Tento imaginar em vertigem o que Glauber Rocha poderia estar fazendo hoje por nós se não houvesse sido desintegrado ("I saw the best minds of my generation destroyed by madness starving hysterical naked" ad infinitum) pelo infante mutante a grunhir e babar ácido-Alien pela boca e feridas entre as grades do Berço Esplêndido, suas mãozinhas já tão rechonchudas por sua gulodice canibal, a República Punitiva do Brasil não espera que lhe abram alas. O facão sempre esteve em sua mão. Glauber Rocha nasceu em 1939 e poderia estar agora mesmo produzindo em algébrico auge aos 73 anos de idade. Se Jakobson percebeu que sua geração jamais seria perdoada pelo massacre iniciado com a morte absurda de Blok e coroando-se em sarças com a de Maiakóvski – a morte que ele especificamente vociferou como acusação naquele brilhante documento contra a destruição das melhores mentes de uma folha de calendário, seu A Geração que Desperdiçou seus Poetas, – a morte de Glauber Rocha certamente pesa em pêndulo feito foice sobre a cabeça da geração que nos legou a Trans(ai)ção Democrática. Que José Sarney ainda consuma parte do nosso oxigênio e tenha Fundação em seu nome paga com dinheiro público, enquanto o Glauber Rocha de Maranhão 66 já não seja mais sequer por desventura ossos, é apenas uma figura (como na teologia cristã) para o descalabro de nossa miséria. Não é irônico, como alguns diriam exultando-se no hackneyed-clichê, é demasiado literal. Brasileiros rebolam e sambam sobre sua própria carniça para espantar as moscas. Ouvir a frase-de-efeito ::: Desenvolvimento Sustentável ::: quando tal desenvolvimento em sua base não permite o Sustento a todos e ainda destrói o sustento dos que o têm, mostra-nos não como perdemos o bonde da História, mas como parecemos conduzí-lo. Se Josué de Castro escreveu que o mundo divide-se entre os que não comem e os que não dormem, com medo da revolta dos que não comem, a democracia contemporânea já garantiu o sonífero para todos. Quem dorme não tem fome. Quem não tem pão, que cace seu ansiolítico. Nós, poetas, já estamos dormindo.
A Deutsche Wellepublicou ontem meu artigo opinativo sobre a parca presença de mulheres entre os autores convidados pela FLIP em geral e neste ano. Pude apenas de leve apresentar também o problema da parquíssima presença de autores de fora do âmbito cultural europeu e norte-americano, assunto ao qual voltarei em breve, num artigo aqui neste espaço. Já espalhei o artigo "Com poucas autoras, Flip não reflete a produção literária atual" por algumas redes sociais. Ele será republicado aqui, em forma expandida, em alguns dias. Achei por bem, em primeiro lugar, publicar aqui minha tentativa de entrevista com o curador deste ano, o jornalista Miguel Conde. Estive em contato com a assessoria de imprensa da FLIP entre os dias 13 de junho e 25 de junho, por correio eletrônico e telefone. Devo dizer que a assessoria de impresa, através da A4 Comunicação, foi extremamente educada e prestativa, ainda que o contato tenha se tornado mais difícil após o envio de minhas perguntas, que podem ser lidas abaixo. Segundo a assessoria, Miguel Conde estava ocupado demais com os preparativos da festa que se aproximava, e não estava mais encontrando tempo para qualquer entrevista. Imagino que o teor de minhas perguntas também não tenha ajudado. De minha parte, tratava-se de honestidade, deixando claro desde o princípio que tipo de abordagem eu faria sobre a curadoria, sem qualquer intenção de publicar um artigo celebratório, mas consciente e crítico. Busco com esta discussão, insisto, simplesmente colaborar com a melhora de um evento que me parece sim importante, mas que só poderá realmente causar um impacto tanto na Literatura como na sociedade brasileira, se se livrar de certo elitismo, não de qualidade literária, mas socioeconômico, de gênero, de etnia, tanto em sua curadoria como em sua organização e acesso. Abaixo, minha mensagem à assessoria de imprensa e as perguntas que eu tentei fazer chegar ao curador Miguel Conde. Publico-as aqui pois as considero boas introduções e resumos aos problemas que venho discutindo nesta série de artigos sobre a FLIP.
18 de junho de 2012.
Mensagem à Assessoria de Imprensa da FLIP 2012.
Meu artigo pretende abordar a pequena presença de autoras na programação da FLIP nos últimos 10 anos e especialmente na edição de 2012. Quando iniciei a série de artigos (já escrevi sobre a presença algo limitada de poetas numa feira que tem um Grande Poeta como homenageado), dos 40 autores apenas 5 eram mulheres. Hoje, quando o número de autores subiu para 44, são 7 mulheres, contando obviamente Laerte Coutinho entre elas. É um dos números mais baixos em toda a história do evento.
Pretendo ainda analisar a presença não-europeia e não-americana na Festa. Portanto, trata-se de uma entrevista e, principalmente, a oportunidade do curador para comentar a situação antes do artigo ser publicado na Deutsche Welle.
Minhas perguntas seriam, dessarte, estas:
1- Caro Sr. Conde, a História da FLIP tem sido marcada por uma parca presença de autoras na programação. Este ano, com sua curadoria, o evento chegou a uma de suas porcentagens mais baixas nestes termos. Ao iniciar meu trabalho, eram 5 entre 40. Hoje, 13 de junho de 2012, a programação apresenta 7 autoras (incluo aqui Laerte Coutinho) entre 44. Esta minúscula presença feminina na FLIP deste e de outros anos, em sua opinião, reflete verdadeiramente a produção literária de qualidade no mundo hoje, ou apenas espelha as políticas editoriais brasileiras? A que o senhor creditaria esta mínima presença de autoras em sua curadoria para a FLIP 2012?
2- O evento deste ano homenageia Carlos Drummond de Andrade, um dos grandes poetas brasileiros do século XX. Segundo seu texto de apresentação, "Embora hoje seja considerado um clássico, por muito tempo Drummond recebeu críticas duras de pessoas para as quais o que ele escrevia não merecia nem mesmo ser chamado de poesia." Pude contar 10 poetas entre os 44 convidados até o momento. O senhor diria que a porcentagem é adequada, num ano que tem um poeta como homenageado, e seria possível dizer que a seleção de sua curadoria buscou encontrar hoje no país aqueles que neste momento estão expandindo o conceito de poesia contemporânea?
3- O número de autores de fora do âmbito cultural europeu e norte-americano da FLIP, e especialmente este ano, é baixíssimo. Talvez apenas o poeta Adonis e o prosador Teju Cole possam ser realmente considerados autores de fora do âmbito europeu ou americano. Há escritores com histórico de imigração, é certo, mas sendo imigrantes ou filhos de imigrantes vivendo nos Estados Unidos ou Reino Unido. Não conheço sua formação e quantas línguas domina, mas não seria possível dizer que se trata de uma responsabilidade grande demais para um único curador, com formação linguística específica, preparar a programação de um evento que se chama Festa Literária INTERNACIONAL? Como se deu o processo de seleção?
4- De acordo com as respostas às perguntas acima, eu pediria que o senhor comentasse se é realmente possível chamar o evento de Festa Literária Internacional, ou se tem se mostrado mais como uma festa demasiado dependente do mercado editorial brasileiro e das traduções disponíveis no mercado.
Vagando ontem pelos canais de vídeos compartilhados à procura de documentários sobre poesia e os poetas que amo, encontrei alguns arquivos de áudio de um dos meus heróis, Kenneth Patchen.
Kenneth Patchen lê seu texto "In order to"
O norte-americano, nascido em 1911, é herói pessoal meu. Sua poesia, sua prosa e seu trabalho visual o enquadram lá no mesmo rol em que incluo minha mestra Hilda Hilst, minha presidente das febres.
Creation Kenneth Patchen
Wherever the dead are there they are and Nothing more. But you and I can expect To see angels in the meadowgrass that look Like cows - And wherever we are in paradise in furnished room without bath and six flights up Is all God! We read To one another, loving the sound of the s’s Slipping up on the f’s and much is good Enough to raise the hair on our heads, like Rilke and Wilfred Owen
Any person who loves another person, Wherever in the world, is with us in this room - Even though there are battlefields.
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Poesia catúlica, prosa febril. Seu romance The Journal of Albion Moonlight (1941) é um dos meus livros de cabeceira, e um dos textos distópicos mais assustadores que já li. Antecipa muita coisa da prosa do pós-guerra.
Kenneth Patchen lê de seu romance The Journal of Albion Moonlight (1941)
Seria interessante lê-lo à luz dos romances de Samuel Beckett, por exemplo. Não sei se isso já foi feito. Os dois são muito diferentes, é verdade. Patchen é quase sempre exuberante, mesmo em meio à destruição. Beckett é muito mais seco, irônico. Na poesia, Patchen vai do celebratório ao satírico. Gosto bastante.
