segunda-feira, 25 de maio de 2020

Uma fotografia com Victor Heringer



Uma foto com Victor Heringer. Que aperto no peito. Não me lembrava dessa chapa, e trombei com ela agora numa pasta velha. Sei até a data. Reconheço o lugar. Estamos na Casa Villarino, o antigo reduto de Tom Jobim e Vinicius de Moraes no centro do Rio de Janeiro. Foi após nossa performance no MAM - Museu de Arte Moderna, no dia 12 de janeiro de 2012. Foi uma noite linda. Apresentaram-se ainda Marília Garcia, Ismar Tirelli Neto, Dimitri BR & Joel Gibb (The Hidden Cameras). O arquivo diz que a fotografia é de Taddei, mas não sei ao certo. A noite só havia sido possível graças à generosidade de Marta Mestre e Carlito Azevedo. Quantas saudades do cavaleiro-cavalheiro Victor Heringer (1988-2018).

*

“No começo nosso planeta era quente, amarelento e tinha cheiro de cerveja podre. O chão era sujo de uma lama fervente e pegajosa.

Os subúrbios do Rio de Janeiro foram as primeiras coisas a aparecer no mundo, antes mesmo dos vulcões e dos cachalotes, antes de Portugal invadir, antes de o Getúlio mandar construir casas populares. O bairro do Queím, onde nasci e cresci, é um deles. Aconchegado entre o Engenho Novo e Andaraí, foi feito daquela argila primordial, que se aglutinou em diversos formatos: cães soltos, moscas e morros, uma estação de trem, amendoeiras e barracos e sobrados, botecos e arsenais de guerra, armarinhos e bancas de jogo do bicho e um terreno enorme reservado para o cemitério. Mas tudo ainda estava vazio: faltava gente.

Não demorou. As ruas juntaram tanta poeira que o homem não teve escolha a não ser passar a existir, para varrê-las”.

— Victor Heringer, ‘O amor dos homens avulsos’

*

Não era a essa foto que eu me referia em minha elegia ao amigo do peito. Mas vale também, de certa forma. Victor tinha o jeito de direcionar o próprio cérebro ao peito do interlocutor.

VICTOR HERINGER UNE-SE AOS EGUNS
[Ricardo Domeneck]

1.

Como naquela rara fotografia
juntos, com sua cabeça
a pender sobre meu peito,
esse gesto que diz entre nós
muito mais do que o aperto de mão,
muito mais do que o beijo na boca,
porque é o colo,
aquele que em nossa terra
expandimos para além da caixa torácica
para ir da garganta até os joelhos,
como a rede em que nos embalavam
as mães antigas,
como as cadeiras em que nos ninam
as mães novas,
cantarolando que a Cuca
não há-de vencer.

2.

Estava entre amigos
quando as mensagens de voz de amigos
começaram a entupir meu telefone
mas as ignorei, por estar entre amigos
e aos amigos presentes dá-se
toda prioridade,
como você mesmo o faria,
gladiador da ternura e do candor.

3.

É só uma notícia. Uma notícia. Pasmo
de susto, assustei eu mesmo
os vivos na sala, ao dar uma golfada de ar
adentro, como quem emerge a cabeça
para fora d’água segundos antes
de afogar-se, mas em verdade
submergia naquele instante.

4.

É como se houvesse morrido
a última gentileza.
Hoje extinguiram-se deveras
todos os dodôs.

5.

As pequenas ruas da Glória e do Catete
perderam um historiador, nestes tempos
em que não há mais historiadores de ruas.
Você sai das ruas da Glória e do Catete
e passa a fazer parte da história das ruas.

6.

Estão imediatamente órfãos alguns objetos
que só você teria visto como importantes:
uma pena de pombo qualquer, uma pedra
ou concha, que você teria erguido
em amuleto.

7.

Tenha sido cândido, gentil e terno
como era você, cavalheiro, cavaleiro,
Omolú ao cortar o cordão de prata.

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