segunda-feira, 29 de julho de 2019

“Carta à mais caçula [para ser lida por Maria Eduarda Domeneck Ramos quando chegar a hora]”




Chegada nessa gravidez tardia
da irmã caçula a esse rodízio de caçulas,
na casa onde já tombaram
a goiabeira, o coqueiro e o pé-de-acerola,
donde não mais se ouve
nem o bem-te-vi nem o fogo-apagou
e mesmo alguns humanos
jazem já no Cemitério São João Batista
da Paróquia de São João Batista
para a qual teu avô leiloou tantas leitoas,
bem-vinda a esse planeta delicioso e terrível,
bebezinha qual matriosca às avessas,
na qual a versão menor esconde a maior,
tendo já em si a mulher fortíssima que serás
pois assim foram tua bisavó, tua avó e tua mãe.

Não conhecerás alguns de nós,
a Dona Rosária das cidreiras e pirões,
a Dona Concheta da romãzeira e hortelã,
tampouco Seu João, o Garganta de Ouro.
Mesmo assim, bem-vinda à família penhorada.
Há muitos de nós ainda
para tentar te defender dos tropeços
que nós mesmos demos,
conselhos que por certo ignorarás
como ignoramos os que nos foram dados.

Aqui aprenderás entre as milhares de línguas
do planeta uma única língua específica
com as intonações particulares
desse país, região, comarca e casa
das terras da Vila de São Sebastião do Bebedor
cuja gleba foi paga a prestações de porcos
e a última com um cavalo de sela arriada,
onde temos dificuldade com plurais e pronomes
pois em nós mesmos jaz uma língua-fantasma.
Dou-te o primeiro conselho,
que só um Domeneck entenderá:
Não adianta ser uma boca-de-Leandro
nessa viagem Rua Campos Salles abaixo.
Há que se lutar e amar com o miocárdio
que nos foi dado. Este que te bate.

Nesse fim-de-mundo-grande sem porteiras
começarás a aprender certas coisas
importantes para a universalidade nacional
como a maneira com que cai a renda
das famílias conforme se distancia a rua
de suas casas do Lago de Bebedouro,
e como, apesar de bonita como um parque,
te será proibido entrar na Chácara Furquim
porque é propriedade privada
assim como não poderás colher laranja alguma
dos laranjais imensos que circundarão tua infância.
Ao Horto Florestal, serás avisada
nunca ir sozinha por ser menina, por ser mulher.
Desses perigos saberás a tempo.

Mas há prazeres de graça. Verás.
Tem o bumba-meu-boi e o circuladô-de-fulô,
o carnaval e a procissão e a eleição,
a chuva e o toró, tem as canções de fossa
para as paixonites agudas.
As dores de amor gostoso virão com o exército
de cigarras-do-cafeeiro que já nem sei
se ainda infernizam as primaveras.
Muita coisa já sumiu, escafedeu-se.

Tem os doces açucaradíssimos
pois se moveu por séculos o açúcar a colônia
por que não abusarmos dele hoje?
Muito sangue derramado por café e açúcar
corre agora em teu sangue adocicado
e verás em casa como o açúcar do café
ferve-se junto já de sua água.
Tem a Nossa Senhora negra e a Iemanjá branca
e mesmo teu avô, católico apostólico romano,
não deixava de fazer suas oferendas ao mar
depois de rezar seu terço.
Mas é possível que parte da família te alerte
sobre a interdição de imagens de barro.
E o mar é longe, mas tem dezembro. Tem janeiro.
Janeira-se muito por aqui,
como janeiraste em pleno julho.

Teu avô nasceu sob Getúlio Vargas.
Tua mãe e eu, teu tio, sob Ernesto Geisel.
Um dia aprenderás estes nomes.
Eles agora não te importam
como o leite e o colo.
Estes nomes são apenas as cólicas do futuro.
Por ora deixe conosco as dores de agora.
Cuide cicatrizar na barriga o cordão-umbilical
que secará e será enterrado no quintal.
Esta será tua primeira cicatriz.
Te desejo que teu tempo te seja mais leve
do que nos foi o nosso, e em meio
a alegria muita e alergia nenhuma
cresças para descobrir
as delícias-desgraças de tua terra,
as desgraças-delícias de sermos o que somos.

