As pausas do meio-dia e da meia-noite
a Frederico Nercessian
ao topo desse mastro
na rota
entre Ítaca e o Atol
das Rocas
sinto-me o periscópio
de um submarino
como se o tronco
de que o mastro foi feito
fosse um metrônomo
ou rede que balouça
à beira de barrancos
e abismos
sigo atordoando
o peito
contra as ondas
nesse afogamento
que de tão lento
quiçá evolva
guelras
e barbatanas
inclino
a cabeça e o torso
para que minha espinha
dorsal
herdada de um peixe
ora retorne
a sua origem horizontal
como se estende
um tapete
para uma prece
a Meca
ou a Terra
inclina-se em eixo
de anuência ao sol
e se eu estiver perdido
entre Itaparica e Ítaca
ou entre Ártico e Antártica
não quero nem o chororô
das falsas-orcas
que erguem suas cabeças
sobre o espelho da água
e então submergem
para entoar seu réquiem
nem observar o êxtase
dos peixes-bois
que boiam no sorriso
constante duma alegria herbívora
e então emergem
para baforar seu samba-enredo
cansa-me a flor noturna do cacto
que manda carunchos ao solo
por uma única madrugada
cansa-me o campo de girassóis
que dançam com juba loira
no meio-dia do sol da meia-noite
quero contraste nos meus olhos
para a sombra que se desenha
entre luz e obstáculo
como num piquenique
no eclipse minguante
e na lua crescente
sim e sim
que em minhas gaiolas
só cantem os pássaros
que cantam
logo antes do crepúsculo
logo depois da alvorada
como ao mirarmos o sol em cheio
fechamos os olhos
e na escuridão da noite sem lua
os arregalamos
*
Berlim, abril/maio de 2020
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