Há alguns dias, pedi a meu grande amigo Érico Nogueira que me enviasse um "poeminha" inédito para a plataforma digital da revista peixe-boi.
RETÁBULO
ACHEI, ENQUANTO BESTAS DE AÇO BRA-
-miam e de hélices roncavam vespas,
Um bilhete em meu nome; as letras crespas
Eram tinta de assombro, ou pez de sombra.
Abri. Exortações exatas à obra
Por obrar inda, de gramar a gleba,
E redobrar o que se não desdobra,
E em ferro duro pôr o fumo débil.
Aquelas coisas – casos aquilinos
De ovelhunas misérias cravejadas
Em madeiros de mais agudos trinos.
Crucificadamente encruzilhados
O lambique que sílabas destila,
A linfa que deflui do flanco, e estrila.
UM FOGO ABSTRATO, UM ALGARISMO FULVO
Brilhando à brisa em bruma de uma hipótese
Implausível; a glândula da hipófise
Secretando um segredo indissolúvel.
O trajeto mais reto o mais recurvo,
E a mais vígil vigília uma narcose
Que se condensa no clarão mais turvo
Da chaga sem conceito e sem necrose.
Convoluções de convolutas voltas
Em órbita de um algo, uma agonia
Que te acoita e te acode por aguda.
Conexas vozes de palavras soltas;
Escultura que escalda a pedra fria;
– Ó retrato mudável, que não muda.
SENSAÇÕES ASSOLADAS DO INTELECTO
Ou conceitos do látego acossados?
De elipse a elipse se me elude um repto
De palmas e de pés em cruz. Eu falho.
Eu quedo aquém. Dos riscos no trançado
Da madeira me obceca muito objeto.
Ah, quem me dera o talhe mais dileto
Discernir entre a massa dos entalhes.
Mas não. Cada arabesco é uma tortura
Tortuosamente amaranhada – opaca,
Oblíqua, oblonga –, flecha que não fura.
Vai ver, Senhor, é isto: a iniciática
Via-crúcis das formas é antecâmara
Do amor que se despoja e se desama.
DESPOJAR-SE PEJANDO-SE DAS LINHAS
Excessivas, elípticas que a lima
Perlustrou e poliu no madeirame
Qual enxame de traços em enxame
Ou desamar-se amando este tentame
De fiar ferros orbitais de um ímã
Que os trança e entrinça e entronca e desarrima
Em contínuo, magnético certame
É despojo de pó, mau desamor,
Cupidez de asperezas deduzíveis
Taticamente à parte do cruor
Dos espinhos... De cardos e calhaus
Mune-se a mente entre ondas infiéis;
O fiel corpo entre holandas se refaz.
DA TRANSPARÊNCIA ARTÍFICE DO VIDRO
Que se industria em nítido binóculo
Ao cristalino elemental de um olho
Naturalmente hábil – quanto dista?
Do alquímico sabor de sumo cítreo
Ou de ouropel sintético o refolho
Ao limoeiro rústico e imperito
E uma jazida abrupta entre os escolhos?
Tanto dista, ah, Senhor, quanto o madeiro
E tu nele cravado em sangue rúbeo,
Do lavrado lavor desta madeira
E um asséptico homem de Vitrúvio.
Se Deus à carne crua já desceu,
Por que a culta subir não pode a Deus?
CARNE CULTA NO AMOR QUE SE DESAMA
De tanto amar um só e dele os muitos,
Incontáveis lugares e minutos
E rostos em que flana a sua flama
É a só que sobe a antrópica montanha
E só se o pensamento exato e enxuto
Não for culto de formas, mas for culto
Em armar aranhóis, absorta aranha.
Assim, se a carne sobe, numa teia
Do pensamento arácnido quem sabe
Se mais lúcida abelha não se enleia
E alumia o que a carne só não sabe.
É um outro amor, este do pensamento;
Um brilho, um voo, um eco, um raio, um vento.
É O PENSAMENTO, POIS, QUE SE DESPOJA
Da série monocórdia de sinapses
E entre lobos e córtices se arroja
Tão vária e velozmente que num lapso
O sistema ancestral cai em colapso;
E o pensamento, puro do que enoja,
Como luz e calor na mesma tocha,
Converge em raros, rarefeitos ápices;
Mas, ai, que a carne clama, inda que douta,
E, socolor de cíclico equilíbrio,
O sistema caído se levanta;
No breu de um pensamento já sem brio
O cérebro maquina maquinal
E a nova se enovela, e é o velho mal.
MAL DA FOSCA FRIEZA QUE DESCREVE
A maligna engrenagem do relógio
E o minuto e o segundo, como fogem,
E como corre o mal e quanto ferve;
A arquivolta, a arquitrave e os tramos lógicos,
Alaques e predelas que refervem
De nervuras nervosas e da verve
De ornatos flóreos e ornitológicos;
Mas o mal não evita, quando vem;
Mas o bem, quando foi é que o adora;
E um conhece se aflui, o outro se falta;
Desce aos detalhes e os descreve bem,
Mas, atômico número do ouro,
Não sobe nem reflete nem refrata.
ASSIM SUBISTE AO CIMO DA CAVEIRA
Por açoites, espinhos, cravos, sangue,
Assim lime e labore e lustre e lanhe
Por escrever o que não escrevera.
E por poder o que já não pudera,
Ou já por que o perdido ou ache ou ganhe,
Hei de arrancar de mim o que da terra
Ninguém arranca, quando não lhe arranquem.
És tu, Senhor, quem troca no meu tórax
A pedra que se veste aí de víscera
Por víscera que vige, e aonde moras;
Então, quanto cultivo, é quanto viça,
Então as sílabas que escando, tantas,
A só ressoam que contigo cantas.
§ Caetera desiderantur §
.
.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário