ajustam.

Mas há uma raça que não aceita álibis,
uma raça que, no instante em que ri,
se recorda do choro, e no choro do riso,
uma raça que não se exime um dia, uma hora,
do dever da presença invadida,
da contradição em que a vida jamais concede
ajustamento nenhum, uma raça que faz
da própria suavidade uma arma que não perdoa.

Eu me orgulho de pertencer a esta raça.
Oh, eu também sou jovem, claro! Mas
sem a máscara da integridade.

Tu não me apontes, fazendo-te forte
dos sentimentos nobres - como é a tua,
como é a nossa esperança de comunistas -,
na luz de quem não está nas fileiras
dos puros, nas multidões dos fiéis.
Porque eu estou. Mas a ingenuidade
não é um sentimento nobre, é uma heroica
vocação a não se render nunca,
a jamais fixar a vida, nem sequer no futuro.

Os homens bons, os homens que dançam
como nos filmes de Chaplin com mocinhas
tenras e ingênuas, entre bosques e vacas,
os homens íntegros, em sua própria
saúde e na do mundo, os homens
sólidos na juventude, sorridentes na velhice
 - os homens do futuro são os HOMENS DO SONHO.

Ora minha esperança não tem
sorriso, ó humana omertà:
porque ela não é o sonho da razão,
mas é razão, irmã da piedade.

(tradução de Maurício Santana Dias, originalmente publicada
no quarto número impresso da Modo de Usar & Co.)

:

Il sogno della ragione
Pier Paolo Pasolini

Ragazzo dalla faccia onesta  
e puritana, anche tu, dell’infanzia,  
hai oltre che la purezza la viltà.  
Le tue accuse ti fanno mediatore che porta  
la sua purezza - ardore di occhi azzurri,  
fronte virile, capigliatura innocente -  
al ricatto: a relegare, con la grandezza  
del bambino, il diverso al ruolo di rinnegato.

No, non la speranza ma la disperazione!  
Perché chi verrà, nel mondo migliore,  
farà l’esperienza di una vita insperata.

E noi speriamo per noi, non per lui.  
Per costruirci un alibi. E questo  
è anche giusto, lo so! Ognuno  
fissa lo slancio in un simbolo,  
per poter vivere, per poter ragionare.  
L’alibi della speranza dà grandezza,  
ammette nelle file dei puri, di coloro,  
che, nella vita, si adempiono.

Ma c’e una razza che non accetta gli alibi,  
una razza che nell’attimo in cui ride 
si ricorda del pianto, e nel pianto del riso,  
una razza che non si esime un giorno, un’ora,  
dal dovere della presenza invasata,  
della contraddizione in cui la vita non concede  
mai adempimento alcuno, una razza che fa  
della propria mitezza un’arma che non perdona.

Io mi vanto di essere di questa razza.  
Oh, ragazzo anch’io, certo! Ma  
senza la maschera dell’integrità.

Tu non indicarmi, facendoti forte  
dei sentimenti nobili -  
com’è la tua, com’è la nostra speranza di comunisti -  
nella luce di chi non è tra le file  
dei puri, nelle folle dei fedeli.  
Perché io lo sono. Ma l’ingenuità  
non è un sentimento nobile, è un’eroica  
vocazione a non arrendersi mai,  
a non fissare mai la vita, neanche nel futuro.

Gli uomini belli, gli uomini che danzano  
come nel film di Chaplin, con ragazzette  
tenere e ingenue, tra boschi e mucche,  
gli uomini integri, nella salute  
propria e del mondo, gli uomini  
solidi nella gioventù, ilari nella vecchiaia 
- gli uomini del futuro sono gli UOMINI DEL SOGNO.

Ora la mia speranza non ha  
sorriso, o umana omertà: 
perché essa non è il sogno della ragione,  
ma è ragione, sorella della pietà.


(in Poesia in forma di rosa, Garzanti, Milano, 1964, p. 158-159.)

§



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sábado, 10 de agosto de 2013

O mestre Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975): trecho de entrevista e documentário.



"A recusa sempre foi o gesto mais importante. Santos, eremitas, intelectuais... a História foi feita por aqueles poucos que disseram `não´, não pelos cortesãos e conselheiros, não pelos `cardeais cinzentos´. Mas por uma recusa a fazer sentido, tem que ser principal, não secundária; tem que ser total, não em meros pontos individuais; tem que ser absurda e desafiar o senso comum. Eichmann estava cheio de senso comum. O que lhe faltava? Faltava-lhe a habilidade de dizer `não´ à coisa principal imediatamente, quando ele ainda era um administrador, um burocrata comum. Talvez ele até mesmo tenha dito a outros a seu redor no escritório: `Eu não gosto daquele Himmler´. Talvez ele o tenha murmurado, da forma como se murmura em editoras, jornais, em grupos do governo, na televisão. E talvez ele até tenha protestado contra o fato de que alguns trens paravam apenas uma vez por dia para que os prisioneiros pudessem ir ao banheiro, comer um pouco de pão, beber um pouco de água, quando na verdade teria sido mais sensato parar algumas vezes. Mas ele nunca pisou nos freios da máquina fascista. Então você precisa fazer três perguntas: qual é a `situação´; por que ela deve ser detida; e como?" --- Pier Paolo Pasolini, em sua última entrevista, na semana em que foi brutalmente assassinado. 

§ 

 

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sábado, 30 de março de 2013

Eu estou apaixonado e Marco Feliciano não me representa


Eu estou apaixonado 
e Marco Feliciano não 
me representa

Poetas que gente como Marco Feliciano censuraria:

Eros
fragmento de Safo de Lesbos

[queima-nos]


§

Poema 99
Caio Valério Catulo

Um selinho mais doce que doce ambrosia,
Juvêncio, te roubei quando brincavas.
Mas não impunemente: pois da cruz mais alta
me vejo, há uma hora ou mais, pendido
pedindo-te perdão, e sem que minhas lágrimas
consigam aplacar a tua ira.
Assim que te beijei, teus dedos delicados
te lavaram o lábio com gotículas,
de modo que do meu no teu não resta nada,
pois julgaste ser mijo, não saliva.
Desde então me castigas com um amor negado,
e de tantas maneiras me excrucias,
que vejo, então, mudado o beijo de ambrosia
em amargor pior que o mesmo amargo;
por um selinho amor assim me castigou:
o que faria, ai, ai, se fossem dois?

(tradução de Érico Nogueira)



§

A origem
Konstantínos Kaváfis

Consumara-se o prazer ilícito.
Ergueram-se ambos do catre humilde.
À pressa se vestiram, sem falar.
Saíram separados, furtivamente;
e, ao caminhar inquietos pela rua,
como que receavam que algo neles traísse
em que espécie de amor há pouco se deitavam.

Mas quanto assim ganhou a vida do poeta!
Amanhã, depois, anos depois, serão
escritos os versos de que é esta a origem.

(tradução de Jorge de Sena).



§

Excerpt from Lifting belly
Gertrude Stein

Kiss my lips. She did.
Kiss my lips again she did.
Kiss my lips over and over and over again she did.
I have feathers.
Gentle fishes.
Do you think about apricots. We find them very beautiful. It is not alone their color it is their seeds that charm us. We find it a change.
Lifting belly is so strange.
I came to speak about it.
Selected raisins well their grapes grapes are good.
Change your name.
Question and garden.
It's raining. Don't speak about it.
My baby is a dumpling. I want to tell her something. Wax candles. We have bought a great many wax candles. Some are decorated. They have not been lighted.
I do not mention roses.
Exactly.
Actually.
Question and butter.
I find the butter very good.
Lifting belly is so kind.
Lifting belly fattily.
Doesn't that astonish you.
You did want me.
Say it again.
Strawberry.
Lifting beside belly.
Lifting lindly belly.
Sing to me I say.
Some are wives not heroes.
Lifting belly merely.
Sing to me I say.
Lifting belly. A reflection.
Lifting belly adjoins more prizes.
Fit to be.
I have fit on a hat.
Have you.
What did you say to excuse me. Difficult paper and scattered.
Lifting belly is so kind.