My Generation Reading The Newspapers Kenneth Patchen
We must be slow and delicate; return the policeman's stare with some esteem, remember this is not a shadow play of doves and geese but this is now the time to write it down, record the words— I mean we should have left some pride of youth and not forget the destiny of men who say goodbye to the wives and homes they've read about at breakfast in a restaurant: 'My love.'—without regret or bitterness obtain the measure of the stride we make, the latest song has chosen a theme of love delivering us from all evil—destroy. . . ? why no. . . this too is fanciful. . . funny how hard it is to be slow and delicate in this, this thing of framing words to mark this grave I mean nothing short of blood in every street on earth can fitly voice the loss of these.
Muito do que tornou os Beats famosos (nestes momentos eu chego a quase ter um pouco de raiva dos Beats, confesso, por sua máquina marqueteira que nem sempre foi justa com os seus próprios mestres) já estava em poetas da década de 20, como Langston Hughes, Kenneth Rexroth, Muriel Rukeyser e o próprio Kenneth Patchen.
Allen Ginsberg e Kenneth Patchen no backstage do Living Theatre, onde Patchen fazia uma de suas performances com Charlie Mingus, Nova Iorque, 1959. Foto de Harry Redl.
Be Music, Night Kenneth Patchen
Be music, night, That her sleep may go Where angels have their pale tall choirs
Be a hand, sea, That her dreams may watch Thy guidesman touching the green flesh of the world
Be a voice, sky, That her beauties may be counted And the stars will tilt their quiet faces Into the mirror of her loveliness
Be a road, earth, That her walking may take thee Where the towns of heaven lift their breathing spires
O be a world and a throne, God, That her living may find its weather And the souls of ancient bells in a child's book Shall lead her into Thy wondrous house
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Kenneth Patchen oraliza dois poemas, em vídeo com cenas de seu contexto histórico.
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Eve Of St. Agony Or The Middleclass Was Sitting On Its Fat Kenneth Patchen
Man-dirt and stomachs that the sea unloads; rockets of quick lice crawling inland, planting their damn flags, putting their malethings in any hole that will stand still, yapping bloody murder while they slice off each other’s heads, spewing themselves around, priesting, whoring, lording it over little guys, messing their pants, writing gush-notes to their grandmas, wanting somebody to do something pronto, wanting the good thing right now and the bad stuff for the other boy. Gullet, praise God for the gut with the patented zipper; sing loud for the lads who sell ice boxes on the burning deck. Dear reader, gentle reader, dainty little reader, this is the way we go round the milktrucks and seamusic, Sike’s trap and Meg’s rib, the wobbly sparrow with two strikes on the bible, behave Alfred, your pokus is out; I used to collect old ladies, pickling them in brine and painting mustaches on their bellies, later I went in for stripteasing before Save Democracy Clubs; when the joint was raided we were all caught with our pants down. But I will say this: I like butter on both sides of my bread and my sister can rape a Hun any time she’s a mind to, or the Yellow Peril for that matter; Hector, your papa’s in the lobby. The old days were different; the ball scores meant something then, two pill in the side pocket and two bits says so; he got up slow see, shook the water out of his hair, wam, tell me that ain’t a sweet left hand; I told her what to do and we did it, Jesus I said, is your name McCoy? Maybe it was the beer or because she was only sixteen but I got hoarse just thinking about her; married a john who travels in cotton underwear. Now you take today; I don’t want it. Wessex, who was that with I saw you lady? Tony gave all his dough to the church; Lizzie believed in feeding her own face; and that’s why you’ll never meet a worm who isn’t an antichrist, my friend, I mean when you get down to a brass tack you’ll find some sucker sitting on it. Whereas. Muckle’s whip and Jessie’s rod, boyo, it sure looks black in the gut of this particular whale. Hilda, is that a .38 in your handbag?
Ghosts in packs like dogs grinning at ghosts Pocketless thieves in a city that never sleeps Chains clank, warders curse, this world is stark mad
Hey! Fatty, don’t look now but that’s a Revolution breathing down your neck.
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Leia abaixo um artigo meu sobre o norte-americano, tratando mais uma vez sobre a questão dificílima política x / + poética, com uma tradução para um dos meus poemas favoritos de Kenneth Patchen.
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"A poesia ativa de Kenneth Patchen"
por Ricardo Domeneck
(artigo publicado a 2 de março de 2009 na franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.)
O poeta estadunidense Kenneth Patchen nasceu na pequena cidade de Niles, no estado de Ohio, em 1911. Contemporâneo de poetas que se tornariam muito importantes no pós-guerra, como Charles Olson (nascido em 1910), John Cage (nascido em 1912) ou Robert Duncan (nascido em 1919), Kenneth Patchen inicia suas atividades poéticas em um dos períodos mais tumultuados da história dos Estados Unidos, em plena Depressão pós-1929, unindo-se a poetas como os que se ligaram à comunidade dos Objectivists (Louis Zukofsky, George Oppen, Lorine Niedecker, Carl Rakosi, Charles Reznikoff) e poetas "independentes" como Kenneth Rexroth, Muriel Rukeyser, Langston Hughes, Robinson Jeffers e Kenneth Fearing.
Esta "geração" de poetas, que se tornaria ativa no período entre-guerras, foi a mais politizada que o modernismo americano gerou. Trata-se de uma geração de poetas ativistas. Entre o liberalismo democrático-esquerdista de Cummings ou Williams e as tendências de Lewis ou Pound à direita (sem mencionar a posição conservadora de Eliot), estes poetas da década de 20 e 30 assumiram altos riscos da ação política, na vida e na escrita, muitos ligados ao Partido Comunista americano. Ninguém está sugerindo que sua poesia seja lida por causa de seu engajamento político. Mas é também um equívoco que eles não sejam lidos pelo mesmo motivo. Pois o cânone, que muitos crêem ser "incondicionado e neutro", exilou por décadas muitos destes poetas por motivos políticos. Basta ler seus poemas para saber que eles teriam muito a nos ensinar se suas obras tivessem a visibilidade que a seleção oficial do cânone provê a seus eleitos.
Mas estes poetas realmente levavam a sério suas est-É-ticas. George Oppen e Kenneth Fearing abandonaram a escrita pelo ativismo político, foram investigados pelo FBI e pelo comitê do senador Joseph McCarthy, voltando a publicar no fim da década de 50. Oppen se exilaria no México, antes de retornar aos Estados Unidos e publicar livros importantes como The Materials (1962) e Of Being Numerous (1968). Sem abandonar a poesia, Muriel Rukeyser seguiu com seu trabalho de resistência, sendo também perseguida e investigada. Louis Zukofsky incorporou escritos políticos (até mesmo fragmentos d´O Capital, de Marx) em seu épico A, e o anarquismo de Kenneth Rexroth seria fundamental para a educação política de poetas mais jovens, como os Beats.
O período entre as duas Grandes Guerras foi marcado pela reação às vanguardas da primeira década no âmbito anglófono. Quando pensamos hoje na fama de poetas como Ezra Pound, Gertrude Stein e William Carlos Williams, é fácil esquecer que estes poetas estavam completamente soterrados e quase esquecidos até meados da década de 50 e 60, quando poetas mais jovens, como Allen Ginsberg, Jack Spicer, Frank O´Hara e John Ashbery começaram a recuperar seus trabalhos, em reação à crítica unívoca e à poesia que eram pregadas pelos New Critics, baseadas na poética tardia de T.S. Eliot e W.H. Auden, que imperaram nas décadas de 40 e 50, formando a parte mais visível e oficial do cânone. Algo muito parecido ocorreu no Brasil, com o Grupo de 45 reagindo contra os primeiros modernistas brasileiros, acusando-os de "falta de seriedade e profundidade", tomando muitos dos parâmetros dos New Critics para sua poética. Qualquer semelhança com o momento atual não é mera coincidência. Humor, a quebra das dicotomias entre as tais de cultura erudita e cultura popular, linguagem coloquial e experimentação sintática, uma alta consciência histórica sobre a posição social do poeta, assim como o envolvimento político explícito eram (e ainda são) vistos como uma espécie de traição da causa "propriamente poética". Mas, para poetas como Patchen, Oppen ou Rukeyser, assim como mais tarde para os poetas ligados à revista L=A=N=G=U=A=G=E, toda escrita tem implicações políticas, mesmo naqueles autores que se sonham "neutros e universais", mascarando, de certa forma, sua posição política, assim como dissimulam sua visão subjetiva em uma linguagem que se sonha realmente objetiva.
Talvez algo próximo daquilo que escreveu Wittgenstein, de que ética e estética são uma só?
Em poetas como Ezra Pound e Louis Zukofsky, para citar posicionamentos distintos, isto se refletia de forma direta na escrita. George Oppen o faz de forma mais implícita, em poemas como os do livro Of Being Numerous. Kenneth Patchen tem límpidos poemas de amor, sem "sombra" de ativismo político (a resistência pela negação, como queria Theodor Adorno no ensaio "Lírica e sociedade"?) e textos em que ele se entrega à resistência declarada ao sistema e à guerra. Devemos contornar a política de um poeta para poder ler seus textos? A política de direita de Ezra Pound? A marxista de Louis Zukofsky? A política impede nossa apreciação dos poemas de A Rosa do Povo (1945), de Carlos Drummond de Andrade? É mais implícita e discreta em A Educação pela Pedra (1966), de João Cabral de Melo Neto? Devemos separar os poemas "condicionados" dos "incondicionados" na obra de poetas como Kenneth Patchen? Há poemas incondicionados?
