quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Tinha paixão

Mais uma vez o grande poema de Herberto Helder (1930-2015) nos vem à mente, esse texto que se tornou quase o rito funerário oficial entre os poetas lusófonos desde sua publicação no livro 'A faca não corta o fogo', de 2008. Já não há por que ler salmos ou cantar hinos, não dizemos ‘descanse em paz’, ou ‘que Deus o/a tenha’, ou ‘ah! era uma pessoa tão boa’, eu, pelo menos, desde a própria morte de Herberto Helder, sussurro para mim mesmo na hora da morte dos grandes poetas: TINHA PAIXÃO, e talvez tudo o que possamos fazer nós mesmos é não mais viver o viver casto para a compra de um terreno no paraíso, mas vivermos de tal modo que alguém em algum lugar também diga de nós: TINHA PAIXÃO.

É estranho e ao mesmo tempo nada estranho que duas horas antes de saber da morte de Maria Lúcia Alvim, que eu já vinha temendo há dias, eu tenha escrito um poema justamente sobre contentarmo-nos com uma única passagem pelo planeta, só uma,

não querer
a vida
diante dos olhos
não pedir
o túnel
com luz ao final
não exigir
mais vida
eterna em paraíso
não esperar
mais vida
reencarnada contínua
a ganância
de planear só ganhos
mas dizer-se
grato gratíssimo
pela chance
finita
de ir-se aqui
estando
a vez
basta
o finito
contenta

, mas durante a qual há que se TER PAIXÃO, ainda que saibamos da raiz da palavra, a paixão, o sofrimento, a catarse, o batismo-de-fogo, Prometeu atado à rocha por ajudar a nossa raça ruim, Coyolxāuhqui lançada lua abaixo para despedaçar-se na pedra, menos Narciso que se afoga por amor à própria imagem do que Naiá, que se afoga por amor à imagem da lua, a paixão, a paixão que vai de Cristo a G.H., e que talvez, quem sabe, a faca corte o fogo.
[Da paixão grega]
Herberto Helder
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a
paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega

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