sábado, 19 de junho de 2021

Acerca de Walmir Ayala

Walmir Ayala (1933-1991)

Na pesquisa sobre a poesia homoerótica e os poetas homossexuais da República Federativa, um nome recorrente e incontornável é o do gaúcho Walmir Ayala (1933-1991). Não conheço poeta contemporâneo que o reivindique – ou vindique. Continua uma figura que se obscurece cada vez mais desde sua morte. Certamente há um grau de homofobia nesse processo. Bastante vocal e barulhento durante a vida, foi gradualmente esquecido como figura cultural nas três décadas seguintes (são 30 anos desde sua morte). Não há justiça completa aí. Trata-se de um poeta bastante irregular, mas que deixou alguns poemas sim bastante bonitos. 

A sensibilidade homossexual, tal qual Susan Sontag buscou teorizar no ensaio "Notes on camp", tem o que os modernistas chamaram de "gosto de antiquário", ainda que não da maneira como eles usavam a expressão. E o gosto CAMPista tende ainda ao exagero, ao que chamamos de espalhafatoso. Em poetas como Sosígenes Costa, Valério Pereliéchin ou Mário Faustino, essa explosão, essa centrifugacidade, acaba contida pelas formas do soneto e da balada. As métricas fixas não têm como fazer milagres com a linguagem abstrata e algo meditabúndia de Walmir Ayala. Além da sua falta de humor, sua aparente incapacidade para a autoderrisão. Mas quando ele consegue ficar ao rés-do-chão, sua poesia voa muito mais alto. Parece-me o caso de muitos dos poemas reunidos neste livro que a Patuá lançou em 2019, 'Poemas do surf', até então inédito, e que traz um ensaio fotográfico de Alair Gomes a pedido do poeta. 

– Ricardo Domeneck

*

OS SOBREVIVENTES
Walmir Ayala
Sem as pirâmides de Atlântida,
sem as colunas de seus templos,
sem seus deuses e incensos,
sem suas lutas e arenas floridas,
eles deslizam esquecidos.
Seminus e luminosos
eles enraízam nas águas
do esquecimento.
O futuro é hoje – eles clamam
Quando o futuro for, nós saberemos.
Por enquanto navegamos sobre o nosso próprio sonho
como coisas ressurgidas.

*

Abaixo, uma resenha de Ricardo Silvestrin para o livro.



Resenha de Ricardo Silvestrin
para o livro de Walmir Ayala,
Poemas do surf (São Paulo: Patuá, 2019).
Foi lançado recentemente pela editora Patuá um livro que resgata o interesse por um poeta que teve uma trajetória breve e intensa na cultura brasileira. Walmir Ayala morreu aos 58 anos, autor de uma obra premiada e de destaque em diversos gêneros: poesia, romance, conto, crônica, diário íntimo, literatura infantil, teatro, ensaio, reportagem e tradução. Teve também uma produção marcante como crítico de arte.

Quando publicou sua Antologia Poética, foi saudado por Drummond em artigo que acentua o contraste entre “a poesia como vibração do ser inteiro”, de Ayala, em que as palavras encontram “seu ritmo e organização encantatória”, e “os gelados e vazios exercícios formalistas, amparados em muletas de teoria e vã guarda, quer escapistas, quer pretensamente participantes, que nos massacram a paciência”.

Walmir Ayala deixou ainda uma grande quantidade de livros inéditos. Entre eles, está Poemas do Surf (Editora Patuá, 2019). O volume é formado por vinte e quatro poemas e treze fotos. Os textos dialogam com o ensaio de Alair Gomes, todo com imagens de surfistas e suas pranchas na praia de Saquarema. O conjunto de fotografias foi realizado na segunda metade da década de mil novecentos e setenta, a pedido do poeta.




Não se trata, contudo, de poemas criados como legendas dos cliques ou uma releitura em palavras do conteúdo visual. As fotos ambientam a sequência de poemas. Ficamos dentro do mar de imagens e letras. Mas a poesia, no livro, se constrói de várias maneiras. Ora como observação, que se permite também a indagação, como quem tenta desvendar o sentido do que está diante dos olhos:

- Que coisa é esta que flutua
cegamente
sobre um lençol
de espuma
e corta, com sua quilha, a carne da água?

Ora como tentativa de recuperar o que ficou nas lembranças:

Procuro desenhar de memória teu percurso.
Inútil: estás sempre onde
não caem
as algemas dos meus olhos.

E mesmo a ausência é motivo para se criar do nada mais um poema:

Vejo o mar vazio.
Vejo a tarde, a última prata
da luz. E não te vejo.
Não vejo tua prancha,
nem o estrepe te ligando,
canal umbilical.

Predominam as imagens nos versos, a maioria sem rimas, mas que não abrem mão, em alguns momentos, de buscar a sonoridade interna das palavras: “Baila/em Bali/a onda bailarina.”. E mesmo a aparente leveza do tema escolhido, o surf, não descarta o peso de uma reflexão mais sombria sobre o testamento do surfista: “Sua herança é quase nada./Um sopro quebrado,/uma renda de espuma de alabastro.//Sua herança é o despojo/inútil/de um mastro.”.

O livro de Ayala é um exercício de descentramento do poeta, daquele tipo de poeta que só olha para si mesmo, para os seus sentimentos, para as suas vivências. Aqui, ao contrário, o que importa é olhar para o outro, para refletir sobre e a partir dele. Também a eleição de um tema pouco explorado na poesia conta pontos nesses poemas do surf. Trata-se de um assunto não codificado tanto naquilo que se costuma chamar de poesia do cotidiano quanto na linha dos ditos temas mais elevados.

Essa temática e esse livro cabem perfeitamente como a realização de uma visão mais ampla de Walmir Ayala, conforme ele expôs no seu poema abaixo (extraído do livro Estado de choque, a poesia de Walmir Ayala. São Paulo: Galeria Parnaso; Massao Ohno Editores, 1980):

*
ARTE POÉTICA
Walmir Ayala
Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.
Poemas que não envelhecessem.
Aspirava os pensamentos abstratos, as ideias transcendentes,
jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.
Eu queria a estação permanente dos fatos,
aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos
em reflexos cíclicos
de uma realidade essência.
Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,
pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.
Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,
eu sei que, como todas as civilizações,
a nossa tem um fim,
e já durou demais.
Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,
adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.
Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.
Por isso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária
duração,
esta idade virtual com pés de efêmero tato.
Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver
à sua legítima história,
mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam
a vida.
Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,
quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração
oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.
Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.
*
Assim, não pode haver nada mais efêmero do que a onda. É sobre ela que o surfista tenta domar o tempo presente. É com ela que aprende a recomeçar e recomeçar: “A sabedoria de pousar num corpo/como se pousa na exatidão irrepetida/da onda.”. É o que acaba fazendo também Walmir Ayala. Cada poema do seu livro é um “tributo do instante”, o que não impediu o poeta de conquistar, como mostra esta edição vinte e oito anos depois de sua morte, mais do que a duração da onda: a perenidade do mar.

Nenhum comentário:

Arquivo do blog