A Literatura Brasileira tem dois livros importantes com a palavra "baú" nos títulos. Um deles é o primeiro volume das memórias do mineiro Pedro Nava (1903–1984), seu Baú de ossos (1972). O outro é o volume de poemas do gaúcho Mário Quintana (1906–1994), seu Baú de espantos (1986). Minha memória invocou esses títulos hoje quando eu pensava sobre o trabalho de pesquisa para desenterrar certos autores que, por motivos vários – políticos, regionais – não alcançam atenção nacional. Somos uma República que ainda não fez jus a seu nome, seja como república em si, ou no adjetivo que a segue no nome oficial do país, federativa.
Digo tudo isso para fazer agora meu joguinho de palavras: será decisão nossa, de críticos, editores, escritores e leitores, se a Literatura Brasileira será um baú de ossos ou de espantos. O trabalho é coletivo. Alguns poetas e críticos apreciam-se escrita de certos autores e buscam chamar a atenção dos concidadãos. Vocês me perdoem, mas eu sou extremamente sentimental com algumas dessas palavras: república, federação, concidadão. Essas coisas importam.
E o esforço de compartilhamento se dá em vários níveis. Foi graças à publicação inicial de dois poemas de Hilda Machado (1951–2007) na revista Inimigo Rumor que meu périplo em busca de mais material levaria à publicação de 'Nuvens' em 2018 pela Editora 34. Foi graças à descoberta e atenção de Guilherme Gontijo Flores, ao ler com acuidade crítica o volume Vivenda de Maria Lúcia Alvim, que pude me unir a ele e à Relicário Edições para que todos nós agora tenhamos essa belezura que é Batendo pasto. E graças ainda a Paulo Henriques Britto, que guardara o manuscrito. E serei eternamente grato à Ciclo Contínuo Editorial por nos trazer de volta a poesia de Paulo Colina.
E há outras figuras tão interessantes das culturas brasileiras que mereceriam mais de nossa atenção. Porque nossas vidas seriam menos miseráveis com os poemas e contos destes... ah, a palavra de novo ... concidadãos. Não importa se os autores têm obras monumentais de 20 volumes. Um belo livro não é já uma grande contribuição à pólis? Um belo poema apenas já não é isso?
Há os casos de poetas que são respeitados, premiados, mas estranhamente não são lidos, não comparecem nas conversas apaixonadas e bêbadas de boteco (elas também contam), nas epígrafes, nas homenagens. E nem mesmo o nascimento em estados que monopolizam a atenção nacional por vezes ajuda, bastaria pensarmos nos casos de Hilda Hilst e Roberto Piva, ignorados por tanto tempo. Ou pensem nesse caso: não é fascinante que São Paulo tenha gerado, nascidos no mesmo ano de 1931, dois poetas tão diversos quanto Augusto de Campos e Alberto da Costa e Silva, ambos vivos e prestes a completar 90 anos? Por que um intelectual do porte de Alberto da Costa e Silva, com poemas que me parecem deslumbrantes, não aparece com mais frequência em nossas conversas?
Mas há sim os problemas de desequilíbrio regional, e muito disso se dá por grandes jornais de circulação nacional se esconderem sob a égide de "jornal local", com os nomes de suas sedes estaduais ou municipais nos seus nomes, mas que então ignoram por completo as RESPONSABILIDADES REPUBLICANAS E FEDERATIVAS que incorrem no momento em que passam a ter circulação nacional.
Esta semana tive duas descobertas, uma foi fruto de partilha republicana do bem comum quando Leonardo Gandolfi chamou minha atenção para o trabalho do baiano Jônatas Conceição da Silva (1952-2009). A outra foi por esforços pessoais de pesquisa sobre a poesia produzida no Centro-Oeste, esta que talvez seja a região mais verdadeiramente ignorada do país, ao lado do Norte. E aqui chego ao motivo dessa postagem: chamar a atenção de vocês, meus queridos concidadãos, para a poesia deste jovem goiano, Pio Vargas (1964-1991). Nascido na pequena Iporá e morto com apenas 26 anos por uma overdose na também pequena Turvelândia, sua poesia ficou por aí nos baús de ossos e espantos. Nem mesmo nossa ansiedade hagiográfica por nossos meninos e meninas mortas da Poesia Brasileira o deu um público maior.