Se os primeiros modernistas encontraram seus "defensores" entre os mais jovens (ainda que muitos sigam negligenciados), os poetas da década de 30 não tiveram a mesma sorte. Sob a "acusação" de serem "meros poetas políticos", perseguidos pelo establishment literário paranóico e histérico da Guerra Fria, bons autores como Kenneth Patchen, Muriel Rukeyser, Louis Zukofsky e George Oppen seguem à margem da historiografia literária e poética americana e mundial. Apenas nos últimos anos o excelente trabalho de George Oppen, por exemplo, parece começar a dar sinais de estabelecer-se como incontornável.
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First Will and Testament Kenneth Patchen
I here deliver you my will and testament, in which you will find that what I am is not at all what I would: I make no demand that you be just in weighing it, for I know that you will be so for your own sake; but I do charge you by the religion of poetry itself not to sneer at some things which may seem strange to you, for I have burnt no house but my own and nobody will force you to warm yourself at its heat.
Aqui entrego a vocês meu testamento, no qual descobrirão que o que sou não é por certo o que seria: eu não exijo que sejam justos ao ponderar sobre ele, pois eu sei que o serão para o seu próprio bem; no entanto, eu comando pela religião mesma da poesia que não zombem daquilo que possa lhes parecer estranho, pois eu não queimei casa alguma além da minha e ninguém há-de forçar que vocês se aqueçam em seu fogo.
(tradução de Ricardo Domeneck)
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Aqueles que se reuniram em uma comunidade, como os Objectivists, têm recebido mais atenção nos últimos anos, e começam a estabelecer seus lugares no cânone historicamente elíptico. Poetas independentes como Kenneth Patchen, Muriel Rukeyser, Kenneth Rexroth acabaram soterrados sob a fama daqueles que eles próprios ajudaram a educar e formar, como os media darlings dos Beats: Ginsgerg, Kerouac e colegas.
Muito do que vemos de inovação nos Beats e autores da New York School (Ashbery, O´Hara, etc), por exemplo, foi iniciado por poetas como Kenneth Patchen, Langston Hughes e Kenneth Rexroth, como a criação da jazz poetry, o retorno à tradição bárdica, o ativismo político, a boemia entre a costa Leste e Oeste americanas, a recuperação de técnicas dadaístas e a tentativa de quebra do dualismo arte/vida.
Kenneth Patchen colaborou com músicos como Charles Mingus e John Cage, gravando muitos poemas oralizados ao som do jazz, prática que Jack Kerouac tornaria mais tarde célebre.
Pelo menos dois romances de Kenneth Patchen são considerados obras únicas na língua inglesa: The Journal of Albion Moonlight (1941) e The Memoirs of a Shy Pornographer (1945). Sua escrita fluida, dividindo-se entre a claridade de um Catulo na poesia e a densidade de um Beckett na prosa, lembra-me a figura fugidia e plural de Hilda Hilst.
Eu acredito que o trabalho de Kenneth Patchen oferece interesse formal para os jovens poetas contemporâneos. Sua obra entrega-se a muitas práticas distintas e plurais, em escrita e em performance oral, criação sonora e composição visual, em prosa-poesia e poesia-prosa. Se os norte-americanos não estão muito interessados, o azar é deles. Devoremos nós a Patchen.
--- Ricardo Domeneck
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Abaixo, a excepcional poesia pictórica de Kenneth Patchen, que nos lembra o trabalho visual de brasileiros como Valêncio Xavier e Sebastião Nunes. Kenneth Patchen os chamava de picture poems.
Em um de seus mais importantes textos críticos, a palestra Composition as explanation que proferiu em 1926 em Cambridge e Oxford, Gertrude Stein declara que "No one is ahead of his time, it is only that the particular variety of creating his time is the one that his contemporaries who also are creating their own time refuse to accept."
No segundo número impresso da Modo de Usar & Co. nós publicamos a tradução de Andrea Matheus para este que me parece um dos textos críticos modernistas mais necessários para o debate poético e est-É-tico contemporâneo no Brasil. Na versão de Andrea Matheus lemos "Ninguém está à frente de seu tempo, é só que a variedade particular de criar o seu tempo é aquela que seus contemporâneos que também estão criando seu próprio tempo se recusam a aceitar."
A declaração de Gertrude Stein sempre me pareceu muito saudável como contrapartida a certa crítica de tom farsesco que insiste por vezes no discurso sobre o artista que estava à frente do seu tempo, mas usado para exonerar a era em particular pela incompreensão gigantesca com que o trabalho do artista foi recebido por seus contemporâneos. Basicamente, Gertrude Stein tentava fazer sua apaixonada defesa do poeta e artista contemporâneos em uma sociedade preguiçosa e dependente de juízos críticos já estabelecidos, seguindo à declaração tão bonita na palestra de que "é tão mais excitante e satisfatório para todo mundo se se pode ter contemporâneos, se todos os seus contemporâneos pudessem ser seus contemporâneos."
Ao mesmo tempo, quando penso nesta declaração de Stein, lembro-me de Ezra Pound em seu The ABC of Reading (1934), quando fala sobre o artista como a "antena da raça". Nossa sensibilidade política hoje se incomoda com o uso da palavra "raça", especialmente vindo de Pound, mas não deveríamos deixar que isso apague a proposição principal aqui, e ela está contida no vocábulo "antena". Aqueles que citam a passagem sem conhecerem o livro na íntegra deixam-se levar por deturpações ou mesmo preocupações legítimas que já se solidificaram em torno de Pound, que no entanto explica esta proposição de forma bem-humorada e elíptica, como era de seu costume, mas mesmo assim clara: "Uma nação que ignora as percepções de seus artistas entra em decadência. Depois de um tempo ela deixa de agir, e apenas sobrevive."
Não creio que haja qualquer contradição entre Gertrude Stein em suas citações acima e Ezra Pound quando este escreve: "Artistas e poetas sem dúvida entusiasmam-se ou excitam-se com coisas muito tempo antes do público em geral. Antes de decidir se um homem é um tolo ou um bom artista, faria bem perguntar não apenas se `ele entusiasma-se sem motivo´, mas `será que ele está vendo algo que nós não vemos?´. Seu comportamento esquisito será fruto de sua percepção de um terremoto iminente, ou por sentir o cheiro da fumaça de um incêndio que nós ainda não vemos ou sentimos?"
É difícil discutir isso num país onde tantos acreditam que, para proteger a independência do poeta e artista, é necessário recorrer a conceitos equivocados como "trans-historicidade", que tem sido transformado em sinônimo de sincrônico (o que me parece absurdo ou, no mínimo, questionável), e que acaba por sua vez ainda confundindo-se com "pós-utópico", outro conceito questionável e elaborado em um discurso que tende justamente ao diacrônico (na fórmula: "a poesia - obviamente no singular - antes era assim, agora é assado") - naquela que talvez seja a maior contradição do ensaio de Haroldo de Campos de meados dos anos 80 ("Da morte da arte à constelação: o poema pós-utópico").
Os últimos acontecimentos no Japão têm tido um impacto muito grande sobre as minhas sensibilidades e psicoses, trouxeram novamente ao teste e à testa de minha mente uma de minhas preocupações est-É-ticas obsessivas, tornaram ainda mais forte em mim a percepção de que uma arte e poesia pré-distópicas seguem sendo incrivelmente necessárias. Há tempos defendo que algumas das vanguardas históricas mais importantes do entreguerras e do pós-guerra eram muito mais alertas contra a distopia do que propagandas por qualquer utopia. Os poetas e artistas do Cabaret Voltaire e da revista DADA agiam em meio à destruição da Grande Guerra, e a Internacional Situacionista buscava muito mais resistir a uma realidade presente, acachapante e destrutiva, que propor um mundo futuro ou não-lugar de forma ingênua. Um não-lugar e um não-tempo parecem ser justamente o que temos na proposta de uma poesia e arte trans-históricas.
Eu sempre concordei com Gertrude Stein e ainda concordo: não há homens ou mulheres à frente de seu tempo. Alguns homens e mulheres por vezes nos mostram que os limites do nosso tempo talvez estejam além do que imaginávamos. Mostram-nos talvez que o tempo por vezes nos supera em nossa percepção dele.
