Mostrando postagens com marcador poemas que continuam salvando minha vida. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador poemas que continuam salvando minha vida. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Poemas que continuam salvando minha vida: "Tu estás aqui", de Ruy Belo

Ruy Belo


Sei bem que a esta altura, ou talvez devesse dizer a esta fundura do campeonato entre poços, eu deveria deter minha boca ao perceber outro louvor a escapar-se dela, deveria estar ocupado na prática de imprecações, fazendo as maldições de Violeta Parra em "Maldigo del alto cielo" parecerem muxoxos, pois é realmente difícil esquecer quando nossa mente faz tudo para obliterar com tampões de palavras as obturações da Oblivion, e ele, ora, não está mais aqui, e mesmo assim eu digo: "Tu estás aqui", como se eu vivesse no poema de Ruy Belo, o sortudo.



Tu estás aqui
Ruy Belo

Estás aqui comigo à sombra do sol
escrevo e oiço certos ruídos domésticos
e a luz chega-me humildemente pela janela
e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano
e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama
que uso para ser também isto este bicho
de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos
quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem
o que sei o
que faço ou então sou eu que julgo que o sabem
e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras
e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou
outra coisa
esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior
a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço
bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes
e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa
e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho
e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado
passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes
esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa
essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol
Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso
diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome
este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro
nome embora no mesmo nome este nome
de terra de dor de paredes este nome doméstico
Afinal fui isto nada mais do que isto
as outras coisas que fiz fi-las para não ser isto ou dissimular isto
a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome
que não merda
e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das
outras coisas
Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto
pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa
uma coisa para além disto que não isto
Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo
é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos
mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos
tu és em cada gesto todos os teus gestos
e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como
a palavra paz
Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas
perdoa pagares tão alto preço por estar aqui
perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui
prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente
deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias
e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer
sou isto é certo mas sei que tu estás aqui


.
.
.

sábado, 24 de setembro de 2011

Especial lisboeta para a série d´Os poemas que continuam salvando minha vida: "De profundis amamus", de Mário Cesariny

O mestre Mário Cesariny (1923 - 2006)


Em Lisboa pela primeira vez, caminhando da Alfama à Graça, desta ao Chiado, a Baixa e o Bairro Alto, a luz intensa desta cidade atordoando meus olhos acostumados há anos com o chiaroscuro frequente do Berlimbo, no peito um só nome e na cabeça, para aliviar o engarrafamento nos alvéolos, um poema do mestre Cesariny.


De profundis amamus
Mário Cesariny

Ontem às onze
fumaste
um cigarro
encontrei-te
sentado
ficámos para perder
todos os teus eléctricos
os meus
estavam perdidos
por natureza própria

Andámos
dez quilómetros
a pé
ninguém nos viu passar
excepto
claro
os porteiros
é da natureza das coisas
ser-se visto
pelos porteiros

Olha
como só tu sabes olhar
a rua os costumes
O Público
o vinco das tuas calças
está cheio de frio
é há quatro mil pessoas interessadas
nisso

Não faz mal abracem-me
os teus olhos
de extremo a extremo azuis
vai ser assim durante muito tempo
decorrerão muitos séculos antes de nós
mas não te importes
muito
nós só temos a ver
com o presente
perfeito
corsários de olhos de gato intransponível
maravilhados maravilhosos únicos
nem pretérito nem futuro tem
o estranho verbo nosso



.
.
.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Poemas que continuam salvando minha vida: "Amar", de Carlos Drummond de Andrade

