quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Pensando nelas uma vez mais: duas poetas incontornáveis

Havia duas poetas entre os vivos ao fim do século passado que eu sonhava um dia conhecer quando me mudei para a cidade de São Paulo, vindo do interior do estado. Talvez não necessariamente "conhecê-las", mas pelo menos sentar-me a uma mesa de uma lanchonete qualquer, próxima da mesa em que elas tomavam seu café, liam ou simplesmente olhavam pela janela. Lembro-me da descrição de Caetano Veloso sobre como Torquato Neto seguia Carlos Drummond de Andrade e Nelson Rodrigues pelas ruas do Rio de Janeiro, no fim da década de 60. Creio que era um pouco dessa mesma vontade, de olhar para os esqueletos e músculos e cabelos destas duas criaturas que me fascinavam. As duas nasceram também no interior de São Paulo, como eu, e estão entre os poetas brasileiros do pós-guerra que viriam a comandar minha atenção e ter um impacto gigantesco sobre meu trabalho e minha est-É-tica.

Falo aqui de Hilda Hilst (1930–2004) e Orides Fontela (1940–1998).


Descobrira a existência de Orides Fontela quando lançou-se o seu quinto livro de poemas, Teia (São Paulo: Geração Editorial, 1996) e a situação de pobreza em que vivia a poeta chegou aos meios televisivos. Lembro-me de uma entrevista, em que ela encerrava com a leitura do poema de abertura do livro Teia, o homônimo "Teia", como era seu costume nomear seus livros por seus poemas de exórdio.



Teia

A teia, não
mágica
mas arma, armadilha

a teia, não
morta
mas sensitiva, vivente

a teia, não
arte
mas trabalho, tensa

a teia, não
virgem
mas intensamente
...................prenhe:

no
centro
a aranha espera.



Ao terminar de ler aquele "no / centro / a aranha espera", ela olhava para a câmera de um jeito que dava frio na espinha. Tratava-se de um coisismo muito diferente do que eu aprendera a admirar e respeitar em João Cabral de Melo Neto. O coisismo de Cabral é pragmático, telúrico. Em Fontela, parecia se tratar daquele "coisismo ontológico" a que Haroldo de Campos se referira em relação a um poeta como Vasco Popa. Como o de Francis Ponge? Na biblioteca da Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo, eu viria a retirar muitas vezes o volume Trevo: 1968 - 1988 (São Paulo: Duas Cidades, 1988), em que leria admirado os poemas do lindo Alba (1983), livro que me parece um milagre na década de 80, assim como Asmas (1982), de Ronaldo Brito, e, é claro, Da Morte. Odes Mínimas (1981), de nossa gigante Hilda Hilst.

Foi com muita tristeza que abri o jornal, em uma manhã de 1998, para descobrir que Orides Fontela estava morta já há uma semana, mas jornal nenhum se dignara a informar o público. A poeta morrera, praticamente como indigente, num hospital público de Campos do Jordão, a 4 de novembro de 1998. O minúsculo artigo-obituário havia sido escrito por Alcir Pécora, creio, que a conhecera pessoalmente e admirava sua poesia.

Tecnicamente, toma-se o século XX como iniciando-se em 1901, terminando no ano 2000. Historiadores usam outras datas. Em minha mente, muitas vezes, o século XX da poesia brasileira inicia-se com a morte de Cruz e Sousa em 1898, terminando em 1998 com a morte de Orides Fontela. Duas mortes indigentes. Sei que seria mais "realista", digamos, apontar as mortes de Joaquim de Sousândrade e João Cabral de Melo Neto, em 1902 e 1999, para estes limites. 1902 é ainda o ano de publicação de Os sertões. Não estou, porém, tentando criar uma hierarquia. Nem estou com isso tentando estabelecer ou impor minha própria historiografia. É apenas meu hagiológio pessoal.

