Meu pai acordava toda manhã, fervia a água para o café (com o açúcar já nela), e ia sentar-se com o copo numa mão e este jornal em outra, na sala, na área, ou no quintal se estivesse fazendo sol. Reside aí para mim a importância desta coisa aí acima. Quando secou a grana nos anos 90 e entre os primeiros cortes de despesa estava a assinatura do jornal, meu tio Douglas guardava o "Mais!" para mim aos domingos. Os mais novos não vão entender, mas morar no interior à época e querer notícias de livros era coisa complicada. Meu pai e meu tio agora já se foram – "descansaram", diria um interiorano, ou "desceram a Campos Salles", como dizemos lá em casa, em Bebedouro, porque o cemitério municipal fica ao fim da mais longa rua da cidade, a Rua Campos Salles. Que a terra seja leve sobre eles, mais leve do que é sob nós! Mas acho que minha mãe vai ficar contente, e quem sabe até desista daquela história de querer que eu fosse o filho com "D" e "R" na frente do nome (doutor Ricardo... pode uma coisa dessas?). Pena que parte da alegria dela provavelmente vá ser estragada pelo "teor" dos poemas. "Meu filho, o que duas pessoas fazem entre quatro paredes não é da conta de ninguém... precisa ser tão aberto a respeito disso, meu filho?"
Sim, mãe. Precisa.
O medo dela é que eu acabe como Pasolini, já que tantos de nós acabam assim. Quando penso nisso, sempre me vêm à mente as palavras de Pedro na hora de morrer como seu mestre: "Eu não sou digno que..."
4 poeminhas da nova edição do
Cigarros na cama (São Paulo: Luna Parque Edições, no prelo), na "Ilustríssima" da
Folha de S. Paulo de hoje. O livro foi originalmente publicado pela
Berinjela em 2011.
Como a
Folha já deu online, creio que não se importam se eu postar os poemas aqui:
QUATRO POEMAS INCLUÍDOS AGORA NO LIVRO CIGARROS NA CAMA
Eu culpo minha corcunda,
me debrucei
demais sobre você,
esse foi meu primeiro
tropeço.
E ao embalo do seu colo,
notei logo tudo encavalar-se.
Fui seu contrapeso
de gangorra,
seu cavalo-de-balanço
capenga.
Eu corria as mãos
por suas ancas
fortes e moças
e sentia já nas minhas
os sintomas
do engessamento.
Você dançava
e eu me descadeirava,
eu expectorava
e o seu peito subia e descia
calmo. Escute o meu: range
feito roda de carroça.
E quando seus olhos
vagavam para fora
da janela, era
como se eu
fosse defenestrado.
Já era ele
este outro
que você buscava
longe, fora da sala
onde meu corpo
estava tão
ao seu alcance?
Em que momento
um eu
que era um
passa a ser só outro,
outro só?
§
Antídotos matinais,
o primeiro cigarro
e xícara de café,
as pernas bambeiam,
a cabeça fica leve,
é como experimentar
o seu amor de novo
por três segundos
toda manhã.
§
Só em caso de emergência
na precisão
de um transplante
eu doaria a você
um pulmão um rim
meio fígado falido
& se no presídio
sem grana de fiança
acarretaria os custos
ou roubaria um banco
em alto estilo-bonnie
desde que você
me desclydeficou
& se feito refém
do pentágono
da al-qaeda
de aliens
da yakuza
eu em resgate
com direito a
cavalo estandarte
e mil trombetas
mas não
não tenho tempo
para o cinema
não não
tenho tempo
para um café
não não tenho
tempo
como vai
tudo bem
§
Contando os dias
1884 anos atrás, num dia deste mês de outubro, Antínoo há-de afogar-se no Nilo.
1854 anos depois, num dia deste mês de outubro, O Moço há-de nascer.
:
ou
:
1884 anos atrás,
num dia
(como outro qualquer)
deste mês de outubro,
Antínoo
há-de morrer
entre as margens
do Nilo.
1854 anos depois,
num dia
(como outro qualquer)
deste mês de outubro,
O Moço
há-de nascer
às margens
do Reno.
:
ou
:
Antínoo morreu hoje.
Começo a contar os 677,176 dias até o nascimento d'O Moço.
:
ou
:
Estou em Paris. Hoje é 14 de julho de 1789 e fazem muito barulho fora da janela de minha cama. Suo só. Quero apenas dormir. O Moço ainda não nasceu.
:
ou
:
Depositei hoje flores às margens do Reno. Fiz uma oração por Antínoo, a um Deus que ele não adorou.
:
ou
:
Soube que um substituto meu tornou oficial a religião dos escravos. Desaprovam as lindas estátuas de Antínoo. Quereria morrer no Nilo, mas espero às margens do Reno.
:
ou
:
Antínoo é morto. O Moço ainda não nasceu. Minha mulher queixa-se de minhas lamúrias pelos cantos. Ela chama-se Sabina. Raptem-na, por favor.
:
ou
:
___ Eclodiu a Guerra!
___ Onde?! Não façam crateras onde há-de nascer O Moço!
:
ou
:
Houvesse nascido às margens do Reno quando Antínoo ainda não singrara pelo Nilo, teria eu chamado O Moço de bárbaro? Não. Sob minhas tetas de loba, substituiria Rômulo e Remo.
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