As garrafas de bebida alcoólica que costumavam ser bebidas a dois andam agora tão cheias que lenta tornou-se a maré baixa deste mar etílico como insistem em permanecer numa única e mesma metade da cama os vincos dos lençóis que mistério é este que somente as minhas meias sujas agora espalhem-se pelo quarto onde foram parar aquelas botas pretas que andavam sempre do lado de fora da porta não sei não sei minhas narinas andam tão confusas que minha casa cheire tão-somente a mim mesmo nestes dias começo a me esquecer do formato dos seus calcanhares certamente não me esqueci ainda de como é a cicatriz causada pela apendicite que chegou quase a matá-lo na adolescência tão próxima de sua crista ilíaca sortuda cicatriz dela não me esqueço ninguém mais derruba café no meu carpete mas as manchas não me deixam esquecer sua clumsiness se você não abandonar esta ideia absurda de brincar de esconde-esconde comigo nesta minha idade avançada acabarei comprando um gato ou um chachorro ou um periquito e chamando-o de Sexta-Feira ou Moço quando meus lábios começam a rachar porque esqueci de novo de beber água eu então sussurro na secura nossa / amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita do poema "Amar" de Carlos Drummond de Andrade – e aguento assim mais um dia.


Amar
Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


extraído do livro Claro Enigma (1951).





.
.
.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Poemas que continuam salvando minha vida: "This world", de Robert Creeley

Robert Creeley


O sol insiste e ergue-se, a manhã insiste e retorna, os olhos insistem em sua gangorra, o corpo insiste e acorda-o, o alívio e o martírio dependem de mudanças quase imperceptíveis nas circunstâncias dos dias, abro as cortinas e sussurro: "let light // as air / be relief", do poema "This world", de Robert Creeley.



This World
Robert Creeley

If night’s the harder,
closer time, days
come. The morning
opens with light

at the window.
Then, as now, sun
climbs in blue sky.
At noon

on the beach
I could watch
these glittering
waves forever,

follow their sound
deep into mind
and echoes –
let light

as air
be relief.
The wind
pulls at face

and hands,
grows cold. What
can one think –
the beach

is myriad stone.
Clouds pass,
grey undersides,
white clusters

of air, all
air. Water
moves at the edges,
blue, green,

white twists
of foam.
What then
will be lost,

recovered.
What
matters as one
in this world?



extraído do livro Later (1975).

.
.
.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Poemas que continuam salvando minha vida: "Autotomia", de Wislawa Szymborska

Alguns talvez digam que é exagero, ora, como assim um poema salvar a vida de alguém? Mas não se trata de glamourização de poeta, nem conversa pseudo-xamânica sobre mágica arcaica ou qualquer falcatrua soteriológica. Em minha vida, é a mistura de fato e ato. Nesta série, quero repostar – já discuti vários deles aqui – poemas que lateral e literalmente salvaram minha cota de oxigênio e seguem mantendo minha sanidade em um nível aceitável de equilíbrio diante de certas catástrofes. Quando descobrimos um poema com este poder, ele praticamente entra em nosso sistema de defesa e passa a ser parte dos nossos anticorpos contra os demônios ensandecidos, contra os inimigos da lucidez, contra o vírus do suicídio. Hoje, no parque minúsculo e favorito aqui no meu bairro berlinense, sentado na grama, com o vento meio gelado embaraçando os cabelos que já começam a ficar brancos, eu fechei os olhos e sussurrei de novo, várias vezes, como fizera em outros momentos de necessidade:


"Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou."


São versos do poema "Autotomia", da polonesa Wislawa Szymborska. Não se trata de um de seus mais famosos, algo que nunca entendi. Tenho antologias de poemas dela em alemão e inglês que não trazem este poema específico. E, no entanto, eu já não sei se seria capaz de viver sem ele na memória. Nada que as beatas da materialidade possam entender, já que não compreendem como hedonismo e ascese se confundem em nossa miséria extrema.



Autotomia
Wislawa Szymborska

Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o
Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.



(tradução coletiva, publicada na revista Inimigo Rumor número 10)


§


Soube através de Carlito Azevedo que a Companhia das Letras está lançando a primeira antologia de Wislawa Szymborska no Brasil, uma notícia que é simplesmente radiante.




Em novembro de 2008, Marília Garcia e eu preparamos uma postagem sobre a poeta polonesa, ganhadora do Nobel em 1996 (quando a descobri), para a Modo de Usar & Co., da qual vocês podem ler o artigo introdutório abaixo.



