O poeta russo Arseni Tarkóvski ensina o diretor Andrei Tarkóvski a nadar
Não sei porque esta foto
de um pai
ensinando um filho
a nadar
me emociona
o caroço do coração.
Não fosse o pai
um poeta
que amo e leio tanto
e não fosse o filho
um diretor
de filmes que vi
a perder a conta,
teria menos
significado
a mesma foto?
Mas que raio
de significado é este,
além de um pai
ensinando um filho
a manter-se vivo?
E onde e quando
esse raio significa-se,
torna-se digno
dos livros de História,
a madame retroativa?
Na premência do raio
que nasce da antetroca
de cargas elétricas
entre o solo e a nuvem?
no relâmpago-em-si?
no vácuo que esfaqueia
no ar? no trovão
que assusta os cães?
Apenas nos perdemos
nessa teia
de causas e consequências,
começos, meios e fins
que não sabemos distinguir.
E esta outra foto qualquer
de humanos ainda quaisquer,
nada mais que adolescentes
ridículos como todo apaixonado,
apenas namorados
como os milhões de outros
comuns dum entreguerras
(não é todo período
de paz
um entreguerras,
se não distração
para guerras
em algum outro lugar?)
pergunto, por que esta fotografia
deveria ser História
– a madame retroativa –
por serem os jovens
vocês,
Arseni Alexandrovich Tarkóvski
e Maria Ivánova Vishniákova
como se entre vocês dois
já estivessem contidos
os embriões
menos de seus filhos
Andrei e Marina,
do que de
O Espelho
e Stalker
e Solaris
e Nostalghia?
Eram só moço e moça,
nada mais que namorados,
coisa reles que prediz prole
nada excepcional,
e ainda não viera a guerra,
nem tinham vindo os filhos
promissores
como qualquer outra criança,
nem as primaveras, verões, outonos e invernos
sozinhos de Maria Ivánova em Iurevets
enquanto Arseni Alexandrovich lutava
com o Exército Vermelho
contra o país onde eu agora vivo.
E teria que vir a guerra
para que Tarkóvski,
o pai,
terminasse o poema
dos primeiros encontros
com Vishniákova,
a mãe futura,
com estes versos:
"Atrás de nós o destino no encalço
feito um louco agitando a navalha"
?
São sempre só retroativas
as percepções desse teor,
iluminando a treva pesada
do passado
que antes parecia iluminado?
Desde aqui,
do meu entreguerras,
amo o pai, tão lindo, e o louvo,
amo o filho, tão lindo, e o louvo,
paixonite
retroativa e confessa
por dois jovens mortos
mais a mãe, a mão
do colo e do berço
e estas fotos de uma família
toda ela agora morta
e tão corriqueira
em seus afetos
as lançam no colo da História
– a madame retroativa –
pela força incomum
de suas dádivas
e de seus dons?
Compramos com poemas
e filmes nossa memorabília,
a nossa e de nossa família,
nas lojas de lembranças
da História,
essa madame retroativa,
inimiga das notas-de-rodapé?
Eu – aqui, vivo –
obceco-me por familiares mortos
nem sequer meus,
mas sem ter os seus dons e suas dádivas,
hesito, não sei, duvido
que terei a força para descrever
e lançar no colo da madame
dos efeitos retroativos
a adoração expectante
que eu anônimo sentia
quando minha própria mãe anônima
emergia do quarto em sua camisola
– azul-marinho, pontilhada de branco –
eu que já tentei imortalizar em vocativos
– ah, prata viva! – um lambari
de estreia, pescado
ao lado do meu pai,
se nós já sabemos
aqui no futuro
do presente de vocês
que são nosso passado,
quais estampas
a navalha do destino carvou
na pele dos Tarkóvski
mas ainda está em andamento
a sua xilogravura
sobre o corpo dos Domeneck,
e se na emoção
dos meus caroços
reconheço
apenas a esclerose precoce
mas algo lúcida
de saber-me Tarkóvski
nenhum
e ciente de que sequer
hão-de sair filhos das minhas coxas?
*
Berlim, 8 de dezembro em Berlim e 7 de dezembro no Rio de Janeiro do terrível 2016 (mas não para todos). Os antecedentes de um poema importam, e onde começam? Ontem postei um artigo sobre uma família que vivera perdida na Sibéria por 40 anos. Então, Tarso de Melo recomendou que eu assistisse ao documentário 'Happy people', de Werner Herzog. Ao assistir ao documentário, surge na tela por poucos minutos um caçador siberiano chamado Anatoly Tarkovsky, que Herzog anuncia em sua voz esquisita ser parente do "famoso diretor". Ao terminar o documentário, retorno a poemas de Arseni Tarkóvski e a cenas de Andrei Tarkóvski, e vou pesquisando obsessivamente na rede até cair nesta foto. Ou meu poema capenga começa no dia em que foi feita esta foto? Por esta historieta é que dedico o poema a Tarso de Melo.
O cineasta e o poeta, jogando xadrez em Moscou em 1947, quando a guerra estava ganha, a perna
do poeta já havia sido perdida, e o amor de Arseni e Maria já havia falhado.
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