segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Alguns comentários sobre o vocabulário e as formas de 'Batendo pasto', livro de Maria Lúcia Alvim

 

O VOCABULÁRIO BATENDO PASTO

O novo livro de Maria Lúcia Alvim lança mão de um vocabulário mais preciso do que precioso. Escrito no interior do país, ele traz uma especificidade localista, contextual. Diz o que diz porque o diz onde o diz. Ao mesmo tempo, recorre a palavras da língua que parecem balançar-se entre a simplicidade da fala quotidiana e a exuberância das raridades antigas. Comum aqui, raro ali.

Decidi compartilhar algumas luso-pepitas [bem brasileiras] com vocês, vindas do livro. Esta aparece em um dos poemas publicados pelo Suplemento Pernambuco. Nos versos:

“Eu era assim na voz dos minuanos
E pela primavera, eu era assim”

Ao corrigir as provas e cotejar com o manuscrito, em vários momentos solto um “Ora, mas que diabo é _____?”. Nesse caso, um MINUANO. Minuano?

MINUANO mi·nu·a·no 
substantivo masculino

1. Denominação de uma das etnias autóctones do território brasileiro, povo indígena minuano.
2. Vento do sudoeste, seco e frigidíssimo, que se manifesta no Inverno, após as chuvas, no Sul do Brasil.

Aqui se percebe a maestria da simplicidade rica. A palavra “voz” no primeiro verso, por ser uma faculdade associada aos seres humanos, leva-nos a crer que Maria Lúcia Alvim está invocando o povo indígena. Mas se seguimos a rede de oposições que o poema tece, ao se referir à primavera no verso seguinte, o minuano se torna também o vento invernal. Sem qualquer pirotecnia, ela usa as duas acepções da palavra. 

Há outras coisas belas de mescla no poema, como a junção de uma linguagem de ciranda à forma do soneto, em que uma ao mesmo tempo apoia e desarma o outra. Leia o poema todo, depois siga para o Suplemento para ler os outros.


“Eu era assim no dia dos meus anos
E quando me casei, eu era assim
Eu era assim na roda dos enganos
E quando me apartei, eu era assim

Eu era assim caçula dos arcanos
E quando me sovei, eu era assim
Eu era assim na voz dos minuanos
E pela primavera, eu era assim

Enquanto fui viúva, eu era assim
Enquanto fui vadia, eu era assim
E pela cor furtiva, eu era assim

No amor que tu me deste, eu era assim
E trás da lua cheia, eu era assim
E quando fui caveira, eu era assim”

*

Para a quarta-capa de Batendo pasto, o novo livro de Maria Lúcia Alvim a sair em breve pela Relicário Edições, selecionamos um poema que não é só um dos meus favoritos no volume. Há nele um verso que tem me ajudado a respirar — “o capim é minha grande reserva interior” — e que poderia ser discutido para uma compreensão de toda a poética e ética que guiam o trabalho. 

Pois não me parece tratar-se apenas da tradição lírica ou quiçá neo-árcade de um louvor do rural, de um ‘carpe diem’ que chame a atenção de nossos sentidos gastos, baços, para a beleza-simplicidade das coisas. O momento fugidio, etc.

Talvez mais até do que a importância e a dignidade das vidas menores num mundo utilitarista, a poeta aponte para a imprescindibilidade mesma dessas coisas para seguirmos sendo, para nos mantermos vivos ante a hierarquização de tudo segundo sua rentabilidade. Como um gentil recado contra a nossa húbris de colosso pobre. É o que gosto de ler nesse verso.


Manhã sem rusga
pequeno depósito de agrura na poça
exorbitei de alegria
a abóbada celeste não dá vazão
silos de silêncio
ó ser astral
o capim é minha grande reserva interior
a esperança
desleixo
 

*

O poema mais longo do Batendo pasto [Belo Horizonte: Relicário Edições, no prelo], de Maria Lúcia Alvim, intitula-se "Litania da lua e do pavão", e é também um dos mais longos de sua obra, só encontrando paralelos no seu trabalho de caráter épico no Romanceiro de Dona Beja (1979). É, ao mesmo tempo, muito diferente daqueles poemas narrativos, e uma peça única em sua poesia, na qual a inteligência eminentemente associativa do poeta se mostra em seu funcionamento. Os primeiros versos leem:


Piedade lua 
De castidade

Luva de Ismália 
Chapéu de palha

Olho propina 
Escarlatina

Primopolia 
Do todavia

Tu mastodonte 
Anacreonte


Nesse texto a poeta permite o vagar associativo da mente por sons e sentidos, num poema que me lembra dois outros exemplos de inteligência associativa na poesia brasileira. Em primeiro lugar, o poema "Isso é aquilo", de Carlos Drummond de Andrade, também longo, no qual se lê na primeira seção:


O fácil o fóssil
o míssil o físsil
a arte o infarte
o ocre o canopo
a urna o farniente
a foice o fascículo
a lex o judex
o maiô o avô
a ave o mocotó
o só o sambaqui

O outro exemplo é aquela belezura magistral de poema que Tom Jobim engendrou em "Águas de março":


É pau, é pedra, 
é o fim do caminho.
É um resto de toco, 
é um pouco sozinho.
É um caco de vidro, 
é a vida, é o sol.
É a noite, é a morte, 
é um laço, é o anzol.
É peroba-do-campo, 
é o nó da madeira.
Caingá, candeia, 
é o matinta-pereira.


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