§

A um papa
Pier Paolo Pasolini

Poucos dias antes de morreres, a morte
pousou os olhos em alguém da tua idade:
aos vinte anos, tu estudavas, ele era pedreiro,
tu, nobre, rico, ele, um rapazote plebeu:
mas os mesmos dias douraram sobre vós
a velha Roma, voltando a dar-lhe a sua juventude.
Vi os seus despojos, pobre Zucchetto.
Andava de noite, bêbado, à volta dos Mercados,
e um eléctrico que vinha de San Paolo atropelou-o
e arrastou-o por uns metros de carris no meio dos plátanos:
durante umas horas ficou ali, sob o rodado:
poucas pessoas se juntaram em redor, olhando-o,
em silêncio: já era tarde, havia pouca gente.
Um dos homens que existem para que tu existas,
um velho polícia, desbocado como todos os patifes,
gritava aos que se aproximavam mais: «Larguem-lhe os colhões!»
Depois veio uma ambulância buscá-lo:
as pessoas desapareceram, só ficaram uns grupos aqui e acolá,
e, mais à frente, a dona de um cabaré,
que o conhecia, disse a um recém-chegado
que Zucchetto tinha ficado debaixo de um eléctrico, que estava morto.
Poucos dias depois, morrias tu: Zucchetto era um
dos do teu grande rebanho romano e humano,
um pobre bêbado, sem família nem leito,
que andava de noite, vivendo ao deus-dará.
Tu ignoravas: como ignoravas
outros milhares e milhares de cristos como ele.
Talvez seja cruel ao perguntar por que razão
a gente como Zucchetto é indigna do teu amor.
Há lugares infames, onde mães e filhos
vivem na poeira antiga, na lama de outras eras.
Não muito longe de onde tu viveste,
à vista da bela cúpula de San Pietro,
fica um desses lugares, o Gelsomino...
Um monte cortado ao meio por uma pedreira, e no sopé,
entre um charco e uma fieira de prédios novos,
um montão de tugúrios miseráveis, não casas mas pocilgas.
Bastava um gesto teu, uma palavra,
para esses teus filhos terem uma casa:
nunca fizeste um gesto, nunca disseste uma palavra.
Ninguém te pedia que perdoasses Marx! Uma vaga
imensa que irrompe sobre milénios de vida
te separava dele, da sua religião:
mas não se fala, na tua religião, de piedade?
Milhares de homens sob o teu pontificado,
diante dos teus olhos, viveram em estábulos e pocilgas.
Tu sabias que pecar não é fazer o mal:
não fazer o bem, isso sim, é que é pecar.
Quanto bem podias tu ter feito! E não fizeste:
não houve quem mais pecasse do que tu.

(Tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)




§

A piedade
Roberto Piva

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos



§

Poema
Frank O´Hara

Há dias em que sinto exalar uma fina poeira
como aquela atribuída a Pilades na famosa
Chronica nera areopagitica ao ser descoberta

e é porque um arqueólogo
adentrou a câmara secreta do meu peito
e chacoalhou o papel que carrega seu nome

Não gosto deste estranho espirrando sobre nosso amor.

(tradução de Ricardo Domeneck)





§

Poema
Juan Carlos Bautista

Puto decía en las frentes,
puto en las paredes pompeyanas del inodoro,
puto en las manos cebosas
y en los muros ignorados, escrito con odio:
pe de puto en los ojos cuando hacían esas hipérboles,
esas elipsis.
cuando se iban al techo, a la nuca,
la niña desmayada entre secreciones y ronca risa:
puto en esas visiones repentinas,
en esos gestos movedizos,
en la cadera, su abrupta estatua,
sus lentas, desaforadas descripciones:
puto en la locura doliente desde los ojos
como pájaros escapándose
a un cielo que respira su trágico y su cómico,
y se deja caer por el lujo de contemplarse en esa prisa:
y el dedo que rayaba las sábanas,
tan triste y tan digno,
                                luego removiéndose entre risas,
detenido en el aire, diciéndolo:

"pues sí,
              morena (y puto) soy porque el sol me quemó,
¡oh, hijas de israel¡



§

Uma Arte
Elizabeth Bishop

A arte de perder não é nenhum mistério
tantas coisas contém em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. Um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser um mistério
por muito que pareça (escreve) muito sério.

(tradução de Paulo Henriques Britto)

:

One Art

The art of losing isn't hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster.

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn't hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother's watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn't hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn't a disaster.

—Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan't have lied. It's evident
the art of losing's not too hard to master
though it may look like (Write it!) like disaster.



§


De profundis amamus
Mario Cesariny

Ontem às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso



§


1955
Salvador Novo

Al poema confío la pena de perderte.
He de lavar mis ojos de los azules tuyos,
faros que prolongaron mi naufragio.
He de coger mi vida desecha entre tus manos,
leve jirón de niebla
que el viento entre sus alas efímeras dispersa.
Vuelva la noche a mí, muda y eterna,
del diálogo privada de soñarte,
indiferente a un día
que ha de hallarnos ajenos y distantes.