*

Berlim, 25 a 28 de julho de 2019

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segunda-feira, 8 de julho de 2019

HOMENAGEM JOANINA


João Cabral de Melo Neto & João Gilberto


um dia dirão:‬
‪houve joões
‪nesse inferno
‪de tabeliães,
‪cabral e gilberto,
‪a cantar chãs
‪com a elegância ‬
dos pães.

anti-supérfluos
deram a lição:
‪antes ser cães ‬
‪ágeis a leões
de dó e dengo.
‪eis o alerta‬
‪contra o joio
e os rojões.

menos pedras
do que tijolos,
disseram:
amem o silêncio
mas não em excesso,
pois nos corpos
nua é a voz,
o barro de joões.

pau seco, bossa.
brio de candeia.
garbo de cartola.
do aleijado destro,
um útero-igreja
em ouro preto.
a pedra-pomes
à pele morta.

dos cadivéus,
a redoma de ocas.
chega! abaixo
os panteões.
filhos somos
de corujas-diabos,
urubus-reis,
caboclos gaviões.

nada fomos
além ou aquém
do que somos:
micos de ouro
e não leões,
mas nos quais mora
a força de onças.
bicos de falcões.

*

7 de julho de 2019

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quarta-feira, 3 de julho de 2019

Francisco Bley & Ricardo Domeneck - "Os afazeres" (vídeo de Frederico Klumb)

Com Francisco Bley no estúdio Mylo em Curitiba, janeiro de 2019

‘Os afazeres’ é uma colaboração que nasceu em 2018 quando conheci o compositor curitibano Francisco Bley em minha passagem pela capital paranaense. Bley, que já trabalhou em peças sonoras de poesia falada com poetas como Elisa Lucinda, compôs e propôs essa bela peça eletroacústica ao piano com sons processados, à qual decidi unir com minha voz o poema “Os afazeres domésticos”. Retornei a Curitiba em janeiro de 2019 e gravamos o texto no estúdio Mylo. Com a peça pronta, convidamos o carioca Frederico Klumb para a composição visual que acompanharia a colaboração, e estamos muito felizes de poder mostrar agora essa tríade entre música, texto e imagens. No entanto, trata-se de uma colaboração ainda maior: montada a partir de imagens de arquivos familiares, precisamos agradecer a todos os amigos e colegas que atenderam ao chamado e nos enviaram fotografias de suas infâncias em vários cantos do país. A estas imagens, Frederico uniu outras do arquivo histórico do país. E assim, aqui estão os afazeres. 


 –– Ricardo Domeneck, junho de 2019





Os afazeres domésticos
Ricardo Domeneck


           “Há-de nascer de novo o micondó —
            belo, imperfeito, no centro do quintal.”
                         –– Conceição Lima


É o nosso trabalho dizer agora que hão-de
renascer o capim-cidreira, o boldo e a hortelã
para os rins, os fígados, os intestinos da família
morta já pela metade, ainda que se espargira sal
sobre a terra dos quintais tomados pelo agiota,
e o dizer em ritmo propício à canção de ninar.

E que as mãos da vó quebrarão o pescoço
dos frangos caseiros para o pirão, que há-de
alimentar por dias as mulheres de resguardo
que ao dar à luz indenizaram a família por velórios,
mesmo que daquelas rugas restem só carpos
e metacarpos brancos de cálcio no jazigo do clã.

E que o vô morto voltará em sonho para ralhar
até a bandeira nacional mudar de cor
com estes desnaturados que não se cansam
de dar desgosto a seus antepassados
que cruzaram oceano não só para a desgraça
trocar de passaporte e vegetação ao fundo.

E é nosso trabalho dizer que os avós sequestrados
d’além mar hão-de alforriar-se em nossos corpos
e que os antepassados deste lado do Atlântico
hão-de reaver seus quinhões de terra preta,
e juntos, entre a hortelã, o boldo e o capim-cidreira,
de mão em mão as xícaras da saúde que nos elide.

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