quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

7 poemas publicados nos anos 90, lidos nos 90, e formativos para mim

Esta postagem é apenas uma homenagem a estes poemas, publicados nos anos 90. Eu os descobri entre meados e fim da década. Eles fizeram muito por mim. Não estou dizendo que são os melhores da década, nem estou sugerindo que sejam leitura obrigatória da FUVEST. Não os estou chamando de nada além de poemas que foram formativos para mim, de acordo com o que eu estava procurando naquele momento. Não estão incluídos, por exemplo, grandes poemas da década que eu só vim a descobrir mais tarde. Eu saúdo os poemas e seus autores aqui.

SETE POEMAS PUBLICADOS NOS ANOS 90
(que me enlouqueceram em terra de sãos)

Mula de Deus

I

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Alta, dourada, me pensei.
Não esta pardacim, o pelo fosco
Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO.

Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO
Lavei com a língua os cascos
E as feridas. Sanguinolenta e viva
Esta do dorso
A cada dia se abre carmesim.

Se me vires, SENHOR, perdoa ainda.
É raro, em sendo mula, ter a chaga
E ao mesmo tempo
Aparência de limpa partitura
E perfume e frescor de terra arada.

II

Há nojosos olhares sobre mim.

Um rei que passa
E cidadãos do reino, príncipes do efêmero.
Agora é só de dor o flanco trêmulo.

Há nojosos olhares. Rústicos senhores.

Açoites, fardos, vozes, alvoroço.
E há em mim um sentir deleitoso
Um tempo onde fui ave, um outro
Onde fui tenra e haste.

Há alguém que foi luz e escureceu.
E dementado foi humano e cálido.
Há alguém que foi pai. E era meu.

III

Escrituras de pena (diria mais, de pelos)
De infinita tristura, encerrada em si mesma
Quem há de ouvir umas canções de mula?

Até das pedras lhes ouço a desventura.
Até dos porcos lhes ouço o cantochão.
E por que não de ti, poeta-mula?

E ornejos de outras mulas se juntaram aos meus.
Escoiceando os ares, espumando de gozo
Assustando mercado e mercadores

Alegrou-se de mim o coração.

IV

Um dia fui o asno de Apuléius.
Depois fui Lucius, Lucas, fui Roxana.
Fui mãe e meretriz e na Betânia
Toquei o intocado e vi Jeshua.
(Ele tocou-me o ombro aquele Jeshua pálido).

Um tempo fui ninguém: sussurro, hálito.
Alguém passou, diziam? Ninguém, ninguém.

Agora sou escombros de um alguém.
Só caminhada e estio. Carrego fardos

Aves, patos, esses que vão morrer.
Iguais a mim também.

V

Ditoso amor de mula, Te ouvi murmurando
Ó Amoroso! Ditoso amor de mim!
Poder amar a Ti com este corpo nojoso
Este de mim, pulsante de outras vidas
Mas tão triste e batido, tão crespo
De espessura e de feridas.

Ditoso amor de mim! Tão pressuroso
De amar! (E de deitar-se ao pé
De tuas alturas). Corpo acanhado de mula

Este de mim, mas tão festivo e doce
Neste Agora
Porque banhado de ti, ó FORMOSURA.

VI

Tu que me vês
Guarda de mim o olhar.
Guarda-me o flanco.
Há de custar tão pouco
Guardar o nada
E seus resíduos ocos.

Orelhas, ventas
O passo apressado sob o jugo
Casco, subidas
Isso é tudo de mim
Mas é tão pouco...

Tu que me vês
Guarda de mim, apenas
Minha demasiada coitadez.

VII

Que eu morra junto ao rio.
O caudaloso frescor das águas claras
Sobre o pelo e as chagas.

Que eu morra olhando os céus:
Mula que sou, esse impossível
Posso pedir a Deus. E entendendo nada
Como os homens da Terra
Como as mulas de Deus.

VIII

Palha
Trapos
Uma só vez o musgo das fontes
O indizível casqueando o nada

Essa sou eu.