§


Uma litania para a sobrevivência
Audre Lorde

Para aqueles entre nós que vivem no litoral
em pé frente às arestas constantes da decisão
cruciais e sós
para aqueles entre nós que não podem dar-se ao luxo
dos sonhos passageiros da decisão
que amam de passagem por soleiras
nas horas entre auroras
olhando para dentro e para fora
no instante antes e depois
buscando um agora que possa gerar
futuros
como pão na boca de nossos filhos
para que seus sonhos não reflitam
a nossa morte:

Para aqueles entre nós
que foram impressos com o medo
como uma linha tênue no centro de nossas testas
aprendendo a temer com o leite de nossas mães
pois por esta arma
esta ilusão de alguma segurança a ser achada
os de passos pesados esperavam silenciar-nos
Para todos nós
esse instante e esse triunfo
Nunca fomos destinados a sobreviver.

E quando o sol se ergue temos medo
que talvez não permaneça
quando o sol se põe temos medo
que talvez não se erga de manhã
quando nossos estômagos estão cheios temos medo
da indigestão
quando nossos estômagos estão vazios temos medo
que talvez nunca mais comamos
quando nós amamos temos medo
que o amor desaparecerá
quando estamos sós temos medo
que o amor jamais voltará
e quando falamos temos medo
que nossas palavras não sejam ouvidas
nem benvindas
mas quando estamos em silêncio
ainda assim temos medo

Então é melhor falar
lembrando-nos
de que nunca fomos destinados a sobreviver

(tradução de Ricardo Domeneck)

:

A litany for survival
Audre Lorde

For those of us who live at the shoreline
standing upon the constant edges of decision
crucial and alone
for those of us who cannot indulge
the passing dreams of choice
who love in doorways coming and going
in the hours between dawns
looking inward and outward
at once before and after
seeking a now that can breed
futures
like bread in our children's mouths
so their dreams will not reflect
the death of ours:

For those of us
who were imprinted with fear
like a faint line in the center of our foreheads
learning to be afraid with our mother's milk
for by this weapon
this illusion of some safety to be found
the heavy-footed hoped to silence us
For all of us
this instant and this triumph
We were never meant to survive.

And when the sun rises we are afraid
it might not remain
when the sun sets we are afraid
it might not rise in the morning
when our stomachs are full we are afraid
of indigestion
when our stomachs are empty we are afraid
we may never eat again
when we are loved we are afraid
love will vanish
when we are alone we are afraid
love will never return
and when we speak we are afraid
our words will not be heard
nor welcomed
but when we are silent
we are still afraid

So it is better to speak
remembering
we were never meant to survive



§


Por qué seremos tan hermosas
Néstor Perlongher

Por qué seremos tan perversas, tan mezquinas
(tan derramadas, tan abiertas)
y abriremos la puerta de calle
al monstruo que mora en las esquina,
o sea el cielo como una explosión de vaselina
como un chisporroteo,
como un tiro clavado en la nalguicie.

Por qué seremos tan sentadoras, tan bonitas
los llamaremos por sus nombres
cuando todos nos sienten
(o sea, cuando nadie nos escucha)
Por qué seremos tan pizpiretas, charlatanas
tan solteronas, tan dementes

Por qué estaremos en esa densa fronda
agitando la intimidad de las malezas
como una blandura escandalosa cuyos vellos
se agitan muellemente
al ritmo de una música tropical, brasilera.

Por qué seremos tan disparatadas y brillantes
abordaremos con tocado de plumas el latrocinio
desparramando gráciles sentencias
que no retrasarán la salva, no
pero que al menos permitirán guiñarle el ojo al fusilero

Por qué seremos tan despatarradas, tan obesas
sorbiendo en lentas aspiraciones
el zumo de las noches peligrosas
tan entregadas, tan masoquistas,
tan hedonísticamente hablando

Por qué seremos tan gozosas, tan gustosas
que no nos bastará el gesto airado del muchacho,
su curvada muñeca:
pretenderemos desollar su cuerpo
y extraer las secretas esponjas de la axila
tan denostadas, tan groseras

Por qué creeremos en la inmediatez,
en la proximidad de los milagros
circuidas de coros de vírgenes bebidas y asesinos dichosos
tan arriesgadas, tan audaces
pringando de dulces cremas los tocadores
cachando, curioseando.

