terça-feira, 24 de março de 2009

Dois livros de Laura Erber



Conheci a poeta Laura Erber (Rio de Janeiro, 1979) em Buenos Aires, em 2006, quando lemos no Festival de Poesia Latino-Americana da capital argentina. Os outros brasileiros convidados eram Angélica Freitas e Chacal. O poeta Ademir Assunção, de passagem pela cidade, também leu no festival. Algum tempo depois, o poeta alemão Timo Berger presenteou-me com a edição alemã do livro Os corpos e os dias (Stuttgart: Merz-Solitude, 2006), de Erber, publicado aqui com a tradução de Berger, resultado da passagem da poeta pelo Schloss Solitude, um castelo próximo de Stuttgart que hoje abriga uma fundação de estímulo à produção artística, que acolhe poetas, videastas, pintores, performers, que passam uma temporada no local, produzindo um de seus trabalhos.

Voltei a ter um contato indireto com Erber em 2008, lendo o número 20 da revista Inimigo Rumor, na qual deparei-me com seu ensaio sobre o poeta Ghérasim Luca, sobre o qual a poeta havia criado um trabalho em vídeo e a quem havia traduzido para o português. Tal descoberta de um poeta como Luca exigia gratidão e restabelecemos contato, preparando juntos uma postagem sobre Ghérasim Luca para a franquia eletrônica da Modo de Usar & Co.

No ano passado, foi lançada no Brasil uma edição do volume Os corpos e os dias (São Paulo: Editora de Cultura, 2008), mais uma vez bilíngue, desta vez em tradução para o inglês. O livro trazia imagens do trabalho em vídeo que a poeta produziu para o poema-em-série.

O trabalho de Laura Erber transita entre a poesia escrita e o trabalho visual, especialmente em vídeo. Vista como poeta por uns, como artista visual por outros, aprecio e me identifico com sua busca por uma existência est-É-tica na fronteira entre práticas artísticas muitas vezes vistas como inconciliáveis. Seu trabalho insere-se na tradição lírica do Rio de Janeiro, que tem em Vinícius de Moraes e Cecília Meireles dois de seus representantes modernistas, mas espraia-se por poetas como Ronaldo Brito (o autor do maravilhoso Asmas, de 1982, livro ao qual poderíamos associar este Os corpos e os dias, de Erber), ou, nos últimos anos, poetas como Claudia Roquette-Pinto, Izabela Leal e a carioca por adoção Lu Menezes, assim como a lírica analítica de Marília Garcia e Juliana Krapp.

Os corpos e os dias pode ser lido como um poema longo em um fôlego que se divide em pequenos atos e atas de inalação e exalação. A poesia brasileira dos últimos anos entregou-se com freqüência à produção do mínimo e fragmentário, mas é uma das tarefas poéticas mais difíceis: a de poder atingir o mínimo sem entregar ao leitor o meramente desconjuntado. Ao adotar a estratégia do poema longo que se divide em silêncios, Erber consegue produzir muitos poemas que funcionam em sua existência individual e, ao mesmo tempo, tornam-se partes de um todo, numa poética metonímica, em sua estrutura como em sua linguagem. Dialogando entre si, como queria Jack Spicer para as páginas de um livro de poemas, sentimos completude funcional em uma página quase em branco, carregando apenas os versos: "o princípio de incerteza foi também um dia o / nosso princípio", para unir-se a outros versos e acumular e crescer em sentido (em sentido, ou em uma construção que substitua nossa inerente falta de sentidos?) na página seguinte:


"o que podemos pedir senão mais sede?
e terminar assim devotos mudos abertos"



Trata-se de uma est-É-tica que procura aceitar, sem apenas resignar-se ou lamentar em óbitos alguma "waste land", nosso reino de insuficiências.


"Gulliver gostaria de repouso aqui
atado em brotos de cogumelo
de lado para olhar o fruto aberto

um castelo de cartas também pode
durar no tempo
depois de cair"



É interessante que Laura Erber, sobre seu trabalho em vídeo dedicado a Ghérasim Luca, escreve que sua atenção estava voltada para o "caráter ao mesmo tempo público, paradoxal e teatral do suicídio no Sena", como assinala o poeta cearense Eduardo Jorge em seu ensaio "O eixo e a roda", dedicado a este vídeo de Erber. Eduardo Jorge lê, no ensaio, o próprio trabalho de Luca e de Erber a partir desta dramaticidade do público, paradoxal e teatral. Dos artifícios da boca natural em pleno ato de projetar-se ao exterior, em rajadas minúsculas.