Poeta e mula

(Aunque pueda parecer
Que del poeta es locura)

--- Hilda Hilst, in Estar sendo. Ter sido (1996)

§

Ode a minha perna esquerda

1

Pernas
para que vos quero?

Se já não tenho
por que dançar.

Se já não pretendo
ir a parte alguma.

Pernas?
Basta uma.

2

Desço
         que                      subo
               desço         que
                        subo
                       camas
                      imensas.

Aonde me levas
todas as noites
         pé morto
         pé morto?

Corro, entre fezes
de infância, lençóis
hospitalares, as ruas
de uma cidade que não dorme
e onde vozes barrocas
enchem o ar
de p
     a
     i
     n
     a sufocante
e o amigo sem corpo
zomba dos amantes
a rolar na relva.

         Por que me deixaste
                             pé morto
                             pé morto
          a sangrar no meio
          de tão grande sertão?

                               não
                               n ã o
                               N Ã O !

3

Aqui estou,
Dora, no teu colo,
nu
como no princípio
de tudo.

Me pega
me embala
me protege.

Foste sempre minha mãe
e minha filha
depois de teres sido
(desde o princípio
de tudo) a mulher.

4

Dizem que ontem à noite um inexplicável morcego
     assustou os pacientes da enfermaria geral.

Dizem que hoje de manhã todos os vidros do ambu-
     latório apareceram inexplicavelmente sem tampa,
     os rolos de gaze todos sujos de vermelho.

5

Chegou a hora
de nos despedirmos
um do outro, minha cara
data vermibus
perna esquerda.
A las doce em punto
de la tarde
vão-nos separar
ad eternitatem.
Pudicamente envolta
num trapo de pano
vão te levar
da sala de cirurgia
para algum outro (cemitério
ou lata de lixo
que importa?) lugar
onde ficarás à espera
a seu tempo e hora
do restante de nós.

6

esquerda     direita
esquerda     direita
                       direita
                       direita

    Nenhuma perna
    é eterna.

7

Longe
do corpo
terás
doravante
de caminhar sozinha
até o dia do Juízo.
Não há
pressa
nem o que temer:
haveremos
de oportunamente
te alcançar.

Na pior das hipóteses
se chegares
antes de nós
diante do Juiz
coragem:
não tens culpa
(lembra-te)
de nada.

Os maus passos
quem os deu na vida
foi a arrogância
da cabeça
a afoiteza
das glândulas
a incurável cegueira
do coração.
Os tropeços
deu-os a alma
ignorante dos buracos
da estrada
das armadilhas do mundo.

Mas não te preocupes
que no instante final
estaremos juntos
prontos para a sentença
seja ela qual for
contra nós
lavrada:
as perplexidades
de ainda outro Lugar
ou a inconcebível
paz
do Nada.


--- José Paulo Paes, in Prosas seguidas de odes mínimas (1992).

§

Do fundo do quintal

1. Lírio e urze do meu deserto jardim
ei-la venuta al punto della rota
sem sequer entender por que a escolha feita
resultou nesse impasse
que a levou a partir, a ir-se embora,
deixando-nos à míngua, sem aquela
esperada eclosão da semente, da eclosão,
força do tigre na floresta solto,
corpo suave entre a dobras do lençol,
a cabeça encostada no meu peito,
o coração ardendo, o coração, e a luz
nos olhos sempre erguidos
na sua direção

... dela que está à espera de que alguma coisa
a surpreenda, mas se alguma coisa não for
o que esperamos, como estar a seu lado nesse instante
em que ninguém sabe ninguém
se essa espera ao menos pode ser a espera
que alguém quer alguém quis,
sem ao menos saber se algum dia

... a espera num mundo que no entanto nos permite
que se guarde a ternura colhida
em qualquer parte, mesmo aqui,
no objeto de uso mais cotidiano:
chávena chave cave cama
carta papéis antigos mapas
que orientam no escuro este vazio
escavado no meu peito
um poço um fosso
sem fundo.