Por qué seremos tan superficiales, tan ligeras
encantadas de ahogarnos en las pieles
que nos recuerdan animales pavorosos y extintos,
fogosos, gigantescos.

Por qué seremos tan sirenas, tan reinas
abroqueladas por los infinitos marasmos del romanticismo
tan lánguidas, tan magras

Por qué tan quebradizas las ojeras, tan pajiza la ojeada
tan de reaparecer en los estanques donde hubimos de hundirnos
salpicando, chorreando la felonía de la vida
tan nauseabunda, tan errática.



§


Diving into the Wreck
Adrienne Rich

First having read the book of myths,
and loaded the camera,
and checked the edge of the knife-blade,
I put on
the body-armor of black rubber
the absurd flippers
the grave and awkward mask.
I am having to do this
not like Cousteau with his
assiduous team
aboard the sun-flooded schooner
but here alone.

There is a ladder.
The ladder is always there
hanging innocently
close to the side of the schooner.
We know what it is for,
we who have used it.
Otherwise
it is a piece of maritime floss
some sundry equipment.

I go down.
Rung after rung and still
the oxygen immerses me
the blue light
the clear atoms
of our human air.
I go down.
My flippers cripple me,
I crawl like an insect down the ladder
and there is no one
to tell me when the ocean
will begin.

First the air is blue and then
it is bluer and then green and then
black I am blacking out and yet
my mask is powerful
it pumps my blood with power
the sea is another story
the sea is not a question of power
I have to learn alone
to turn my body without force
in the deep element.

And now: it is easy to forget
what I came for
among so many who have always
lived here
swaying their crenellated fans
between the reefs
and besides
you breathe differently down here.

I came to explore the wreck.
The words are purposes.
The words are maps.
I came to see the damage that was done
and the treasures that prevail.
I stroke the beam of my lamp
slowly along the flank
of something more permanent
than fish or weed

the thing I came for:
the wreck and not the story of the wreck
the thing itself and not the myth
the drowned face always staring
toward the sun
the evidence of damage
worn by salt and away into this threadbare beauty
the ribs of the disaster
curving their assertion
among the tentative haunters.

This is the place.
And I am here, the mermaid whose dark hair
streams black, the merman in his armored body.
We circle silently
about the wreck
we dive into the hold.
I am she: I am he

whose drowned face sleeps with open eyes
whose breasts still bear the stress
whose silver, copper, vermeil cargo lies
obscurely inside barrels
half-wedged and left to rot
we are the half-destroyed instruments
that once held to a course
the water-eaten log
the fouled compass

We are, I am, you are
by cowardice or courage
the one who find our way
back to this scene
carrying a knife, a camera
a book of myths
in which
our names do not appear.



§

Viðrar vel til loftárása (Clima bom para um bombardeio)
Jón Þór Birgisson (Sigur Rós)

 

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quarta-feira, 3 de março de 2010

Uma revista alemã, um italiano e mais poetas

Na semana passada, o moço e eu decidimos fazer algo diferente e tomamos o trem para o lado extremo-ocidental de Berlim.

"Extremo" é apenas modo de dizer. Eu moro no antigo lado oriental da cidade, em Prenzlauer Berg, e só me mexo para o lado ocidental quando visito o moço em Neukölln. Berlim permanece sendo uma cidade extremamente descentralizada. Talvez sempre tenha sido, mas o muro acabou intensificando a existência de muitos centros distintos. Quem mora na West-Berlin raramente perambula pela Ost-Berlin e vice-versa. O meu centro continua sendo a Alexanderplatz e eu quase nunca vou para bairros do interior ocidental da cidade, como Charlottenburg ou Schöneberg. A famosa Bahnhof Zoo (Estação Zoo), no extremo oeste da cidade, é como outra cidade. Berlim é esquisitíssima neste aspecto. Ela não só muda completamente entre o verão e o inverno. 20 anos sem o muro não foram suficientes para fazer desta Frankenstein urbana um homem-cidade vitruviano.

Pois então, o moço e eu pegamos e trem e descemos na Savignyplatz, numa região com várias livrarias boas. Após visitar algumas, chegamos à melhor livraria da cidade, em minha opinião, a Autorenbuchhandlung (Livraria dos autores), com a mais impressionante estante de poesia da cidade, de uma qualidade que só em Barcelona e Buenos Aires cheguei a ver, mesmo que tenha me impressionado com algumas livrarias em São Paulo nesta última visita.

