segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

MARIA LÚCIA ALVIM VIAJA PARA A TERRA SEM MALES

Maria Lúcia Alvim, Hotel São Luiz, Juiz de Fora, Minas Gerais, 2013.


MARIA LÚCIA ALVIM VIAJA PARA A TERRA SEM MALES

Maria da terra de várias Marias,
aparecidas e desaparecidas,
Maria da casa de outra Maria,
que apareceu mais cedo
e mais cedo desapareceu

às vezes nem quero saber
se o grande poeta estava certo
sobre os gregos antigos
e sua recusa de necrológios,
só o inquérito por sua paixão,
a paixão do recém-morto,
a paixão do há-pouco-vivo,
tinha?

nem
nosso costume da guarnição
do cadáver para eventual ressurreição,
os velórios herdados dos ibéricos,
a península do palimpsesto abraâmico

nem
se meus mortos
tornam-se guardiães
ao redor do terreiro e sua terra,
se metamorformoseiam-se
em espectros alados,
se migram para um reino
inimigo do reino dos vivos

o que importa
a você agora um
Ave, Maria
se por anos o que ocupou
sua visão e garganta
foram os garnizés
e o Pavão
agora também morto

difícil dizer
o que dizem de nós
nossos ritos
à hora da morte

arqueólogos
estudam por décadas
para depreender de restos
a vida de espécies extintas,
de crânios e úmeros,
de fêmures e tíbias,
de minúsculos carpos e metacarpos,
ou diálogos amorosos
inferidos
de um fragílimo osso hioide,
e leem neles sinais como a búzios

aqui uma ferramenta
depositada no túmulo,
ali a cor do ocre
tingindo rubra o branco do cálcio,
e a insinuação do afeto pelo morto,
dos vivos
agora também extintos

mas me comociona ao extremo
quando ouço num documentário
um desses velhos arqueólogos
que ainda se excitam com o pó
de onde viemos e ao qual voltamos,
dizer:

olhem, notem
esse osso
com uma fratura calcificada,
esse esqueleto em frangalhos,
notem essa peça quebrada
mas remendada,
percebam esse doente
tratado há milênios,
alguém dele fez-se
de enfermeiro,
por ele também se caçou
mastodontes,
também dele foi o usufruto
da coleta cuidadosa
de frutas comestíveis

é assim, Maria,
milênios mais tarde
depreendemos
de ossos
fraturados e remendados
a existência de algum amor
entre gente morta
há milênios

talvez um dia
meu próprio esqueleto
seja analisado
e outra cultura
ou outra espécie
veja minha ulna
fraturada e remendada
durante minha adolescência
e alguém diga:

vejam,
notem,
não eram tão egoístas
aqueles antigos
que viveram durante as pragas
e a sexta grande extinção,
este aqui foi alimentado
enquanto remendava-se
a sua ulna fraturada
para que sobrevivesse

sempre foram estranhos
nossos ritos
com os doentes de amor
e os mortos das mil moléstias:

aquela mulher congelada no Altai
e enterrada com seis cavalos,
aquele homem na Escócia
enterrado dentro de um barco
pesadíssimo
que teve que ser arrastado
desde as águas

ou você agora
cremada
como se incineram as matas
da Zona da Mata
onde os bacorinhos
ainda são feridos
de morte
para alimentar a República
que deu as costas a você
enquanto você respondia
com canções
de fazer ninar
os morcegos
e os pombos
e os pavões

mas sabemos bem,
Maria das Marias
aparecidas,
desaparecidas,
que nossas palavras
mesmo se cantadas
a plenos pulmões,
não se fossilizam,
e, no entanto,
cá estamos,
cantando,
do centro
do coração
das taquaras
recheadas
de som.

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