sábado, 9 de maio de 2020

Do não-mistério da poesia

Algumas pessoas assumem ares misteriosos quando vão falar sobre poesia. Um certo dedo sacerdotal. Em geral, o trabalho do poeta é isso: trabalho. Adquire-se ao longo da vida uma técnica, aprende-se um truque de pônei. Ou dois, os mais sortudos. Porque os deuses, queridos, não amam igualmente. Você já deve ter percebido. Passa-se a vida se preparando para um texto que talvez não chegue. Porque o que chegou a sua cabeça uma jamanta antes do poema. Aquele que nos iludimos crendo que nos justificaria. Como diz com ar de muito cansaço naquela entrevista, “é tudo tão incerto”. É, dona Clarice.

Não me entendam mal. Não é que eu não ache que haja regiões misteriosas no trabalho poético. Mas estes são muito raros. São dádivas do duende. E o duende dá o que der, quando der, onde e se assim estiver disposto. Não adianta sintonizar a rádio nos anéis de Saturno. Não adianta estumar as musas com uma colher-de-pau. Não adianta usar estilingues para chamar a atenção dos anjos do senhor Rilke.

É que a raridade desses poemas jamais vai garantir o pão na mesa. E se precisa do pão na mesa. Então se trabalha. Pesquisa-se. Fazemos coleção de palavras. “Como se chama aquele bicho ali, em sons que ele próprio não entenderia?” Sim. Conhecer bem a fauna e a flora de sua região. Essas coisas que parecem quinquilharias para muita gente. Entender como são feitas as mais corriqueiras das coisas. Seu lençol. Você sabe como é feito seu lençol? Há milênios ali. E seu pão? Como é feito seu pão? Outros milênios, irmão.

Existe um texto de Carlos Drummond de Andrade sobre o aniversário de cinqüenta anos de Joaquim Cardozo, em que ele diz que 50 é uma boa idade para poetas. “O mel está apurado: Joaquim Cardozo completou cinquenta anos, boa idade para poetas”. Esse ano eu vou fazer 43, e estou começando a entender o que Drummondão quis dizer. Que aprendizagem longa! E queridos, se o que querem é holofote, escolheram a profissão errada. São ninharias. O mel do melhor.

A coisa é muito séria. O mais sério dos siricuticos. Nós fazemos as mais essenciais das bugigangas, queridos concidadãos. Veja por entre meus dedos como está assustado em minha mão um tico-tico. Como explicar que às vezes o mais essencial pode parecer completamente supérfluo?

Há pouco, morreu um poeta no país, sim, um poeta que escreveu: “Acreditar na existência dourada do sol / Mesmo que em plena boca / Nos bata o açoite contínuo da noite”. Não haverá prece mais apta no meio do inferno.

Com que voz cantam? Canta-se ainda no Brasil? Porque, como disse sucintamente a senhora Orides Fontela num poema intitulado “Exemplos”, sempre muito sucinta: “Platão / fixando as formas // Heráclito / cultuando o fogo // Sócrates / fiel ao seu daimon.”

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