Eu comprei uma antologia do poeta coreano Ko Un (n. 1933) e o moço comprou o número 73 daquela que me parece uma das melhores revistas de poesia da Alemanha --- Schreibheft: Zeitschrift für Literatur. A revista é editada por Norbert Wehr e é semestral, dedicando cada número com frequência a poetas. Números anteriores trouxeram Ezra Pound, Jorge Luis Borges, Joan Brossa, Inger Christensen, Ghérasim Luca, William Gass, Daniil Charms, entre outros. O número 64 foi inteiramente dedicado a Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.


Este último número, de setembro de 2009, traz na capa um jovem e bonito Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975), motivo pelo qual o moço a comprou, obcecado que é por Pasolini, um de seus heróis, a figura central que nós dois compartilhamos. Com frequência, o moço desconhece meus heróis, em geral poetas, e eu desconheço os seus, em geral romancistas. Isso tem mudado: por causa dele, comecei a ler autores como Stanislaw Lem e William Burroughs, por minha causa ele começou a ler poetas como Frank O´Hara e H.C. Artmann, além de brasileiros como Clarice Lispector. Dei a ele uma tradução alemã de A hora da estrela (1977) e ele se apaixonou, como eu já esperava. O Pasolini que ele ama é o cineasta, mas este número 73 da Schreibheft traz alguns de seus lindos poemas traduzidos para o alemão, além de ensaios que discutem o sofisticado poeta que foi Pier Paolo Pasolini.

Non è di maggio questa impura aria
che il buio giardino straniero
fa ancora più buio, o l'abbaglia

con cieche schiarite... questo cielo
di bave sopra gli attici giallini
che in semicerchi immensi fanno velo

alle curve del Tevere, ai turchini
monti del Lazio... Spande una mortale
pace, disamorata come i nostri destini,

tra le vecchie muraglie l'autunnale
maggio. In esso c'è il grigiore del mondo,
la fine del decennio in cui ci appare

tra le macerie finito il profondo
e ingenuo sforzo di rifare la vita;
il silenzio, fradicio e infecondo...

Tu giovane, in quel maggio in cui l'errore
era ancora vita, in quel maggio italiano
che alla vita aggiungeva almeno ardore,

quanto meno sventato e impuramente
sano
dei nostri padri - non padre, ma umile
fratello - già con la tua magra mano

delineavi l'ideale che illumina

(ma non per noi: tu morto, e noi
morti ugualmente, con te, nell'umido

giardino) questo silenzio. Non puoi,
lo vedi?, che riposare in questo sito
estraneo, ancora confinato. Noia

patrizia ti è intorno. E, sbiadito,
solo ti giunge qualche colpo d'incudine
dalle officine di Testaccio, sopito

nel vespro: tra misere tettoie, nudi
mucchi di latta, ferrivecchi, dove
cantando vizioso un garzone già chiude

la sua giornata, mentre intorno spiove.


--- primeiro movimento de Le ceneri di Gramsci (1956) ---


O número é dividido entre Pasolini e o poeta norte-americano Robert Duncan (1919 - 1988), com poemas traduzidos para o alemão, traduções de ensaios, de parte de sua correspondência com Denise Levertov (outra poeta ligada à Black Mountain College) e uma longa entrevista, em que Duncan discute seu trabalho e também o de Olson, Cage, Ginsberg, Pound, Whitman, Levertov, Creeley, etc. Quitute. Vou terminar esta postagem, fazer outro café e voltar para a leitura.

Often I Am Permitted to Return to a Meadow

as if it were a scene made-up by the mind,
that is not mine, but is a made place,

that is mine, it is so near to the heart,
an eternal pasture folded in all thought
so that there is a hall therein

that is a made place, created by light
wherefrom the shadows that are forms fall.

Wherefrom fall all architectures I am
I say are likenesses of the First Beloved
whose flowers are flames lit to the Lady.

She it is Queen Under The Hill
whose hosts are a disturbance of words within words
that is a field folded.

It is only a dream of the grass blowing
east against the source of the sun
in an hour before the sun's going down

whose secret we see in a children's game
of ring a round of roses told.

Often I am permitted to return to a meadow
as if it were a given property of the mind
that certain bounds hold against chaos,

that is a place of first permission,
everlasting omen of what is.


Robert Duncan

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