WISLAWA SZYMBORSKA

Wislawa Szymborska nasceu em 1923, na cidade de Kórnik, na Polônia. Quando ainda criança, sua família mudou-se para Cracóvia, um dos mais ativos centros culturais da Polônia, e a poeta cresceria e permaneceria toda a sua vida nesta cidade. Sua vida literária e artística inicia-se durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto segue com sua educação nos anos subterrâneos da resistência cultural polonesa contra a ocupação nazista. Com o fim da guerra, passa a estudar sociologia, além de língua e literatura polonesas, na Universidade de Cracóvia.

Seu primeiro livro é proibido pela censura do regime comunista por não estar de acordo com os regulamentos da literatura socialista. Tenta conformar-se às regras para conseguir publicar, rejeitando mais tarde, a partir da década de 50, a ideologia político-estética socialista. Nega seus dois primeiros livros e “reinicia” sua obra com o volume Wołanie do Yeti (Chamando Yeti), de 1957. Em 1962, chama a atenção da comunidade poética polonesa com o pequeno volume Sól (Sal). Desde então, seu trabalho espraia-se por pouco mais de 10 volumes de poemas, o último tendo sido publicado em 2005, com o título Dwukropek, “Dois pontos”, como no sinal de pontuação (nota: desde então, a poeta publicou em 2009 o volume Tutaj, "Aqui"). Wislawa Szymborska era uma discreta poeta polonesa até tornar-se mundialmente conhecida em 1996, ao vencer o Prêmio Nobel de Literatura.



Para contextualizarmos o trabalho de Wislawa Szymborska em seu momento histórico-poético, teríamos que compreender que este surge em um período confuso e de classificação ainda polêmica quando, no pós-guerra, muitos poetas modernistas ainda estavam vivos e produzindo suas maiores obras, e uma nova geração começava a formar-se, alguns buscando ser ainda "altos modernistas", outros seguindo tendências menos conhecidas dos movimentos de vanguarda e retaguarda do início do século XX. Wislawa Szymborska é contemporânea de poetas como João Cabral de Melo Neto, Paul Celan, Frank O´Hara, Robert Creeley e Ingeborg Bachmann, que retomam o trabalho literário dos primeiros modernistas. Ao mesmo tempo, é contemporânea de poetas experimentais como Henri Chopin e Bob Cobbing, mostrando a pluralidade poética do pós-guerra como algo muito mais complexo do que nossa tentativa de abarcá-la sob a sombrinha do conceito de "pós-modernismo".

Talvez seja uma das últimas representantes de algumas das tendências do que geralmente chamamos, no singular, de Alto Modernismo. Com um humor muitas vezes auto-depreciativo, a ironia é uma de suas ferramentas favoritas. Há um texto interessante de W.H. Auden em que ele discute traduções do trabalho de Konstantínos Kaváfis para o inglês, comentando o módulo de pensamento do poeta grego que, segundo Auden, permitia reconhecermos um poema de Kaváfis em qualquer língua, não por um estilo específico do que nós hoje chamaríamos de materialidade sígnica de sua linguagem poética, mas por certo tom e forma de pensamento que tornavam seus poemas únicos e ao mesmo tempo compreensíveis em outras culturas e línguas. Sem conhecer polonês, torna-se impossível julgar a materialidade sígnica da poesia de Wislawa Szymborska. Pergunto-me, porém, se poderíamos falar de seu trabalho em termos parecidos aos de Auden sobre Kaváfis. Tendo lido traduções para poemas da polonesa em português, inglês, espanhol e alemão, e reconhecendo sempre este "módulo de pensamento", este "tom" inconfundível, poderia dizer que Szymborska é um belíssimo exemplo do "verso livre" que depende de um talento poético invulgar em seus mais sutis artifícios.


Ricardo Domeneck, especial para a Modo de Usar & Co., 3 de novembro de 2008

.
.
.





.
.
.

Arquivo do blog