Mas será que os autores de ficção científica distópica, por exemplo, são homens e mulheres vendo incêndios logo adiante, dos quais deveríamos nos precaver? É este um dos significados do poeta como "antena da raça"? Os alertas contra a coisificação em poetas líricos como Bertolt Brecht, Carlos Drummond de Andrade e George Oppen mostram-nos que seus sismógrafos talvez notassem terremotos e maremotos gigantescos que ainda estão por vir? Será que engavetamos rápido demais artistas e poetas que eram necessários para que nossa sociedade evite catástrofes, políticas ou não? Estará diminuindo no mundo o número de artistas e poetas-antena por causa dos traumas políticos dos sobreviventes de regimes totalitários, seja o regime sob Joseph Stálin, sob Adolf Hitler ou sob as redes de assassinos comandados por homens como Emílio Garrastazu Médici, Augusto Pinochet e Jorge Rafael Videla?
Independência do artista quanto à política? Eu quero! Mas só se for a que Pier Paolo Pasolini defendia e possuía. O que era bom para Pasolini me serve.
Eu vou voltar a este assunto nos próximos dias. Gostaria de encerrar este artigo com um exemplo de arte que busca alertar-nos contra a distopia, Das Duracellband (1980), de Klaus vom Bruch, um artista conceitual alemão que foi pioneiro no uso do vídeo. São cerca de 10 minutos. Raras vezes a expressão "vale a pena" me pareceu tão apropriada.
Nos últimos meses, alguns amigos entregaram-se com paixão à militância política por seus candidatos à presidência, tanto à direita como à esquerda, ainda que tenha se tornado difícil, hoje em dia, aplicar esta velha dualidade como distinção absoluta. Se levarmos em conta as críticas que compareceram na campanha, em que acusações de "fascismo", "autoritarismo" ou "antidemocrático" eram aplicados de cada lado do debate, pareceria difícil. As alianças políticas estabelecidas por cada partido para garantir sua vitória e possível maioria no Congresso Nacional tornariam ainda mais impossível esta velha distinção. Mas sejamos práticos: ignorando, por ora, acusações de possíveis veleidades antidemocráticas de cada lado, o fato concreto de que o PT defende uma participação muito mais clara e massiva do Estado nas relações sócioeconômicas que influem no bem-estar da população, quando comparado ao laisser-faire massivo do PSDB, já nos serviria para distinguir de que lado balançavam os pezinhos dos candidatos sobre esta cerca, na qual pareciam em muitos momentos estarem de mãos dadas.
Nas conversas, discussões e tentativas de debate que tive com estes vários amigos, em geral particulares, às vezes públicas, fui percebendo como era praticamente impossível manter aquele desejo sincero, de todos, de um debate verdadeiro e amplo, simplesmente porque a militância exige, em tantos momentos de uma campanha difícil como esta, aquela defesa quase cega, a aceitação em bloco, impedindo que as limitações óbvias de cada partido pudessem ser discutidas de forma aberta, clara. Cada um dirá também que as estratégias assumidas pelo adversário impediram este debate adulto e sério. Não sei. Saio desta experiência com a impressão de que debate político não existe em tempo de eleição, quando tanto parece estar em jogo, e está, prestes a perder-se ou confirmar-se.
Além disso, o discurso apocalíptico de cada lado pareceu-me muito mais intenso nesta eleição. A tática populista do "messianismo político" parece ter cedido à estratégia da invectiva escatológica, ou (permitam-me o neologismo) de um "apocalipsismo político". O eco de "calipso" no neologismo traz à mente o caráter de religião de espetáculo presenciado nas últimas semanas. Não pareciam contar tanto as qualidades de cada candidato quanto afirmar o desastre político que a vitória do adversário significaria. E não duvido que cada um acreditava realmente neste apocalipse anunciado. Para os interesses políticos e principalmente econômicos dos eleitores de Serra (apenas a curto ou médio prazo, se tivessem visão política verdadeira), a vitória de Dilma Rousseff significa verdadeiramente uma catástrofe, como a vitória de Serra teria significado uma catástrofe para os interesses políticos dos adversários. Neste duelo para decidir quem tinha o maior Apocalipse, tomar uma decisão lúcida parecia realmente difícil, em especial em meio à histeria das últimas semanas, e da interferência canhestra de questões religiosas em um debate político. O episódio em que Joseph Ratzinger, o líder de um estado teocrático, tentou influir nas eleições de um estado democrático e oficialmente laico fica em nossa História como um momento de desrespeito a mais da Igreja Católica em solo brasileiro. Não estou diminuindo a importância da discussão da legalidade do aborto, mas buscar fazer com que isto defina a eleição do presidente da República, quando tantos fatores estavam em jogo, pareceu-me em alguns casos beirar o grotesco.
No entanto, se os discursos apocalípticos pareciam exagerados, tampouco cria eu ser prudente ignorá-los. E foi levando-os em conta, contabilizando estas possíveis catástrofes, que tomei minha decisão pessoal de qual candidato preferia ver na presidência da República, mesmo que tenha também tomado a decisão clara de não militar por tal candidato. Explicarei o porquê adiante. Para o revelar aqui, recorreria a uma paráfrase daquele capítulo de negativas do romance genial de Machado de Assis: pois, contabilizando os débitos da possível catástrofe política anunciada e alegada a cada lado da disputa presidencial, e o crédito das possibilidades de transformação social necessária no Brasil que cada um representava, ao chegar à tabela e resultado da conta encontrei Dilma Rousseff com um pequeno saldo. E é por isso que me alegrei, sem qualquer entusiasmo ingênuo, com sua vitória neste domingo. Tentarei elaborar um pouco sobre isso. O uso que vários amigos queridos meus fizeram da acusação de "fascista" e "antidemocrático", tanto para Lula ou Dilma, assim como para Serra, parecem-me exageradas, mesmo que o PT esteja realmente muitíssimo confortável no poder, e Serra me pareça um protótipo mal-acabado de brutamontes truculento e autoritário. A isso, restaria dizer: mostre-me o partido que algum dia deixou o poder de bom grado. O PSDB criou a emenda da reeleição para manter Fernando Henrique Cardoso no poder, emenda vilipendiada por Lula e pelo PT, aqueles que, na sua boa hora, a souberam usar. De qualquer forma, a disputa presidencial ocorreu em terreno democrático, e o discurso de bicho-papão hoje em dia não ajuda, nem convence. De qualquer forma, por mais temerário que seja afirmá-lo aqui, confesso que, ao levar sim a sério as possibilidades de catástrofe antidemocrática de cada candidato, pareceu-me mais importante manter a continuidade dos programas sociais que (alega-se e torço para que seja verdade) tiraram 30 milhões de brasileiros da pobreza extrema. Se foram criados no governo de FHC, parece claro que passaram a funcionar no de Lula. Para mim, isto foi o que mais pesou na balança de minha decisão pessoal. Que estes brasileiros tenham votado para defender seus interesses econômicos (mesmo que estes interesses econômicos envolvam uma bolsa do governo de míseras dezenas de reais) parece-me totalmente legítimo, ainda que figuras como Olavo de Carvalho e Ferreira Gullar (ou nanicos intelectuais como Reinaldo Azevedo), em meio a certa histeria religiosa e ideológica, tentassem fazer disso algo a se lamentar. Ora, a classe média e alta vêm agindo politicamente de acordo com seus interesses econômicos há séculos. E insisto dizer tudo isso sem a menor simpatia especial pelo PT.
Deixei o Brasil há cerca de uma década. Vivi entre a Alemanha e o Brasil nos anos 2000 a 2002, quando me mudei de forma definitiva para Berlim, voltando ao Brasil apenas para visitar meus pais ou resolver questões burocráticas. Em 2002, uma de minhas últimas ações como residente da República Federativa do Brasil foi votar em Luís Inácio Lula da Silva em sua primeira vitória eleitoral à presidência, e sair às ruas para comemorar. Lembro-me ainda de estar com amigos na Avenida Paulista, com aquele cheiro de mudança no ar. Estava entusiasmado. Oito anos depois, vivendo em Berlim, lendo homens e mulheres favoritos como Ludwig Wittgenstein e Hannah Arendt, confesso não encontrar em mim sequer sombra daquele brand tipicamente latino-americano de messianismo. O que resta é um desejo difuso de parúsia que se faz herança da minha educação religiosa como criança, pela qual sou tão grato, e pela leitura de outros seres prediletos e mestres eleitos, como Walter Benjamin. Contemplo hoje homens como Lula, FHC e Serra, ou mulheres como Dilma Rousseff e Marina Silva, com uma desconfiança e suspeita que são o que de melhor aprendi e herdei dos poetas anarquistas que me formaram, como os dadaístas germânicos.
Restaria, por fim, falar sobre aquela imposição est-É-tica de não militar. Como disse, muitos amigos meus militaram de forma ativa por um ou por outro candidato nesta eleição. Também testemunhei a maneira como muitos poetas tomaram partido, não posição, e defenderam claramente um ou outro candidato, mesmo entre aqueles que são tão adamant sobre a separação entre estética e ética.