Em Lisboa onde estás onde estou
o pensamento o tempo todo o calor
cada vez mais insuportável,
da janela vê-se o mar:
que paisagem esta do Rio,
dizem todos, que paisagem,
e eu com o pensamento neste quarto de hotel
onde estás à espera sem saber
e tão-só...
entre nós o oceano entre nós
o medo o medo um segredo
que aos poucos nos destrói, sou
um destroço uma coisa
jogada à areia fina, uma coisa.

De alguma forma eu talvez soubesse
e não adiantava, alta a árvore
crescia crescia e não adiantava
que soubesses que eu talvez sabia
que era inútil tentar alguma coisa;
a luz do fogo te atraía a luz do fogo
aceso na cozinha.

De algum forma todos nos queimamos algum dia;
de alguma forma mesmo sem fogo sob o frio sob a chuva
que não passa o calor é terrível
no Rio de Janeiro, quem diria,
quando morei aqui na tua idade
não era assim, agora todos sofrem,
todos dizem que calor infernal
que calor dizem todos e é tudo
muito estranho tudo...

Sou um canteiro onde floresces
e nem sabes, sou o caule
indeciso do teu intenso modo de querer,
a linha reta que jamais se alcança,
a hipotenusa de um triângulo qualquer,
o bule sobre a mesa, a música de Bach,
o pássaro pousado na videira
do fundo de um quintal ou de um jardim
onde ninguém sabe, ninguém jamais ficou sabendo,
que este canteiro existe,
que este canteiro não obstante existe.


--- Marly de Oliveira, in O mar de permeio (1997)

§

Fábrica do poema

sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite da pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?

(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra “recalcado” é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema)

         pois a questão chave é:
         sob que máscara retornará?



--- Waly Salomão, in Algavarias (1996)

§


Q'el bixo s'esgueirando assume ô tempo

Quando cheguei ao
sanatório
em Correas com 
uma horrível
maleta
cor-de-abóbora e vi
os canteiros de
crista-de-galo
e me disse parecem
de fato cristas
de galo
isso foi
num relance que
eu estava mesmo
era com medo de morrer

semanas mais
tarde na
varanda
do quarto (na
doce luz 
da manhã) debruçado
olhando os
canteiros vi um galo
no meio das
cristas-de-
galo e me disse 
o quê? um galo? não
deve ser é só
porque aquele dia
pensei que essas
plantas se parecem com
cristas mas aí
o galo andou e saiu de entre as plantas.


--- Ferreira Gullar, in Muitas vozes (1999)

§

Teia

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
               prenhe:

no
centro
a aranha espera.


--- Orides Fontela, in Teia (1996)

§

Os deslimites da palavra

Dia Um 

1.1 

Ontem choveu no futuro. 
Águas molharam meus pejos 
Meus apetrechos de dormir 
Meu vasilhame de comer. 
Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha. 
Minha canoa é leve como um selo. 
Estas águas não têm lado de lá. 
Daqui só enxergo a fronteira do céu. 
(Um urubu fez precisão em mim?) 
Estou anivelado com a copa das árvores . 
Pacus comem frutas de carandá nos cachos. 

1.2 

Eu hei de nome Apuleio. 
Esse cujo eu ganhei por sacramento. 
Os nomes já vêm com unha? 
Meu vulgo é Seo Adejunto - de dantes cabo-adjunto por
servimentos em quartéis. 
Não tenho proporções para apuleios. 
Meu asno não é de ouro. 
Ninguém que tenha natureza de pessoa pode esconder as suas
natências. 
Não fui fabricado de pé. 
Sou o passado obscuro destas águas?

1.3 

Eu vim pra cá sem coleira, meu amo. 
Do meu destino eu mesmo desidero. 
Não uso alumínio na cara. 
Quando cheguei neste lugar - 
Só batelão e boi de sela trafegavam. 
Aqui só dava maxixo e capivara. 
Mosquito usava pua de 3/4 . 
Falo sem desagero. 
Desculpe a delicadeza. 
Meu olho tem aguamentos. 
(Fui urinado pelas ovelhas do Senhor?) 