Sua poesia foi porém editada por Carlos Willian Leite, e o poeta dá nome à biblioteca do Centro Cultural Marieta Telles Machado em Goiânia. Num artigo para a revista 'Bula', na qual há um par de outros textos sobre o goiano, C. W. Leite cita uma declaração de Paulo Leminski sobre o poeta: “Pio Vargas tem um ‘eu’ coletivo tão forte que chego a vê-lo muitos. De sua poesia consigo extrair a certeza do que digo, insistente: há uma geração recente que usa e abusa da modernidade, fazendo dela o principal elemento a interferir na criação. Este Pio Vargas me trouxe uma poesia fascinante que não se atrela a falsos modelos de invenção, mas flutua, inventiva, com os mais amplos e possíveis signos do fazer poético.”
Pio Vargas publicou os livros Anatomia do gesto (1989) e Os novelos do acaso (1991). Nos poemas que encontrei na rede e que reúno e compartilho aqui, percebo um jovem poeta de talento inegável, com belos poemas, imagens fortes, uma musicalidade potente. Se também percebo em certos momentos algo de juvenil no gosto augusto-angelical por um vocabulário científico e certas palavras talvez grandiloqüentes demais, mesmo essas se transformam em música nas mãos desse jovem bastante habilidoso.
PIO VARGAS (Goiás, 1964–1991)
DESPERTÁCULO
Estou pronto
para a guerra que encontro
quando acordo:
botei vigia nos sentidos
e iludi com comprimidos
outros seres a meu bordo.
Abandonei o vício
de estar sempre
a soletrar ruínas,
dei liberdade a meus detentos
minha pressa diluiu nos passos lentos
e rasguei
meu calendário de rotinas.
Inverti a ordem.
Já não saio por aí
a devorar compromissos,
tomei posse no governo de mi mesmo
e derrotei os meus omissos.
Venci a batalhas
de ter que estar sempre por perto,
às vezes voo para dentro
do meu sonho a céu aberto.
Estou pronto:
eu já concordo
com a guerra que encontro
quando acordo.
*
OS SONS DO OFÍCIO
É porque recolho o vário
no aviário das vértebras
e me há um silo de células
e me há um quase-aquário,
que o poema se me chega,
estuário.
Que me importa
a sina jugular das fases,
a vida conjugal das frases
e o semblante cínico
das fezes,
se não faço poemas
como quem defende teses.
Faço poemas
para que passem os dias
e pascem os rebanhos
e os oceanos pasmem
ante o naufrágio
de todas as datas
no calendário-lanho.
Ou seja, faço-os
como quem viceja
os laços do arremesso
como quem vislumbra
silêncio nos entulhos
e aprendeu a estrutura ideal
para montar barulhos
sob a língua mais banal.
Faço-os
como quem lambe oásis no planalto,
deixado pelas bases
de um simples sobressalto.
É como se o ego
coubesse inteiro
na determinação de um prego
que me fixa exílios sob a carne
mas que também aciona
os gatilhos do alarme.
*
SUCESSÃO
Depois que eu voltar
de dentro das molduras
apago os meus retratos
invento outras figuras
convoco os meus fantasmas
convido mil demônios
e dou posse a todos eles
no governo dos neurônios.
*
ODE ANALGÉSICA
I
a pátria é o embaixo das roupas.
é lá que dói e se desfazem
as linhas mínimas do ventre
o lacre avesso do silêncio
e o destino de selo intêmpere.
é lá o magazine de medos
onde quem sabe há calado
na caricatura de seus becos
ou no domicílio de seus fados.
II
eu não sei o que floresce
no abandono das pedras
e não me ocorre saber
que objetos compõem
as neuronias vitrines
da dor e suas glebas.
há mais de sabor
em não saber
e mais de ardor
em não urdir
o que vai pelas covas
do promontório,
o que fica de espanto
nesse alento provisório.
não me ocorre o que fenece
nestes dias rotundos.
o possível deus que me parece
é outro — a réplica do fundo.
ao milagre de ser vário,
o abismo : albergue estacionário.
