Maria Lúcia Alvim
fotografia de Pury
Diz-se no interior do país, quando morre alguém que fez tanto, teve uma longa vida, que a pessoa “cumpriu sua missão”. Faz parte do nosso vocabulário do consolo para o inconsolável, como o “Não morreu, descansou”, ou o eufemismo bebedourense, onde não se diz que alguém morreu, mas que “desceu a rua Campos Salles”, ao final da qual está o cemitério da cidade.
Mas Maria Lúcia Alvim não merecia morrer dessa forma, lutando por oxigênio, brigando para respirar, isolada, sozinha. Maldito vírus, maldito governo incompetente.
Como escreveu Herberto Helder em seu citadíssimo poema, perguntando se tinha paixão o recém-morto, eu respondo a vocês que dessa mulher não se tenha qualquer dúvida quanto à resposta.
Tinha paixão.
Deixou poemas. Publicados. Inéditos. Essas coisas que tantos chamam de supérfluas. De não-essenciais. Não receberá cortejo dessa República em frangalhos. O país mal sabe o que perde.
Tive a honra de conviver com ela em presença e imagem virtual nos últimos meses. De, ao lado de Guilherme Gontijo Flores, Paulo Henriques Britto e Maíra Nassif, talvez ter proporcionado a ela uma pequena alegria.
Reli agora seu poema sobre o próprio caixão. E me pareceu tão ela-própria, em meio à acidez lúcida de sua inteligência, terminá-lo com tão bela imagem matutina: “o galo alvorescente / dourou.”
AQUELE QUE UM DIA FARÁ O MEU CAIXÃO
Maria Lúcia Alvim
Aquele que um dia fará o meu caixão
de antemão tem as medidas:
menina-carapina
surrupiando
Viu crescer, prometer, viu sazonar.
Quando o roxo dos ipês configurou-se
no horizonte
aquele que fará o meu caixão
numa cestinha depôs amor
e morte
Lasca por lasca
fava por fava
fui pedindo, fui rasgando, fui doando
lóbulo mindinho
esses rajados de pele, esses crestados
o estalido da cabiúna
O galo alvorescente
dourou
*
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