Creio ser importante notar, porém, que esta aceitação do mínimo não me parece comparecer neste livro para satisfazer a já empoeirada ambição poética brasileira pelos parâmetros de qualidade conhecidos como "objetividade", "precisão" ou "concretude", geralmente casados no desejo de concisão. Como na seção do importante livro de Ghérasim Luca, Héros-Limite (1953), Laura Erber entrega-se neste trabalho a "le principe de incertitude". Não se trata de mera retórica crítica. Tal escolha gera implicações específicas na linguagem de Erber. Enquanto outros poetas entregam-se ao trabalho de descrição poética minimalista, na busca de um conciso que é raramente também denso e teso, de paisagens urbanas ou pequenos objetos, criando delicadas iluminuras (no melhor dos casos), mas frequentemente caindo no mero desarticulado e uso ingênuo da linguagem como simples exercício de representação (décadas depois de Wittgenstein e Peirce), em Laura Erber esta indeterminação faz da própria linguagem o campo de dúvidas e incertezas, não apenas do nosso velho "mundo exterior", mas daquilo que une nossos corpos em meio a outros objetos e faz de nosso eu "um limite do mundo": a linguagem. Não há descrições, apenas abordagens parciais, aproximações prováveis.


"o cartaz anunciava um filme de diálogos ágeis
mas falho nas cenas de ação"


O segundo livro de Laura Erber publicado no ano passado foi o (até então inédito) Vazados & Molambos (Florianópolis: Editora da casa, 2008). Nele, a voz de Erber se expande e estende, os poemas individuais seguem dialogando entre si, mas o fazem ainda por pequenas hesitaçoes internas, destinados a crescerem por metástase em uma linguagem na qual sabem não poderem confiar por completo. E, no entanto, nada mais possuem, a não ser esta linguagem compartilhável com o inalcançável outro.

Poema com fundo de Suzuki Harunobu
Laura Erber

quando as ondas brancas ficam mais altas em Tatsutayama
ninguém mais sabe se vai conseguir fazer a travessia de
noite
se o mundo dos prazeres é o mundo das coisas flutuantes
se a gaivota de risco fino terá lugar fora da paisagem
estilizada
ninguém sabe
se os amantes
tramam suicídio em Amijima
ou uma viagem pra Cuba
se quando pronuncio certos nomes
as ondas ficam mais altas
em Tatsutayama
ou aqui


§


(Laura Erber, "O livro das silhuetas", 2004)



Laura Erber nasceu em 1979, no Rio de Janeiro. Sua prática artística vem se caracterizando pelo constante trânsito entre linguagens e pelo modo como articula relações e descontinuidades entre palavra, imagem e corpo. Suas obras foram exibidas em diversos festivais internacionais de cinema e vídeo, além de centros de arte no Brasil e na Europa (Le Plateau, Jeu de Paume, Casa Européia da Fotografia, Museu de Arte Contemporânea de Moscou, Museu de Arte Moderna de Paris, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Oi Futuro, CCBB, IASPIS, Grand Palais). Foi artista residente no Centro de Arte Conteporânea Le Fresnoy (França), Akademie Schloss Solitude (Alemanha), Le Recollets (França), Batiscafo (Cuba). Realizou exposições individuais na Fundação Miró (Barcelona, 2006), no Centro Internacional de Arte da Ilha de Vassivière (França, 2005) e na Galeria Novembro Arte Contemporânea (Rio de Janeiro, 2006 e 2008). Publicou os livros Insones (2002), Os corpos e os dias (2008) e Vazados & Molambos (2008). Com o escritor italiano Federico Nicolao e a artista coreana Koo Jeong-A realizou o livro Celia Misteriosa (Villa Medici e edições Io, 2007); com o artista Laércio Redondo realizou o projeto A casa de vidro (2008). Colabora atualmente com a performer Marcela Levi.

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