A alguns isso parecerá uma contradição, vindo de alguém que insiste (ad nauseam, dirão alguns) na conjunção de ética e estética, fazendo meu joguinho gráfico constante na palavra est-É-tica, mas só me manifestei publicamente com amigos, em debates virtuais, quando parecia haver um abuso da linguagem no que se debatia na imprensa brasileira, distorcendo-a, como na maneira que o PT vinha usando o substantivo "mudança", ou na estratégia absurda do PSDB, de ferir a natureza laica do nosso Estado ao usar como usou suas alianças políticas com a Igreja Católica. Era este o limite imposto por minha crença inabalável na conjunção entre ética e estética. Ora, alguém poderá peguntar, por que "imposto"? Essa discussão toca no dilema que senti nestes últimos meses e ao qual já me referi aqui.
O que, eu passei a me perguntar, permitia a tantos poetas brasileiros, poetas que insistem na separação entre poesia e política, poetas que insistem na separação entre ética e estética, poetas que abraçam conceitos questionáveis como trans-historicidade e "poema pós-utópico", poetas que se assanham, atiçam e atacam a qualquer tentativa de leitura contextual de sua poesia, poetas que são inimigos da crítica sociológica, poetas que afirmam que a única obrigação do poeta é escrever poemas bons e bonitos, sem qualquer ligação obrigatória com seu tempo, o que, eu me perguntei, permitia a estes poetas tomarem partido tão claro, defenderem Dilma Rousseff ou José Serra com tanta paixão em seus blogs, em seus perfis no Facebook, no Orkut, etc, etc, etc. Não há contradição nisso, eu creio: pois é justamente sua crença na separação completa entre ética e estética que lhes permitiu esta imisção nos jogos de poder. Porque eles acreditam na separação, digamos, entre sua pessoa física e sua pessoa poética. Assim, eu imagino, eles criticariam poetas que escrevem para defender partidos, como um Maiakóvski ou Brecht o fizeram em vários momentos, mas talvez por misturarem sua poesia e sua política, não necessariamente por assumirem posições num possível governo, mesmo que seja a posição de defendê-lo textualmente.
Não estou de maneira alguma criticando os poetas que defenderam Dilma Rousseff ou José Serra abertamente apenas por fazê-lo. Há muitos amigos meus, extremamente próximos, que o fizeram. O que me chamou a atenção é quantos deles discordam, às vezes com veemência, de minha tentativa de conjugar poetica e formalmente a discussão ético-estética. Pois alguns destes amigos (e os que estão longe de serem amigos) sempre defendem com paixão o que chamaria de absenteísmo público do poeta nestes últimos 25 anos, como uma defesa da suposta independência política do poeta, sua neutralidade. É aí que me pergunto se não haveria certa contradição. Ao mesmo tempo, algumas pessoas me escreveram perguntando por que um poeta como eu, tão insistente na discussão das implicações políticas do trabalho formal e crítico, mantinha-me assiduamente fora da militância pelo PT ou pelo PSDB em meio à shit storm que foi esta eleição, como se houvesse aí uma contradição de minha parte. Pois reafirmo que foi minha crença na est-É-tica que me impôs a não-militância. No ensaio que estou escrevendo e que gostaria de haver terminado antes das eleições, trato das alianças sociopolíticas dos poetas, sua relação com o mecenato, seja privado ou governamental, e como estas alianças sociopolíticas podem influir em suas escolhas formais. Assim como as transformações formais da poesia dos últimos séculos estão ligadas às transformações do papel do poeta em sua comunidade, deflagradas por tantos cataclismos políticos, como a Revolução Francesa e a Revolução Russa, para mencionarmos dois de ligação clara com algumas transformações poéticas que se seguiram, dois momentos em que os poetas foram OBRIGADOS a mudarem suas alianças sociopolíticas, entre as classes ou grupos que estavam ou pareciam estar no poder. Nada glamouroso para os que ainda parecem ver o poeta como um ser entre o santo e o mítico, nas palavras daquele grão-desmistificador das nossas imposturas, João Cabral de Melo Neto. É por isso que não militei nem pretendo militar por qualquer candidato ou governo, por essa crença na conjunção entre ética e estética, pois me parece mais importante, politicamente, manter uma verdadeira independência para criticar e denunciar as "imposturas de linguagem" ocorridas nos últimos meses. Isso é, eu admito e entendo quem assim o veja, realmente complicado, questionável e segue sendo um dilema pessoal meu, algo que me incita à meditação nestes dias e que compartilho aqui com vocês. Eu acredito hoje que o poeta deveria ser oposição sempre, não importando quem está no Governo, e trata-se aqui de um parâmetro pessoal para mim mesmo, sem querer impor essa visão a outros poetas.
Há muitas outras coisas que gostaria de discutir, como a tentativa de interferência perpetrada por Joseph Ratzinger no debate político de um estado laico e democrático, ou sobre o fato de termos uma mulher como futura presidente, mas deixo isso tudo para outro momento. Devemos nos alegrar, porém, pelo fato de que as estratégias políticas questionáveis das últimas semanas não se fizeram valer.
Faz dias que venho tentando terminar um artigo que deveria se chamar "Para que poetas em tempos de eleição?", no qual queria expor e compartilhar com vocês alguns dilemas pessoais, e minhas meditações muito individuais sobre o papel do poeta em um momento tão conturbado como este. Apesar de viver há tantos anos na Alemanha, muito longe, tenho acompanhado as campanhas presidenciais e me perturbado muito com os discursos em andamento hoje no Brasil. Ao mesmo tempo, parece-me um momento histórico incrivelmente interessante, que dá sinais de ver ressurgirem trincheiras ideológicas que há muito acreditavam-se mortas.
Não pude terminar o artigo, por um motivo muito simples: não consegui chegar a uma conclusão satisfatoriamente responsável para reabrir este debate sobre o papel do poeta em sua comunidade, sem acabar meramente repetindo-me. Não se trata, vejam bem, de tomar partido, e não estou me referindo a apoiar publicamente um ou outro candidato. Há uma diferença gigantesca entre tomar partido e tomar posição. Estas eleições me lançaram em uma meditação que me ocupou muito nas últimas semanas, sobre as possibilidades de agir de maneira prática em um momento histórico que testemunha a linguagem, em sua manifestação física como Língua Portuguesa, sendo continuamente dobrada, distorcida, borrada e abusada para enganar, mentir e ludibriar, com o que vou ousar chamar de "crimes de linguagem" dos dois lados do debate, tanto pelos membros do Partido da Social Democracia Brasileira, como pelos membros do Partido dos Trabalhadores. Além deles, as imposturas pouco éticas da imprensa, também dos dois lados do espectro ideológico. Em meio a isso tudo, refletindo-o e piorando-o, as manifestações assustadoras de machismo, racismo e homofobia de vários setores da sociedade brasileira nos últimos meses, sua regressão política, e a tentativa deselegante de usar um debate ético e religioso tão sério como o da legalidade do aborto para ganhar votos. Aconteça o que acontecer neste domingo, se um dos candidatos for eleito através desta estratégia político-ideológica, isso significará uma vitória do obscurantismo sobre a democracia brasileira.
Mallarmé escreveu que o poeta é aquele que mantém puras as palavras da tribo. Pound, por sua vez, falou sobre "the tale of the Tribe", o que lança ainda mais importância sobre a historicidade da poesia como narrativa de sua comunidade. Contrapondo-se a eles, penso em uma mulher tão importante como Clarice Lispector, que, em sua famosa entrevista à TV em 1977, respondeu que o papel do escritor brasileiro naquele momento era "falar o menos possível". Vale lembrar que a entrevista, de uma lucidez incrível, ocorre em plena ditadura, naquele momento com Ernesto Geisel no Palácio do Planalto.
Se o poeta é o artista que usa a linguagem como matéria de composição primordial, linguagem e língua que compartilha com sua comunidade, como reagir aos abusos de linguagem espalhados pela imprensa, pela oposição ao governo e pelo próprio Governo? Como poeta, como reagir aos abusos de linguagem do presidente da República e também dos de seus opositores?
Minha única certeza, uma certeza pessoal, individual, particular, que não pretendo estender a nenhum outro poeta, é que, seja Dilma Rousseff ou José Serra o novo presidente da República, pretendo ser oposição a ele ou ela em todo e qualquer momento em que, seja ou não a autoridade máxima do país, incorra neste abuso imperdoável da linguagem para distorcer e aproveitar-se, como temos assistido nos últimos meses.
Além dessa certeza, tenho apenas perguntas, meus caros.
Estas perguntas formaram no ano passado, quando comemorou-se aqui em Berlim o vigésimo aniversário da queda do Muro, um texto que intitulei "A educação dos cívicos sentidos" (2009), que usa este jogo de homofonia com o título do livro de Haroldo de Campos, A educação dos cinco sentidos (1985), para a partir disso entregar-se a algumas perguntas e polemizar mais uma vez com o poeta paulistano e sua posição est-É-tica da década de 80, o autor, que respeito muitíssimo, que viria a embasar ideologicamente, com seus conceitos questionáveis (tão equivocados a meu ver) de "trans-historicidade" e "pós-utópico", as certezas ao mesmo tempo arrogantes e preguiçosas do absenteísmo público de tantos poetas brasileiros dos últimos 25 anos.