Tanto Cabral como Fontela comparecem com suas mortes em meu bilhete a mim mesmo, que encerra meu primeiro livro, contra a auto-glorificação que é típica entre nós, poetas, uma tentativa de lembrar a mim mesmo que somos pó, pó, pó, e se estes morreram como morreram, por que fim melhor haveria de me esperar?

Lembrete

Cruz e Sousa
em vagões de
transporte
de gado.

Paul Celan
nas águas
do Sena.

Frank O’Hara
estirado n’areia.

Christine Lavant
crivada de camas
............e escamas.

Alejandra Pizarnik,
intolerância
a C12H18N2NaO3.

Carlos Drummond de Andrade,
doze dias após a filha.

Pier Paolo
a pau e pedra.

João Cabral de Melo Neto
...................................cego.

Orides Fontela
à beira da indigência.


(publicado orginalmente em Carta aos anfíbios, 2005. Versão nova)

§


Descobri Hilda Hilst quando esta lançou o romance Estar Sendo. Ter Sido (São Paulo: Nankin Editorial, 1997). Lembro-me de ler trechos, em pé, numa livraria pequena da Avenida Paulista, onde ia ler de graça pois não tinha dinheiro para comprar os livros, até chegar ao poema que encerrava o volume, intitulado "Mula de Deus", com versos como "Para fazer sorrir O MAIS FORMOSO / Alta, dourada, me pensei. / Não esta pardacim, o pelo fosco / Pois há de rir-se de mim O PRECIOSO" ou "Há nojosos olhares sobre mim. / Um rei que passa / E cidadãos do reino, príncipes do efêmero. / Agora é só de dor o flanco trêmulo. / Há nojosos olhares. Rústicos senhores." Quando cheguei aos últimos versos do poema, aquele deslumbrante "Palha / Trapos / Uma só vez o musgo das fontes / O indizível casqueando o nada // Essa sou eu. // Poeta e mula / (Aunque pueda parecer / Que del poeta es locura)", quase cambaleava.


Deu a febre.

Tornei-me devoto.

Nos próximos anos passei os livros de Hilst a todos que encontrava, formando um círculo de amigos que a admiravam como eu. Em 2004, decidimos: vamos a Campinas conhecê-la. Não sabíamos que a poeta estava há semanas no hospital, após uma queda que lhe trouxera complicações. Soube, mais uma vez pelos jornais, de sua morte a 4 de fevereiro de 2004. Telefonei perplexo para os amigos com quem planejava a viagem à Casa do Sol. Não queria crer. Naquela tarde, após sair do trabalho, lembro-me de caminhar para o Parque do Ibirapuera, onde queria ver uma exposição no MAM e, descendo a pé pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio, comecei a compor na mente a primeira das "Seis canções óbvias":


Sair da cama, disse,
........foi simplesmente
........uma idéia incrível
........e deliberada
De invernos frutíferos
........construíram-se
........muitos infernos na
........primavera
A cama é um inferno pessoal
........e intransferível
E a pele vestida à noite
........desprega-se para acompanhar
........outra calçada pela manhã
A transferência de corpo pratico-a
........com diligência
É tudo tão simples, dizem
Hilda Hilst havia medo da morte
........e morreu
........assim como o MASP
........é ao mesmo tempo
........museu e mirante
Ergue-se o deliberado sobre
........simples patas


(Carta aos anfíbios, 2005)


Algum dia quero escrever sobre essa viagem à Casa do Sol, esta viagem que jamais aconteceu. Não conheci Orides Fontela, não conheci Hilda Hilst. Não as vi beber café em copo, caneca ou xícara. Tenho os poemas. Volto a eles constantemente, como quem quer matar a sede infinita.

§



§



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3 comentários:

Unknown disse...

Era MUSEU & BELVEDERE! Depois mudou.

Ricardo Domeneck disse...

Sim, era "belvedere". Lembro que você troçou da palavra. Agora é "mirante". Gostou mais?

Unknown disse...

Claro. "Belvedere" é uma palavra metida à besta.

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