quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Poemas que continuam salvando minha vida: "Amar", de Carlos Drummond de Andrade

As garrafas de bebida alcoólica que costumavam ser bebidas a dois andam agora tão cheias que lenta tornou-se a maré baixa deste mar etílico como insistem em permanecer numa única e mesma metade da cama os vincos dos lençóis que mistério é este que somente as minhas meias sujas agora espalhem-se pelo quarto onde foram parar aquelas botas pretas que andavam sempre do lado de fora da porta não sei não sei minhas narinas andam tão confusas que minha casa cheire tão-somente a mim mesmo nestes dias começo a me esquecer do formato dos seus calcanhares certamente não me esqueci ainda de como é a cicatriz causada pela apendicite que chegou quase a matá-lo na adolescência tão próxima de sua crista ilíaca sortuda cicatriz dela não me esqueço ninguém mais derruba café no meu carpete mas as manchas não me deixam esquecer sua clumsiness se você não abandonar esta ideia absurda de brincar de esconde-esconde comigo nesta minha idade avançada acabarei comprando um gato ou um chachorro ou um periquito e chamando-o de Sexta-Feira ou Moço quando meus lábios começam a rachar porque esqueci de novo de beber água eu então sussurro na secura nossa / amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita do poema "Amar" de Carlos Drummond de Andrade – e aguento assim mais um dia.


Amar
Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.


extraído do livro Claro Enigma (1951).





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