Abre hoje à noite, no espaço para arte contemporânea sob tutela do Governo de Berlim e funcionando no antigo espaço do Senatsreservespeicher, a terceira parte de uma série de exposições de vídeoarte com curadoria do meu companheiro de coletivo Viktor Neumann. Intituladas "Medo. Poder. Espaço" (Angst. Macht. Raum. I, II e III), cada uma das exposições trazia trabalhos de três artistas contemporâneos trabalhando com vídeo. Na primeira, peças de Sadie Benning, Ming Wong and Rommelo Yu; na segunda, de William E. Jones, Zhenchen Liu und Clemens von Wedemeyer. Nesta terceira parte da série, a última, estão Klaus vom Bruch, Niklas Goldbach e o duo Korpys/Löffler.
Eu conheci Viktor em 2004. Menos de um ano depois começamos juntos as nossas intervenções/festas/eventos às quartas-feiras. Logo, outros foram se unindo ao que se tornou nosso coletivo, mas tudo começou comigo e com Viktor. Somos um grupo, eu diria, heterogêneo como as peças de Lego, mas pode-se construir coisas interessantes ou engraçadas com elas quando se unem. Como qualquer grupo de jovens em colaboração. Ou, usando as palavras ótimas de Murilo Mendes, nós somos "complementares e adversativos": um poeta que trabalha (ou se atrapalha) com vídeo (euzinho), um videasta (Niklas Goldbach), um performer que, como eu, tambem é DJ (Daniel Reuter) e aquele que está se tornando um dos mais interessantes jovens curadores da cidade (e o mais jovem do nosso grupo) - Viktor Neumann. Este é o cerne, mas há ainda outros amigos com quem colaboramos.
Depois de suas duas primeiras exposições desta série "MEDO. PODER. ESPAÇO" e sua curadoria de uma noite com 8 horas de videoarte na Kunstlerhaus Stuttgart (intitulada "Our Darkness"), nosso amigo abre hoje a parte final desta sua estreia-em-série como curador. Compartilho aqui com vocês excertos dos trabalhos e artistas da exposição e o meu orgulho de amigo.
MEDO. PODER. ESPAÇO. Parte 3. Exposição de videoarte com curadoria de Viktor Neumann.
(excerto de Das Schleyer-Band, 1977-1978, de Klaus vom Bruch - trabalho incluído na exposição MEDO. PODER. ESPAÇO. Parte 3.)
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(excerto de Ten, 2010, de Niklas Goldbach - trabalho incluído na exposição MEDO. PODER. ESPAÇO. Parte 3.)
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(imagem extraída do vídeo "The Nuclear Football", 2004, do duo Korpys/Löffler – André Korpys e Markus Löffler – trabalho incluído na exposição MEDO. PODER. ESPAÇO. Parte 3.)
Depois de visitar a exposição, falo mais sobre os trabalhos.
Em um de seus mais importantes textos críticos, a palestra Composition as explanation que proferiu em 1926 em Cambridge e Oxford, Gertrude Stein declara que "No one is ahead of his time, it is only that the particular variety of creating his time is the one that his contemporaries who also are creating their own time refuse to accept."
No segundo número impresso da Modo de Usar & Co. nós publicamos a tradução de Andrea Matheus para este que me parece um dos textos críticos modernistas mais necessários para o debate poético e est-É-tico contemporâneo no Brasil. Na versão de Andrea Matheus lemos "Ninguém está à frente de seu tempo, é só que a variedade particular de criar o seu tempo é aquela que seus contemporâneos que também estão criando seu próprio tempo se recusam a aceitar."
A declaração de Gertrude Stein sempre me pareceu muito saudável como contrapartida a certa crítica de tom farsesco que insiste por vezes no discurso sobre o artista que estava à frente do seu tempo, mas usado para exonerar a era em particular pela incompreensão gigantesca com que o trabalho do artista foi recebido por seus contemporâneos. Basicamente, Gertrude Stein tentava fazer sua apaixonada defesa do poeta e artista contemporâneos em uma sociedade preguiçosa e dependente de juízos críticos já estabelecidos, seguindo à declaração tão bonita na palestra de que "é tão mais excitante e satisfatório para todo mundo se se pode ter contemporâneos, se todos os seus contemporâneos pudessem ser seus contemporâneos."
Ao mesmo tempo, quando penso nesta declaração de Stein, lembro-me de Ezra Pound em seu The ABC of Reading (1934), quando fala sobre o artista como a "antena da raça". Nossa sensibilidade política hoje se incomoda com o uso da palavra "raça", especialmente vindo de Pound, mas não deveríamos deixar que isso apague a proposição principal aqui, e ela está contida no vocábulo "antena". Aqueles que citam a passagem sem conhecerem o livro na íntegra deixam-se levar por deturpações ou mesmo preocupações legítimas que já se solidificaram em torno de Pound, que no entanto explica esta proposição de forma bem-humorada e elíptica, como era de seu costume, mas mesmo assim clara: "Uma nação que ignora as percepções de seus artistas entra em decadência. Depois de um tempo ela deixa de agir, e apenas sobrevive."
Não creio que haja qualquer contradição entre Gertrude Stein em suas citações acima e Ezra Pound quando este escreve: "Artistas e poetas sem dúvida entusiasmam-se ou excitam-se com coisas muito tempo antes do público em geral. Antes de decidir se um homem é um tolo ou um bom artista, faria bem perguntar não apenas se `ele entusiasma-se sem motivo´, mas `será que ele está vendo algo que nós não vemos?´. Seu comportamento esquisito será fruto de sua percepção de um terremoto iminente, ou por sentir o cheiro da fumaça de um incêndio que nós ainda não vemos ou sentimos?"
É difícil discutir isso num país onde tantos acreditam que, para proteger a independência do poeta e artista, é necessário recorrer a conceitos equivocados como "trans-historicidade", que tem sido transformado em sinônimo de sincrônico (o que me parece absurdo ou, no mínimo, questionável), e que acaba por sua vez ainda confundindo-se com "pós-utópico", outro conceito questionável e elaborado em um discurso que tende justamente ao diacrônico (na fórmula: "a poesia - obviamente no singular - antes era assim, agora é assado") - naquela que talvez seja a maior contradição do ensaio de Haroldo de Campos de meados dos anos 80 ("Da morte da arte à constelação: o poema pós-utópico").
Os últimos acontecimentos no Japão têm tido um impacto muito grande sobre as minhas sensibilidades e psicoses, trouxeram novamente ao teste e à testa de minha mente uma de minhas preocupações est-É-ticas obsessivas, tornaram ainda mais forte em mim a percepção de que uma arte e poesia pré-distópicas seguem sendo incrivelmente necessárias. Há tempos defendo que algumas das vanguardas históricas mais importantes do entreguerras e do pós-guerra eram muito mais alertas contra a distopia do que propagandas por qualquer utopia. Os poetas e artistas do Cabaret Voltaire e da revista DADA agiam em meio à destruição da Grande Guerra, e a Internacional Situacionista buscava muito mais resistir a uma realidade presente, acachapante e destrutiva, que propor um mundo futuro ou não-lugar de forma ingênua. Um não-lugar e um não-tempo parecem ser justamente o que temos na proposta de uma poesia e arte trans-históricas.
Eu sempre concordei com Gertrude Stein e ainda concordo: não há homens ou mulheres à frente de seu tempo. Alguns homens e mulheres por vezes nos mostram que os limites do nosso tempo talvez estejam além do que imaginávamos. Mostram-nos talvez que o tempo por vezes nos supera em nossa percepção dele.
Mas será que os autores de ficção científica distópica, por exemplo, são homens e mulheres vendo incêndios logo adiante, dos quais deveríamos nos precaver? É este um dos significados do poeta como "antena da raça"? Os alertas contra a coisificação em poetas líricos como Bertolt Brecht, Carlos Drummond de Andrade e George Oppen mostram-nos que seus sismógrafos talvez notassem terremotos e maremotos gigantescos que ainda estão por vir? Será que engavetamos rápido demais artistas e poetas que eram necessários para que nossa sociedade evite catástrofes, políticas ou não? Estará diminuindo no mundo o número de artistas e poetas-antena por causa dos traumas políticos dos sobreviventes de regimes totalitários, seja o regime sob Joseph Stálin, sob Adolf Hitler ou sob as redes de assassinos comandados por homens como Emílio Garrastazu Médici, Augusto Pinochet e Jorge Rafael Videla?
Independência do artista quanto à política? Eu quero! Mas só se for a que Pier Paolo Pasolini defendia e possuía. O que era bom para Pasolini me serve.
Eu vou voltar a este assunto nos próximos dias. Gostaria de encerrar este artigo com um exemplo de arte que busca alertar-nos contra a distopia, Das Duracellband (1980), de Klaus vom Bruch, um artista conceitual alemão que foi pioneiro no uso do vídeo. São cerca de 10 minutos. Raras vezes a expressão "vale a pena" me pareceu tão apropriada.