1.4 

Insetos cegam meu sol. 
Há um azul em abuso de beleza. 
Lagarto curimpãpã se agarrou no meu remo. 
Os bichos tremem na popa. 
Aqui até cobra eremisa, usa touca, urina na fralda. 
Na frente do perigo bugio bebe gemada. 
Periquitos conversam baixo. 
................................................................ 
Sou puxado por ventos e palavras.
(Palestrar com formigas é lindeiro da insânia?) 

1.5 

Eu sei das iluminações do ovo . 
Não tremulam por mim os estandartes. 
Não organizo rutilâncias 
Nem venho de nobrementes . 
Maior que o infinito é o incolor. 
Eu sou meu estandarte pessoal. 
Preciso do desperdício das palavras para conter-me. 
O meu vazio é cheio de inerências. 
Sou muito comum com pedras. 
.......................................... 
(O que está longe de mim é preclaro ou escuro?) 

1.6 

Tenho o ombro a convite das garças. 
............................. 
............................. 
(Tirei as tripas de uma palavra?) 
................................... 
A chuva atravessou um pato pelo meio. 
................................... 
Eu tenho faculdade pra dementes? 
................................... 
A chuva deformou a cor das horas. 
................................... 
A placidez já põe a mão nas águas.

1.7 

Do que não sei o nome eu guardo as semelhanças. 
Não assento aparelhos para escuta 
E nem levanto ventos com alavanca. 
(Minha boca me derrama?) 
Desculpem-me a falta de ignorãças. 
Não uso de brasonar. 
Meu ser se abre como um lábio para moscas. 
Não tenho competências pra morrer. 
O alheamento do luar na água é maior do que o meu. 
O céu tem mais inseto do que eu? 

Segundo Dia

2.1 

Não oblitero moscas com palavras. 
Uma espécie de canto me ocasiona. 
Respeito as oralidades. 
Eu escrevo o rumor das palavras. 
Não sou sandeu de gramáticas. 
Só sei o nada aumentado . 
Eu sou culpado de mim. 
Vou nunca mais ter nascido em agosto. 
No chão de minha voz tem um outono. 
Sobre meu rosto vem dormir a noite. 

2.2 

Lugar sem comportamento é o coração. 
Ando em vias de ser compartilhado. 
Ajeito as nuvens no olho. 
A luz das horas me desproporciona. 
Sou qualquer coisa judiada de ventos. 
Meu fanal e um poente com andorinhas. 
Desenvolvo meu ser até encostar na pedra. 
Repousa uma garoa sobre a noite. 
Aceito no meu fado o escurecer. 
No fim da treva uma coruja entrava. 

2.3 

Escuto a cor dos peixes. 
Essa vegetação de ventos me inclementa. 
(Propendo para estúrdio?) 
O escuro enfraquece meu olho. 
Ó solidão, opulência da alma! 
No ermo o silêncio encorpa-se. 
A noite me diminui. 
Agora biguás prediletam bagres. 
Confesso meus bestamentos. 
Tenho vanglória de niquices. 
............................. 
(Dou necedade às palavras?) 

2.4 

Um besouro se agita no sangue do poente. 
Estou irresponsável de meu rumo. 
Me parece que a hora está mais cega. 
Um fim de mar colore os horizontes . 
Cheiroso som de asas vem do sul. 
Eis varado de abril um martim-pescador! 
(Sou pessoa aprovada para nadas?) 
Quero apalpar meu ego até gozar em mim. 
Ó açucenas arregaçadas. 
Estou só e socó. 

2.5 

Ando muito completo de vazios. 
Meu órgão de morrer me predomina. 
Estou sem eternidades. 
Não posso mais saber quando amanheço ontem. 
Está rengo de mim o amanhecer. 
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha. 
Atrás do ocaso fervem os insetos. 
Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino. 
Essas coisas me mudam para cisco. 
A minha independência tem algemas.