É com estas perguntas que encerro esta postagem, junto de um "vídeo" improvisado para poder participar com minha intervenção à distância de uma mesa de debates na Casa das Rosas, em 2009.
Volto apenas na semana que vem, quando já teremos um novo ou nova presidente. Se os discursos apocalípticos de ambos os lados estiverem certos, um erro na urnas poderá nos levar a uma catástrofe. Gostaria de ter mais certeza sobre o que se pode esperar de um poeta em meio a uma catástrofe social e política nos dias de hoje. Mas para isso preciso seguir meditando, até quem sabe poder terminar o artigo que gostaria de ter publicado aqui e não pude.
Destarte, eis as inúmeras perguntas da minha own private educação dos cívicos sentidos:
A educação dos cívicos sentidos (texto em vídeo) Ricardo Domeneck
Aos vinte anos da queda do muro, a oportunidade de meditar sobre dualismos que ainda imperam? Num momento que se gaba de suas multiplicidades? Essa queda marca a ascensão do Império sob o qual nos movimentamos hoje? Opera esse Império através da língua do poema de Yeats? "On being asked for a war poem"? O poeta que escreveu "I think it better that in times like these / A poet keep his mouth shut" é o mesmo que escreveu "Easter, 1916"? Ou este poeta acreditava que a política pertence aos políticos, não aos poetas, e por isso se fez senador? O papel do poeta seria mesmo o de emocionar moçoilas e consolar velhinhos? O silêncio proposto por Yeats é o mesmo de Clarice Lispector que, em lhe sendo pedido o papel do escritor brasileiro, respondeu: "falar o menos possível"? O silêncio dos dois equipara-se ao de George Oppen? Aquele que parecia também crer que poesia e política são incompatíveis? É isso o que dizia a personagem de Glauber Rocha em Terra em Transe? A poesia e a política são demais para um único ser humano? É por isso que Oppen abandona a poesia por vinte anos para dedicar-se ao ativismo político? Ninguém aqui, além de nós, as galinhas? O poeta está ofendido? O poeta é inofensivo? Você teria coragem de dizer isso a Ossip Mandelshtam, que morreu na Sibéria por causa de um poema? Você é pós-utópico? Se o é, você é também trans-histórico? Que dia é hoje no seu poema? Você também acredita que a vanguarda foi apenas um afrodisíaco para a tradição? Escrever sonetos ou concretos tem implicações políticas? Política é conteúdo ou política é forma? Essa pergunta é a mesma se mudarmos o substantivo "política" pelo substantivo "poética"? Talvez a ética da escrita configure-se nesta resposta? Mais radical o silêncio ativista de George Oppen ou o ativismo em voz alta de Ulrike Meinhof? Também te perturba imaginar esta escritora pacifista tornando-se uma das líderes da Facção do Exército Vermelho? O que leva um poeta a decidir que palavras não bastam? O que leva uns a recorrerem a poemas (como Murilo Mendes), uns ao Senado (como W.B. Yeats), outros à organização de greves (como George Oppen) e outros ainda à luta armada (como Ulrike Meinhof)? A poesia silencia diante do mundo dos eventos? Poesia pura é ativismo e resistência? O que diabos queria dizer Adorno com a impossibilidade de escrever poesia após Auschwitz? Você esteve em Búzios hoje? Você já saqueou Celan esta semana? Insistir na inutilidade da poesia como única forma de resistência? Poesia resistência? A negação do caos presente pela nostalgia da Idade de Ouro de um passado mitificado? Ou a negação do caos presente pela invocação da parúsia, da revolução? Resistência pela negação e não-participação, como queria Theodor Adorno no ensaio “Lírica e sociedade”? Lorca foi mesmo assassinado como poeta lírico, ou foi o dramaturgo dissidente e inimigo dos valores de direita que os fascistas precisaram silenciar? Há diferença entre o Lorca do Romanceiro Gitano e o Lorca de A Casa de Bernarda Alba? Você simpatiza com a revolução? Você está sendo filmado? Você já confundiu o espaço público com seu espaço privado hoje? Vladimir Maiakóvski encontra Ezra Pound contra a usura? Oh 1930s, with Usura hath no man a house of good stone? Oh 1960s, with Capitalism hath no man a house? Oh 2000s, with Globalization hath no man a no? O que Ludwig Wittgenstein queria realmente dizer ao afirmar que ética e estética são uma só? Quando um poeta levanta-se da cama pela manhã, ele reencena diariamente o “salto participante” proposto por Décio Pignatari? À direita ou à esquerda, de que lado está o poeta, e isto define se é político ou não? Estava sendo político o cavalier Richard Lovelace ao escrever o poema lírico “To Althea, from Prison”? Como Tomás Antônio Gonzaga escrevendo a segunda parte de “Marília de Dirceu” na prisão? Ou são mais políticas as Cartas Chilenas? Oh Shelley, ninguém quer reconhecer tua legislação mundial? Quem inaugurou o poeta-Cassandra? “L`Albatros” himself, Baudelaire? Rimbaud, o desajustado? O adolescente loiro? O amante de Verlaine? O contrabandista de armas na África? É mais político oralizar estas perguntas ou publicá-las em escrita? Em que momento o poeta exila-se ou é expulso da República? Em que momento o poeta épico deixa de fundar a nação para fundi-la e findá-la? O planalto central do Brasil desce em escarpas abruptas? Você gostaria de ser o Maudsley dos nossos crimes nacionais? Te aborrece tudo quanto seja público? Você estampa teu miocárdio privado em cada muro público? Gregório de Matos entoando “Triste Bahia! Ó quão dessemelhante / Estás e estou do nosso antigo estado!”? Ou seu racismo na estrofe seguinte anula o ato? Tristan Tzara, Hans Arp e Hugo Ball entoando DADA em atas estavam uivando pela utopia ou destoando da distopia? A política do poeta está no questionamento formal? Ou seria melhor discutir os suportes para a poesia, como métodos de publicação e distribuição e financiamento? Tudo isso tem implicações, como querem os poetas da revista L=A=N=G=U=A=G=E? Onde te ocultas, precária síntese, penhor do meu sono, luz dormindo acesa na varanda? Poeta bom é poeta morto? Poeta bom é poeta universal? Ou mulher escreve como mulher, viado como viado, negro como negro, macho como macho? Você é um poeta aristocrático? Que ação nos é possível? Mas, ora, escrever poesia já não é ativismo e resistência? The poet cannot set a statesman right mas pode dificultar-lhe os abusos? Você já leu os jornais hoje? Você traduz "news that stays news" por "novidade que permanece novidade" ou "notícia que permanece notícia"? O caminho da sátira é o único para uma poesia abertamente política? Será tudo culpa do nosso vocabulário ou será tudo culpa de Kate Moss? Podemos aprender com a sutileza política de Machado de Assis e Clarice Lispector? Podemos parafrasear Lispector e dizer: eis que o poeta está feliz, pois finalmente desiludiu-se? Se vivemos um momento pós-utópico, tanto melhor? Vamos começar a escrever uma poesia pré-distópica?
Ricardo Domeneck, Berlim, 2009, vigésimo aniversário da Queda do Muro.
O sobrenome não engana: trata-se do filho francês do cineasta grego Constantino Costa-Gavras (n. 1933), autor de filmes com intenso caráter político e desejo de intervenção e denúncia, como o importantíssimo Z (1969), com roteiro de Jorge Semprún (n. 1923) e baseado no romance de Vassilis Vassilikos (n. 1934), além de État de Siège (1972) e Missing (1982).
Romain Gavras nasceu em Paris, em 1980. Após dirigir alguns curtas, o jovem videasta alcançou certo reconhecimento com seu vídeo para a faixa "Signatune", do produtor musical francês Mehdi Favéris-Essadi (n. 1977), conhecido como DJ Mehdi.
"Signatune" (2007), DJ Mehdi - vídeo de Romain Gavras.
Ao ver o vídeo pela primeira vez, senti uma simpatia imediata, por reconhecer nele um tipo de "abordagem do real" que vira, antes, também em um cineasta francês que admiro imensamente: Bruno Dumont (n. 1958). Filmes como La vie de Jésus (1997) e L'humanité (1999) tiveram um impacto gigantesco sobre o meu trabalho, especialmente à época em que escrevia os poemas de Carta aos anfíbios (2000 - 2004), publicado em 2005. Não estou tentando "comparar" Romain Gavras a Bruno Dumont. Mas não creio ser far-fetched a referência.
No entanto, nada se compararia ao furor que Romain Gavras causaria em 2008, com seu vídeo para a faixa "Stress", do duo francês Justice, formado por Gaspard Augé (n. 1979) and Xavier de Rosnay (n. 1982). Lançado à época dos conflitos entre a polícia do governo francês e muitos franceses e imigrantes nos subúrbios de Paris, o vídeo de Gavras se tornaria um dos mais discutidos da década, sendo proibido em alguns lugares e muito criticado por aqueles que viram no vídeo o que chamaram de "apologia da violência" ou incitação ao tumulto. Para alguns, tratava-se de um vídeo que se portava racista, na tentativa de abordar o racismo da sociedade francesa contemporânea.
