terça-feira, 18 de dezembro de 2018

As mangas e os bois




Jamais rasguei no dente
o coração de um boi
para saber se a consistência
é a mesma entre as carnes
da manga e do mamífero.
Sei que foi destinada a meus dentes
a polpa da fruta
para chegar às sementes,
desnudá-las e espalhá-las
entre bois que adubem o chão
da sua frutificação.
Percebo que o coração de boi
e a coração-de-boi
são imagem e semelhança
assim como a crista-de-galo
e o galo e sua crista.
Dizer porém o quê
da espada-de-são-jorge
e a espada de São Jorge?
Da costela de Adão
e a costela-de-adão?
Ontem, à mesa de um bar,
o amigo nomeou seu destino
nos próximos meses,
disse “Cabeça do Cachorro”,
causou susto, interrogatório.
Tudo tem provas, um mundo
cartografado com cuidado,
é isso que nos legaram
os antepassados, mortos
entre os polos Norte e Sul.
O amigo logo mostrou-nos
no mapa digital, invocável
pela voz, a região
no extremo noroeste
do país, no estado
do Amazonas, na fronteira
com Colômbia e Venezuela.
Como é possível jamais
soubesse que a terra possuía
uma cabeça de cachorro?
Nunca olhei tão longe?
Vivo nos seus intestinos.
Ora, parece-se mesmo
com a cabeça de um cachorro,
latindo, latindo, enraivecido,
pensei eu, enterrando os dentes
no coração dos bois
e na coração-de-boi,
com a minha cabeça de cão,
minhas costelas de Eva e Adão.
Talvez seja hora apenas
de aceitar o calor que colore
as mangas, esse dezembro
em que derretemos
mas, ao menos, juntos,
de amar com igual suculência
o próximo e o distante,
planejar viagens curtas e longas
ao Lago das Garças e a Chã de Alegria,
a Anta Gorda e à Cabeça do Cachorro.
Amar o nativo e o enxertado,
assim como talvez-quiçá amarmos
a nós mesmos, há tanto enxertados
como as mangas e os bovinos,
que já nos tratamos por nativos.

— São Paulo, 16 de dezembro de 2018.

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