2.6 

As sujidades deram cor em mim. 
Estou deitado em compostura de águas. 
Na posição de múmia me acomodo. 
Não uso morrimentos de teatro. 
Minha luta não é por frontispícios . 
O desenho do céu me indetermina. 
O viço de um jacinto me engalana. 
O fim do dia aumenta meu desolo. 
Às vezes passo por desfolhamentos. 
Vou desmorrer de pedra como um frade

2.7 

O ocaso me ampliou para formiga. 
Aqui no ermo estrela bota ovo. 
Melhoro com meu olho o formato de um peixe. 
Uma ave me aprende para inútil. 
A luz de um vagalume se reslumbra. 
Quero apalpar o som das violetas. 
Ajeito os ombros para entardecer. 
Vou encher de intumências meu deserto. 
Sou melhor preparado para osga. 
O infinito do escuro me perena. 

Terceiro Dia 

3.1 

Passa um galho de pau movido a borboletas: 
Com elas celebro meu órgão de ver. 
Inclino a fala para uma oração . 
Tem um cheiro de malva esta manhã. 
Hão de nascer tomilhos em meus sinos. 
(Existe um tom de mim no anteceder?) 
Não tenho mecanismos para santo . 
Palavra que eu uso me inclui nela. 
Este horizonte usa um tom de paz. 
Aqui a aranha não denigre o orvalho. 

3.2 

Espremida de garças vai a tarde. 
O dia está celeste de garrinchas. 
A cor de uma esperança me garrincha. 
Engastado em meu verbo está seu ninho. 
O ninho está febril de epifanias. 
(Com a minha fala desnaturo os pássaros?). 
Um tordo atrasa o amanhecer em mim. 
Quero haver a umidez de uma fala de rã. 
Quero enxergar as coisas sem feitio. 
Minha voz inaugura os sussurros. 

3.3 

Este ermo não tem nem cachorro de noite. 
É tudo tão repleto de nadeiras. 
Só escuto as paisagens há mil anos. 
Chegam aromas de amanhã em mim. 
Só penso coisas com efeitos de antes. 
Nas minhas memórias enterradas 
Vão achar muitas conchas ressoando. . . 
Seria o areal de um mar extinto 
Este lugar onde se encostam cágados? 
Deste lado de mim parou o limo 
E de outro lado uma andorinha benta. 
Eu sou beato nesse passarinho. 

3.4 

O azul me descortina para o dia. 
Durmo na beira da cor. 
Vejo um ovo de anu atrás do outono. 
................................... 
(Eu tenho amanhecimentos precoces?) 
................................... 
Cresce destroço em minhas aparências. 
Nesse destroço finco uma açucena. 
(É um cágado que empurra estas distâncias?) 
A chuva se engalana em arco-íris. 
Não sei mais calcular a cor das horas. 
As coisas me ampliaram para menos. 

3.5 

A lua faz silêncio para os pássaros, 
- eu escuto esse escândalo! 
Um perfume vermelho me pensou. 
(Eu contamino a luz do anoitecer?) 
Esses vazios me restritam mais. 
Alguns pedaços de mim já são desterro. 
...................................... 
(É a sensatez que aumenta os absurdos?) 
De noite bebo água de merenda. 
Me mantimento de ventos. 
Descomo sem opulências. . . 
Desculpe a delicadeza. 

3.6 

Nuvens me cruzam de arribação. 
Tenho uma dor de concha extraviada. 
Uma dor de pedaços que não voltam. 
Eu sou muitas pessoas destroçadas. 
............................... 
............................... 
Diviso ao longe um ombro de barranco. 
E encolhidos na areia uns jaburus. 
Chego mais perto e estremeço de espírito. 
Enxergo a Aldeia dos Guanás. 
Imbico numa lata enferrujada. 
Um sabiá me aleluia. 

Fim.


--- Manoel de Barros, in O livro das ignorãças (1993)

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