"Stress" (2008), do Justice - vídeo de Romain Gavras.
Em um meio auto-complacente e preguiçoso como o da música pop atual, o vídeo passou como um furacão e despertou discussões mais que necessárias. Há, obviamente, muitos aspectos delicados, questões abertas para o debate. Como estrangeiro vivendo na Europa, mesmo que na razoavelmente tolerante Alemanha, as perguntas me interessavam, especialmente por se tornar cada vez mais claro que a imigração e convivência entre línguas e religiões estarão entre os pontos cruciais na política europeia da década que está para se abrir. Como referência imediata, penso em dois filmes soberbos do mestre Michael Haneke: tanto Code inconnu (2000) como Caché (2005).
Ontem, o jovem francês voltou a estar em todas as bocas do continente, ao lançar o vídeo para a canção "Born Free", de Maya Arulpragasam, conhecida como M.I.A.. Interessado em discutir mais uma vez as relações raciais no mundo ocidental, Gavras imaginou a seguinte sociedade distópica:
"Born Free" (2010), M.I.A. - vídeo de Romain Gavras.
As acusações e os gritos já começaram na blogosfera europeia. "Incitação à violência", "mau gosto", "marketing demagogo", as acusações tornaram-se ainda mais veementes que à época do vídeo para "Stress". A cena final, com a explosão gráfica do corpo de um garoto, parece ser o foco das acusações de "mau gosto". Não deixaria de concordar, neste caso. A cena em que o menino leva um tiro na cabeça tem sido chamada de "exagerada" por muitos. Uma pergunta possível seria: vale qualquer estratégia, mesmo que tida como perigosa por alguns, para iniciar ou incitar um debate? Não podemos nos esquecer que esta "sociedade distópica" imaginada por Gavras, na qual ruivos seriam discriminados, perseguidos e assassinados, existe neste exato momento no mundo, substituindo o ruivo por outras cores de cabelo e pele. Cenas como essa ocorreram nos Estados Unidos até muito pouco tempo, em perseguição dos cidadãos negros daquele país. As chacinas nos subúrbios das grandes cidades brasileiras são ainda fatos. Vivendo na Alemanha, os massacres de judeus, ciganos e homossexuais vêm imediatamente à mente, claro. A situação entre árabes e israelenses não está distante, ou das minorias dentro da República Popular da China. Referências possíveis no cinema seriam os ótimos Punishment Park (1971), de Peter Watkins, e Children of Men (2006), de Alfonso Cuarón.
Numa sociedade que parece querer impor o discurso unívoco do capital triunfante, que uns querem "pós-utópica" e "trans-histórica", talvez apenas o choque nos arranque de nossa complacência sorridente. Parece ser esta a atitude de jovens como Romain Gavras.
E você, meu querido, hypocondriaque lecteur,—mon semblable,—mon frère, o que você acha?
§ - Como Ler Uma Antologia de Poesia Comunista Apenas Como Uma Antologia Comunista de Poesia.
Creio já ter falado neste espaço sobre o impressionante número de publicações de poesia na antiga Alemanha Oriental, ou República Democrática Alemã (1949 - 1990). O número de antologias de poetas russos é, obviamente, compreensível, mas não se trata apenas de livros de Maiakóvski. Encontramos muitos trabalhos de poetas que a Revolução acusou de "decadentes" e proibiu, como Iessienin e Mandelshtam, com as traduções de Paul Celan para este último, talvez o que o romeno tenha produzido de melhor em sua vida. Há uma bela coleção de antologias para poetas modernistas internacionais que, se traz os velhos nomes de poetas ligados ao Partido Comunista, também apresenta poetas bem distantes de uma "imagem politizada", eu diria, como Dylan Thomas e Wallace Stevens.
Encontrei há pouco tempo, em um sebo, uma bela edição intitulada Lyrik unseres Jahrhunderts (Berlin: Verlag Neues Leben, 1962). Poderíamos traduzir o título como "Poesia do nosso século". Editada na Alemanha Oriental em 1962, ou seja, apenas um ano após a construção do Muro de Berlim, é óbvio que a antologia está completamente marcada pelas batalhas ideológicas de então. O que a torna, em alguns aspectos, interessantíssima, em minha opinião. O prefácio dos editores menciona, em tom que hoje nos parece mais que risível, conceitos como os de "quebra com a literatura burguesa", "resistência contra o monopólio capitalista", "voz popular" e "solidariedade na luta de classes", tudo muito distante de uma discussão estética ou mesmo est-É-tica. A discussão é essencialmente política. Assim, um dos primeiros fatores a despertar nosso interesse é: que poetas modernistas poderiam ser sequestrados por este discurso?
Algumas inclusões são óbvias, como o russo Vladimir Maiakóvski (1893 - 1930), o alemão Bertolt Brecht (1898 - 1956) e o chileno Pablo Neruda (1904 - 1973). Outras, menos, ainda que saibamos da filiação destes poetas ao Partido Comunista de seus países e à resistência contra o fascismo, como é o caso do francês Paul Éluard (1895 - 1952) e do turco Nazim Hikmet (1902 - 1963). Como o prefácio menciona a luta contra o colonialismo, a antologia inclui poetas ligados a estas questões, como o haitiano René Depestre (n. 1926) e a nigeriana Mabel Imoukhuede (n 1933), que hoje adota o nome de Mabel Segun.
Alguns eu desconhecia por completo, como o argelino Mohammed Dib (1920–2003), o romeno Eugen Jebeleanu (1911 - 1991) ou o colombiano Darío Samper, que parece ter feito parte, na Colômbia, dos poetas da década de 30 que se ligariam ao ativismo político, algo que ocorreu no Brasil (pensemos em Carlos Drummond de Andrade ou o trabalho de Oswald de Andrade nesta década), nos Estados Unidos (entre os Objectivists, como Louis Zukofsky e George Oppen) ou na Inglaterra (com o trabalho inicial de W.H. Auden e poetas como Cecil Day Lewis e Stephen Spender), sem mencionar a "virada comunista" de muitos poetas franceses. Outro exemplo "obscuro" (que se deve por certo à minha ignorância) é o americano Frank Horne (1899 - 1974), ligado ao movimento da Harlem Renaissance, da qual o poeta mais famoso, incluído também na antologia, é Langston Hughes (1902 - 1967).
Algumas inclusões surpreendem um pouco, como o espanhol Federico García Lorca (1898 – 1936), que parece "conquistar" seu espaço menos pela política de sua poesia que pela forma como morreu, ou o russo Serguei Iessienin (1895 - 1925) e o húngaro Attila József (1905 - 1937).
Uma antologia como esta é um artefato privilegiado para pensarmos sobre a sobrevivência de um poema em meio a discursos ideológicos alheios à sua escrita. Um poema, devemos lembrar, não sobrevive por seus temas. "Este rei é mau" é tema tão antigo e válido quanto "Eu te amo", importando, é claro, como o poeta o transpôs em forma, técnica. Trabalhos como A Rosa do Povo, de Drummond, e Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão, de Oswald, ambos de 1945, serão lidos para sempre, pois, muito além da "temática", são livros e poemas lindamente escritos. O mesmo pode ser dito de textos como "Aos que vão nascer", de Brecht, ou "A palavra capitalismo", de Maiakóvski, incluídos na antologia, poemas inteligentes e bem-escritos.
Outros textos, também incluídos na antologia, eram péssimos em 1962, são péssimos hoje e seguirão sendo péssimos, como "Ao meu partido", de Neruda.
Mas nós celebramos o bom poema, daquele e daquela que sabem a hora de dizer "Eu te amo" e a hora de dizer "Morte ao tirano" e, a cada um, dedicam-se com inteligência, sensibilidade e competência técnica.
ALGUNS POEMAS OU POETAS INCLUÍDOS NA ANTOLOGIA (nos originais ou traduções que pude encontrar na Rede, para compartilhar convosco)
Angina Pectoris Nazim Hikmet
If a half of my heart is here the other half is in China, doctor. In the army flowing towards the Yellow river.
Then, every dawn, doctor, every dawn, my heart, is shot in Greece.
Then, every night when the prisoners fall asleep and the infirmary is deserted my heart is in an old large house at Chamlicha, every night doctor.
Then, after these ten years, to offer my poor people I have only one apple in my hand, doctor, a red apple : my heart...
Not arteriosclerosis, not nicotine, not prison, that’s the reason, my doctor, that’s the reason of my angina pectoris....
I am looking at the night through the bars and in spite of the pressure on my chest my heart beats with the most distant star...
tr. by Fuat Engin
§
With a pure heart. Attila József
Without father without mother without God or homeland either without crib or coffin-cover without kisses or a lover
for the third day - without fussing I have eaten next to nothing. My store of power are my years I sell all my twenty years.