*
CONCEPÇÃO TUMULAR PARA QUE NINGUÉM ALEGUE IGNORÂNCIA
Quando eu morrer
escrevam no meu túmulo:
aqui dorme pio
que era poeta nas horas vagas.
O que distanciou de tudo
pra continuar mudo
com suas amarras
Aqui dorme alguém
que era de todos
e pertenceu a ninguém
que imaginava muito
mas só tinha um corpo
que casualmente se tem
que fazia poemas
só para esquecer os dilemas
do que era um e quis ser cem.
Pensando bem
escrevam mais:
aqui dorme pio
o que em sendo um
foi quase mil.
*
O FOGO NAS VÍSCERAS
I
pode haver o momento
de transportar o súbito fogo
sem haver a ruptura
de gesto e culpa,
flancos do mesmo jogo.
o tédio se derrama
em todas as direções
e como flagelo
é incenso nos sentidos
ou fragmento de opções?
pode haver
o súbito fogo
em sendo mero silêncio.
O tédio é bélico:
Ogiava de alvo pênsil.
II
o que pode haver
de humano no sentimento
senão a inquietação?
todo o resto
é crochê de desejo
desenhando caminhos
na hipótese da emoção.
se o flagrante
é uma colisão de evidências
pode haver o momento
de transportar o súbito fogo
no porão de fugas pensas.
III
o fogo e o tédio
são produtos sem mídia,
salvo suas cores
pródigas e ingênuas
no painel de dores tíbias.
pode haver o momento
de palavras ajustáveis
em cada frase,
o momento de sombras
em transparente corpoquase
sem que isto denuncie
ruptura de gesto e culpa,
extremos de mesma base.
IV
cada um se mata
o suficiente
para continuar vivo.
cada um possui
a duopção de fogo e tédio,
esses alheios do alívio.
contudo,
na dor e seu compêndio,
resta saber
quem existirá depois do incêncio.
*
ANALEPSIA DO ABISMO
I
enterro vivo meu gesto.
até aqui trouxe dias e palavras
como signos ambíguos
débeis mapas
argumentos evasivos
o resumo inconcluso
do que julguei abismo
e superfície.
habita o âmago
no mais raso da face:
por isso trago à tona,
elo de sangue e aspereza,
a pugna de meus retratos
atônitos.
II
mantenho obtuso meu traço.
a memória constrói
espúmeos fantasmas
com os quais divirto
o inverno de meu plasma.
esse cotidiano agrário
foi o que sobrou como futuro
o meu sangue sem calvário
regando vales no escuro.
III
interno e vasto é meu grito.
até aqui trouxe dois olhos
e a visão cíclope dos pesadelos
como quem espalhou lâmina e dilúvio
para envenenar
o próprio espelho
ou se ferir em gumes turvos.
viver é um risco
na ordem dos calendários.
por isso abrigo incerto mangue,
condomínio de alheios viventes,
para manter a humanidade mesma
nos outros eus mais diferentes.
IV
mantenho obscura entrega.
pouco importa
um punhado de vales
para o adejo da carne.
é bem outra
a personagem que me assombra:
a dor em vestes dúbias
no endereço noturno
da face plúmbea.
*
ÁSPERAS ASPAS
nenhuma treva me basta
se me desaba o teto a casa
meu ventre em viagem casta
e meu voo de corpo sem asa
minhas vírgulas como degraus
a entalhar ásperas aspas
o texto-hangar de minhas naus
o nu teclado de outras harpas
o império de meus ampares
nos tantos poros térmicos
os sinais que somam seres
nos andares epidérmicos
*
VAGA LITÚRGICA
o volume da chuva
é que decifra o dilúvio
como no corpo eflúvio
é âmbar a dúvida
a porta que mais vence
é a que aberta permanece
e o corpo que mais sente
é nem sempre o que adoece
.
.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário