domingo, 29 de novembro de 2020

Quatro poemas novos para o livro 'Odes a Maximin' (2018)


Meu livro 'Odes a Maximin' foi lançado pela Garupa Edições em 2018, com desenhos do artista alemão David Schiesser. Nos últimos 2 anos, acabei por escrever quatro outros poemas que numa futura edição passarão a fazer parte do livro. Eles seguem abaixo.


A CADEIA ALIMENTAR DE MAXIMIN

Pena, rapaz, é não pertencermos
à tradição semítica para que louve
tuas pernas como as da gazela.
Se não há tais bichos no território,
não é rijo o cervo-do-pantanal?
Cairá mal comparar esse teu torso
maciço à musculatura das antas?
Se não como leão, pois qual onça
rondas meu habitat. Eu, capivara
a latir de amor seu destino de presa
nas águas onde, sardento, pairas.

*

MAXIMIN ENTRE OS MINOANOS

Nu, deitado nessa cama com lençol claro,
não sei, Maximin, se és o touro alvo
de Possêidon para Minos, ou o Minotauro.
Eu me mantenho jocastamente coesa:
sou o útero que pariu tua cabeça bovídea
e a que usufruiu o sêmen quadrúpede,
graças a Dédalo arriada numa vaca lígnea.
Zoofílica saciei em coito esse deleite.
Mas uma novidade sei trazermos ao mito:
és livre. Sou eu a detenta do labirinto.

*

CARTA A MAXIMIN ESCRITA NA CAMA COMO SE ESTA FOSSE UM MONASTÉRIO 

Qual monge budista
com as mangas úmidas 
do samue no templo 
choraria por seu chigo

Maximin, eu te digo:

nessa tua longa ausência,
muitas vezes a raposa
já cruzou sozinha 
a lua no asfalto chuvoso.

*

MAXIMIN, ÚNICO

Com frequência,
habitantes minúsculos
do nosso planeta,
vírus e bactérias,
põem de joelhos
a nossa civilização.

Em meio ao pânico 
e ao isolamento
das mil pandemias,
Maximin, ajoelho-me
eu mesmo, e adoro
tua multicelularidade.

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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

ESPADACHINS


ESPADACHINS

                    a William Zeytounlian

Nada se reordenou no mundo
esta manhã em que eu descubro,
nesse desembainhar palavras de coisas,
que sempre chamei de peixe-espada 
o que outros chamam de espadarte.

Eles seguem inscientes do anzol,
essa outra arma nossa,
um deles assemelhando a espada 
com o corpo todo, o outro 
com o que lembra uma espada sobre a boca.

Contra dicionários e nossa indústria bélica
seguem por água doce e água salgada
o peixe-espada e o espadarte,
indiferentes ao que não seja tesão ou fome.

E na minha tesão e minha fome
vou também sendo catalogado no mundo,
em verossimilhanças e incongruências,
com a língua que também se usa
como anzol e como espada.

E se repito agora seus nomes
como quem decora as partes do corpo, 
é só para ordenar um pouco meu caos,
sem espada na boca além da língua,
como se assim os protegesse,
qual pudesse doar-lhes uma bainha:

este é o peixe-espada,
aquele é o espadarte,
e aqui está minha língua.
Nossa bainha é o mundo. 

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quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Desanuviai-vos

 Gostaria de pedir a vocês alguns minutos para que se detenham e admirem a beleza do verbo DESANUVIAR.

de.sa.nu.vi.ar

(des- + anuviar)

verbo transitivo e pronominal

1. Limpar(-se) de nuvens.

2. [Figurado]  Libertar do que causa sensação ou sentimento negativo ou opressor; fazer perder ou perder o sentimento de preocupação; tranquilizar(-se); serenar(-se). = DESASSOMBRAR

3. Desenrugar o cenho.

Tanto que alguém pode chamar esta manhã de “manhã desanuviada”, essa característica tão bonita das manhãs, seu caráter desanuviador. Alguém talvez diga nesse exato instante, por exemplo, "Maria, precisamos desanuviar um pouco", ou "Dei uma desanuviada", ou “finalmente DESANUVIEI.”

Despejar-se de nuvens, o céu antes pejado, e, ora, meu caríssimo Fernando Pessoa, se teu "coração é um balde despejado", posso entender hoje, talvez, que você tenha então se desanuviado? É da natureza intrínseca do balde pejar-se e despejar-se. Para isso foi criado, e se despejou-se, cumpriu sua missão. Triste é só despejar o balde no destino errado de seus conteúdos. A isso chamamos: desperdício. “O leite derramado” X “O meu cálice transborda”.

Despejar não é despojar.

Pois despejamos as coisas porque elas se pejam e pesam, nós mesmos nos pejamos, e eu quero desanuviar. Despejar-me. Baldar os pejamentos. Tirar as rugas (voluntárias) do cenho, da testa, dos cantos da boca. 

Só espantam os maus espíritos as carrancas de madeira nos barcos de madeira, não a sua carranca de carne na sua carne de borco. Desenrugar a senha da alegria, até a difícil. Fazer a prova dos nove e dos novelos. Olhar as manhãs dos nossos setembros mas também as dos nossos marços com suas águas. As águas despejadas a balde das nuvens que se despojam para que o céu finalmente venha a desanuviar-se.

Que eu então despeje o coração. Como um balde ou como o céu, mas desanuvie.

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