Perhaps, if no else will the buyer will be the devil. With a pure heart - that's a job: I may kill and I shall rob.
They'll catch me, hang me high in blessed earth I shall lie, and poisonous grass will start to grow on my beautiful heart.
Translated by Thomas Kabdebo
§
The Negro Speaks of Rivers Langston Hughes
I've known rivers: I've known rivers ancient as the world and older than the flow of human blood in human veins.
My soul has grown deep like the rivers.
I bathed in the Euphrates when dawns were young. I built my hut near the Congo and it lulled me to sleep. I looked upon the Nile and raised the pyramids above it. I heard the singing of the Mississippi when Abe Lincoln went down to New Orleans, and I've seen its muddy bosom turn all golden in the sunset.
I've known rivers: Ancient, dusky rivers.
My soul has grown deep like the rivers.
§
Galope Rafael Alberti
Las tierras, las tierras, las tierras de España, las grandes, las solas, desiertas llanuras. Galopa, caballo cuatralbo, jinete del pueblo, al sol y a la luna.
¡A galopar, a galopar, hasta enterrarlos en el mar!
A corazón suenan, resuenan, resuenan las tierras de España, en las herraduras. Galopa, jinete del pueblo, caballo cuatralbo, caballo de espuma.
¡A galopar, a galopar, hasta enterrarlos en el mar!
Nadie, nadie, nadie, que enfrente no hay nadie; que es nadie la muerte si va en tu montura. Galopa, caballo cuatralbo, jinete del pueblo, que la tierra es tuya.
¡A galopar, a galopar, hasta enterrarlos en el mar!
§
Alle fronde dei salici Salvatore Quasimodo
E come potevano noi cantare Con il piede straniero sopra il cuore, fra i morti abbandonati nelle piazze sull’erba dura di ghiaccio, al lamento d’agnello dei fanciulli, all’urlo nero della madre che andava incontro al figlio crocifisso sul palo del telegrafo? Alle fronde dei salici, per voto, anche le nostre cetre erano appese, oscillavano lievi al triste vento.
§
Sobre o pobre B.B. Bertolt Brecht
1
Eu, Bertolt Brecht, vim das florestas negras. Minha mãe trouxe-me, no abrigo de seu ventre, às cidades. E, enquanto eu viver, o frio das florestas estará comigo.
2
Na cidade de asfalto estou em casa. Recebi cada extrema-unção logo, a saber: jornais, álcool, tabaco. Cheio de suspeitas, preguiça e, afinal, de prazer.
3
Eu sou cordial com todos. Ponho um chapéu-coco, pois isto é normal. Eu digo: que animais de cheiro estranho. E digo: tudo bem, eu sou igual.
4
Eis que em minhas cadeiras vagas, de manhã, uma mulher ou outra se balança. Olho-a sem pressa e digo-lhe: dispões em mim de alguém que não merece confiança.
5
À noite eu me reúno com os homens. Tratamo-nos de gentlemen. O bando, com pés na minha mesa, diz que tudo vai melhorar. E eu nem pergunto: quando?
6
À luz da aurora gris pinheiros mijam e os pássaros, seus vermes, abrem o alarido. É quando, na cidade, esvazio o meu copo, jogo fora o charuto e me recolho aflito.
7
Nós, geração leviana, vivemos em casas supostamente eternas. (Desse modo, além de altos caixotes em Manhattan, construímos junto do Atlântico as antenas que o entretêm.)
8
Restará das cidades quem as cruza: o vento. A casa alegra o comensal que a dilapida. Sabemos bem que somos provisórios. Nem vou falar do que virá logo em seguida.
9
Manter, sem mágoa, nos futuros terremotos, o meu Virgínia aceso — já me satisfaz. Eu, Bertolt Brecht, que, das florestas às cidades, vim no ventre materno, anos atrás.
(tradução de Nelson Ascher)
§ A Plenos Pulmões Vladimir Maiakóvski
Primeira Introdução ao Poema
Caros ..........camaradas ......................futuros! Revolvendo ........a merda fóssil .........................de agora, ......perscrutando estes dias escuros, talvez ...............perguntareis .............................por mim. Ora, começará .................vosso homem de ciência, afagando os porquês ..............num banho de sabença, conta-se ........que outrora ...............um férvido cantor a água sem fervura ..........................combateu com fervor Professor, ..........jogue fora .................as lentes-bicicleta! A mim cabe falar ................de mim .......................de minha era. Eu – incinerador, ................ eu – sanitarista, a revolução ....................me convoca e me alista. Troco pelo “front” .......... a horticultura airosa da poesia – ....................fêmea caprichosa. Ela ajardina o jardim ...virgem .................vargem ..........sombra ...............................alfombra. "É assim o jardim de jasmim, o jardim de jasmim do alfenim." Estes verte versos feito regador, aquele os baba, boca em babador, – bonifrates encapelados, ......................descabelados vates – entendê-los, ................ao diabo!, ...........................quem há-de... Quarentena é inútil contra eles - .....................mandolinam por detrás das paredes: "Ta-ran-tin, ta-ran-tin, .......................ta-ran-ten-n-n..." Triste honra, .................se de tais rosas minha estátua se erigisse: na praça ...........escarra a tuberculose; putas e rufiões .................numa ronda de sífilis. Também a mim ..........a propaganda ........................cansa, é tão fácil ........alinhavar ................romanças, – mas eu ..........me dominava ...................entretanto e pisava ............a garganta do meu canto. Escutai, .............camaradas futuros, o agitador, o cáustico caudilho, o extintor .............dos melífluos enxurros: por cima ..........dos opúsculos líricos, eu vos falo ............ como um vivo aos vivos. Chego a vós, ...... à Comuna distante, não como Iessiênin, .........................guitarriarcaico. Mas através ..... dos séculos em arco sobre os poetas .....................e sobre os governantes. Meu verso chegará, ................não como a seta lírico-amável, ..............que persegue a caça. Nem como ..........ao numismata ............... a moeda gasta, nem como a luz .....................das estrelas decrépitas. Meu verso ..........com labor .............. rompe a mole dos anos, e assoma .....a olho nu, ................ palpável, ......................bruto, como a nossos dias chega o aqueduto levantado .................por escravos romanos. No túmulo dos livros, .............. versos como ossos, se estas estrofes de aço acaso descobrirdes, vós as respeitareis, ..........................como quem vê destroços de um arsenal antigo, ................mas terrível. Ao ouvido .........não diz ................blandícias .........................minha voz; lóbulos de donzelas ..........de cachos e bandós não faço enrubescer .............................com lascivos rondós. Desdobro minhas páginas ..........– tropas em parada, e passo em revista ...........................o front das palavras. Estrofes estacam ............. chumbo-severas, prontas para o triunfo ..........ou para a morte. Poemas-canhões, rígida coorte, apontando .............. as maiúsculas .......... abertas. Ei-la, .....a cavalaria do sarcasmo, minha arma favorita, ......................alerta para a luta. Rimas em riste, ......sofreando o entusiasmo, eriça ........suas lanças agudas. E todo ......este exército aguerrido, vinte anos de combates, não batido, eu vos dôo, .................proletários do planeta, cada folha .............até a última letra. O inimigo ......da colossal ................classe obreira, é também meu inimigo ................figadal. Anos ........de servidão e de miséria comandavam ...............................nossa bandeira vermelha. Nós abríamos Marx ..........volume após volume, janelas .............de nossa casa abertas amplamente, mas ainda sem ler ........................saberíamos o rumo! onde combater, ................de que lado, .......................em que frente. Dialética, ..........não aprendemos com Hegel. Invadiu-nos os versos ....... ao fragor das batalhas, quando, sob o nosso projétil, debandava o burguês .........................que antes nos debandara. Que essa viúva desolada, .....................– glória – se arraste após os gênios, ..............merencória. Morre, ..........meu verso, .....................como um soldado anônimo na lufada do assalto. Cuspo ......sobre o bronze pesadíssimo, cuspo ..........sobre o mármore viscoso. Partilhemos a glória, – ....................entre nós todos, – o comum monumento: o socialismo, .............forjado ........................na refrega .................................e no fogo. Vindouros, ..........varejai vossos léxicos: ......................do Letes .............................brotam letras como lixo – "tuberculose", .........."bloqueio", .............."meretrício". Por vós, ........geração de saudáveis, – ...................um poeta, ....................com a língua dos cartazes, lambeu ..........os escarros da tísis. A cauda dos anos ..............faz-me agora ....................um monstro, ......................fossilcoleante. Camarada vida, ............vamos, ................para diante, galopemos .......pelo qüinqüênio afora. Os versos ......para mim ...............não deram rublos, .....................nem mobílias .................de madeiras caras. Uma camisa .......lavada e clara, .....................e basta, – ..............................para mim é tudo. Ao Comitê Central ..................do futuro .......................ofuscante, .........................sobre a malta ...................dos vates velhacos e falsários, .....................apresento .............................em lugar do registro partidário ......todos .................os cem tomos .....................dos meus livros militantes.